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Resumo
O artigo compara os conceitos de má-fé, de Jean-Paul Sartre, e de disfarce, de Fabio Herrmann. A autora indica certas semelhanças em seu uso. Entende que a comparação interessa porque, a partir da visão teórica que os dois escritores têm das duas condutas denotadas pelos referidos conceitos, ajuda-nos a distinguir o que é específi co do método psicanalítico.


Palavras-chave
disfarce; má-fé; método psicanalítico; Teoria dos Campos.


Autor(es)
Camila Salles Gonçalves
é doutora em filosofia pela fflcusp, psicóloga pela pucsp, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de publicações sobre psicanálise e filosofia.


Notas

1 F. Herrmann, A psique e o eu, p. 179.

2 J-P. Sartre, L’être et le néant – essai d’ontologie phénoménologique, p. 94.

3 J-P. Sartre, L’idiot de la famille – Gustave Flaubert de 1821 à 1857.

4 J-P. Sartre, La transcendance de l’ego, p. 15.

5 F. Herrmann, in A psique e o eu, op. cit., p. 145.

6 F. Herrmann, op. cit., p. 146.

7 F. Herrmann, op. cit., p. 205

8 F. Herrmann, op. cit., p. 147.

9 F. Herrmann, op. cit., p. 148.

10 F. Herrmann, op. cit., p. 148.

11 F. Herrmann, op. cit., p. 43.

12 F. Herrmann, op. cit., p. 149.

13 F. Herrmann, op. cit., p. 104.

14 F. Herrmann, op. cit., p. 105-106.

15 F. Herrmann, op. cit., p. 106.

16 F. Herrmann, op. cit., p. 210.

17 F. Herrmann, op. cit., p. 178.

18 F. Herrmann, op. cit., p. 178.

19 F. Herrmann, op. cit., p. 207.

20 F. Herrmann, op. cit., p. 207.

21 F. Herrmann, op. cit., p. 181.

22 F. Herrmann, op. cit., p. 185.

23 F. Herrmann, op. cit., p. 181.

24 F. Herrmann, op. cit., p. 161.

25 F. Herrmann, op. cit., p. 156.

26 L. Herrmann, Andaimes do real: a construção de um pensamento, PUC/SP, p. 178.

27 F. Herrmann, A psique e o eu, op. cit, p. 178.

28 F. Herrmann, op. cit., p. 178.

29 F. Herrmann, op. cit., p. 155.

30 F. Herrmann, op. cit., p. 217.

31 J-P. Sartre, L’être et le néant, op. cit., p. 92. Comento mais detidamente essa crítica de Sartre em outro trabalho: Camila Salles Gonçalves, Desilusão e história na Psicanálise de Jean-Paul Sartre, p. 172.

32 F. Herrmann, Andaimes do real – livro primeiro – O método da psicanálise, p. 225.

33 F. Herrmann, op. cit., p. 357.

34 F. Herrmann, A psique e o eu, op. cit., p. 211.

35 F. Herrmann, op. cit., p. 210.

36 F. Herrmann, op. cit., p. 211.

37 F. Herrmann, op. cit., p. 215.



Referências bibliográficas

Cumming R. D. (1992). Role-playing: Sartre’s transformation of Husserls. In: Howells C. (ed.). Th e Cambridge Companion to Sartre. Cambridge: Cambridge University Press.

Gonçalves C. S. (1996). Desilusão e história na Psicanálise de Jean-Paul Sartre. São Paulo: Nova Alexandria.

Herrmann F. (1991). Andaimes do real – livro primeiro – O método da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

____ (1999). A psique e o eu. São Paulo: Hepsyché.

Herrmann L. (2005). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo, tese de doutoramento, PUC/SP.

Sartre J-P. (1960). L’être et le néant – essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard.

____ (1971). L’idiot de la famille – Gustave Flaubert de 1821 à 1857. Paris: Gallimard.

____ (1981). La transcendance de l’ego. Paris: Vrin.





Abstract
This article makes a comparison between Jean-Paul Sartre’s concept of mauvaise foi (bad faith or self-deception*) and Fabio Herrmann’s concept of disguise. The author points out certain similarities in their use. She argues that this parallel is important because the two writer’s different theoretic points of view about the behavior indicated by the referred concepts help us to distinguish what is specifi c in the psychoanalytical method.


Keywords
disguise; self-deception; psychoanalytical method; Theory of the Fields.

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 TEXTO

A má-fé e o disfarce

Bad faith and disguise
Camila Salles Gonçalves


É muito raro que uma idéia possa ser simultaneamente viva e popular. [1]
[Fabio Herrmann]

No âmbito das investigações a respeito de condutas e atitudes humanas, não é difícil aproximar psicanálise e filosofia. É neste que, de início, encontro possibilidade de estabelecer e situar uma comparação entre o conceito de má-fé, apresentado por Jean-Paul Sartre, em 1943, e o de disfarce, em livro de Fabio Herrmann, publicado em 1999. Por curiosa que seja, a comparação não traz em si grande interesse nem importância, mas adoto esse modo imperfeito de conhecimento como primeiro passo que visa a pôr em foco a especifi cidade do método psicanalítico.

As análises da má-fé, desenvolvidas em O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica, respondem à pergunta “o que deve ser o homem em seu ser, se ele deve poder ser de máfé?” [2]. Referem-se ao ser do homem a partir do uso do método fenomenológico em filosofia, método este que descreve o ser do seu aparecer, que se dá em inúmeros perfis. A investigação fenomenológica da má-fé faz parte, pois, de indagações acerca dos modos de ser do para-si, que é o ser da realidade humana, o ser que é existência. No mesmo livro, Sartre esboçou seu projeto de fundar uma psicanálise existencial. Se ele tivesse se proposto a iniciar uma prática clínica, teria partido apenas de idéias para fundamentar um trabalho com analisandos, pois jamais teve experiência alguma que porventura viesse a legitimá- las. Mas nada leva a crer que o filósofo pretendesse iniciar um temerário atendimento de pacientes. Nessa primeira hora, seu projeto psicanalítico é inseparável de suas críticas à psicanálise freudiana e, sobretudo, de sua argumentação a respeito da importância e do alcance das descrições dos modos de ser do para-si, que são também modos de ser da consciência.

O para-si traz ao mundo o nada e a consciência. Sartre chega a usar para-si e consciência como sinônimos. Na sua concepção, não existe consciência vazia, nem preenchida antes de visar a algo. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Em outras palavras, a consciência não pode ser entendida como uma espécie de recipiente que se apropriaria do objeto e passaria a contê-lo. Por isso mesmo, ele adotou a grafi a consciência (de), com parênteses, indicando assim que nada há na consciência além do objeto para o qual ela se abre. A transcendência é esse abrir-se, esse movimento para fora, um fl uxo centrífugo.

A análise fenomenológica, inspirada em Husserl, procede por meio da descrição dos modos de aparecer do fenômeno. Lembremos que fenômeno deriva do verbo grego pháinestai, que signifi ca aparecer. Ao revelar o ser do para-si como fenômeno, a análise revela o que é próprio desse ser, que é consciência e existência. Assim, o movimento do ensaio de fenomenologia que constitui O ser e o nada é também uma narrativa a respeito de como se vão mostrando os múltiplos perfi s do para-si. Suas estruturas são desveladas pela investigação ontológico-fenomenológica.

Espero que um modo de deixar claro o sentido de estrutura empregado por Sartre seja mencionar agora a oposição entre em-si e para-si. O em-si é o ser das coisas, cheio pleno, completo, incapaz de se relacionar. O nada, a negação e a incompletude vêm ao mundo através do para-si. Tudo se passa como se as estruturas do para-si fossem des-estruturas do em-si. O para-si é temporal e inseparável de suas relações com outrem. Vem a ser sob o olhar de um outro. É lançado ao mundo por mera contingência (sua existência não é necessária), imerso na facticidade (não pode alterar as condições de seu surgimento, sua incompletude, sua mortalidade) e incapaz de ter sobre si o olhar de um outro, que testemunharia ou fixaria seus modos de aparecer, como se os congelasse.

É só a partir das concepções sartrianas de consciência, transcendência e estruturas do parasi que se pode compreender a análise da má-fé. O para-si é capaz de se pôr como consciência que se crê capaz de alterar suas características, ou, melhor dizendo, suas estruturas. A má-fé é uma consciência (de) crença, muito particular, que faz jogos de enganar a si, isto é, de enganar a própria consciência, falseando, negando, recusando tomar conhecimento de suas estruturas. Tais jogos iludem quanto ao ser do para-si, ser que é existência, realidade humana, que vem a ser na relação com um outro. Os ardis da má-fé podem, sobretudo, utilizar inúmeras formas de negar a dialética da alteridade e a temporalidade. Podemos encontrar, no dia-a-dia, exemplos simples: com minha consciência (de) má-fé, posso crer que minha existência é necessária porque vim ao mundo com uma missão, posso crer que querer é poder, posso crer que sei a pessoa que sou. Também posso crer que tenho como escapar à minha temporalidade, que disponho de condições de me ater à promessa de ser sempre a mesma, ou de ter sempre o mesmo sentimento, como nas juras de amor. Talvez os exemplos mais impressionantes de má-fé estejam nas situações em que esta consciência (de) crença procura tomar seu próprio ser para-si como um ser em-si, como o ser das coisas.

Movido pelo desejo de tornar-se em-si, o para-si pode constituir-se como consciência (de) crença (de) má-fé, como projeto que nega seu secretar o tempo e sua inevitável liberdade, como projeto de ser imutável. Um exemplo corriqueiro: talvez todos já tenhamos visto pessoas que se apresentam como estátuas de si mesmas, embora seja difícil admitir que possamos, nós mesmos, em algum momento, posar de modo semelhante. Para além dessas quotidianas possibilidades, lembro agora uma passagem de O idiota da família (1971) [3], obra muito posterior a O ser e o nada, realização fi losófi ca e literária de projetos sartrianos de psicanálise, por meio da biografi a psicanalítico-existencial de Gustave Flaubert. Sartre mantém aí sua pergunta: que peut-on savoir d’un homme aujourd’hui? Em determinado momento de suas análises, atribui ao escritor o desejo de se tornar em-si. Em sua juventude, em confl ito, entre voltar a Paris e retomar os estudos de Direito, o que ele não queria, ou ser obrigado a permanecer com a família, Gustave teria sofrido uma queda e uma crise semelhante a um ataque epilético. Para Sartre, ele teria caído como um pedaço de pau, como uma coisa, como um em-si inerte, negando sua possibilidade de se mover e de escolher.

Dei parcos exemplos extraídos da vasta obra de um filósofo, que a iniciou pretendendo demonstrar que não existe consciência fora desse movimento transcendente, que visa a algo, no qual ela e objeto se constituem. Sartre considerava dispensável a concepção de um eu, que funcionaria como um habitante ou piloto da consciência, e fez severas críticas a seus mestres, que estariam substancializando a idéia de eu em filosofia. Além disso, fascinado por Freud, desde seus primeiros escritos filosóficos debateuse com o conceito de inconsciente, examinando seus fundamentos. Com freqüência, canalizou seu interesse pela psicanálise procurando aguçar críticas ao conceito de inconsciente também contra filósofos adversários, como aqueles que estariam transformando a idéia de eu, presente em fi losofi as, em um “inconsciente pré-empírico” [4].

Desta mínima exposição de refl exões satrianas, passo agora para a apresentação de idéias de um artigo, retirado da também extensa obra de Fabio Herrmann, que nos apresenta perfi s de uma conduta humana, o disfarce. A leitura de “A paixão do disfarce” [5] me faz entender que, ao nos tornarmos humanos, ou seja, ao entrarmos em relação com outrem, tornamo-nos capazes de utilizar o disfarce. Como recurso, este faz parte da normalidade quotidiana, permite o convívio num relativo conforto. Mas, no extremo oposto, serve também à aparência de exceção, à procura de originalidade, à busca de alguma marca personalíssima. Para o autor, há uma humana paixão pelo disfarce e há até quem “se disfarce de nada, ou, pior, de si mesmo” [6]. Divertido caso de má-fé, ou exemplo patético do desejo de tornar-se em-si, pode-se dizer. Mas não é este o tipo de comparação que importa fazer. É preciso, antes de tudo, reconhecer, nos escritos de Fabio Herrmann, perfi s do sujeito psíquico que também permitem apreender a que vem a psicanálise.

O disfarce “não é uma doença psíquica, mas um modo do ser do homem, muitas vezes criativo e apaixonante, outras vezes monótono e puramente defensivo, mas não destituído necessariamente de função social” [7]. Se a paixão do disfarce move a psique e está nas tramas do quotidiano, cabe perguntar, a respeito desse eu que se disfarça, se é o mesmo que o faz para apresentar-se como normal, como único ou até como excêntrico. Sabemos que, para Freud, a dinâmica psíquica resulta de relações entre as instâncias ou sistemas. Fabio Herrmann retoma- as, ao abordar também o caso paradigmático das formações inconscientes reprimidas e da forma pela qual estas vêm a ter acesso à consciência. Elas o fazem “mercê de um disfarce defensivo, travestindo-se em seu contrário, por exemplo” [8]. O autor apresenta-nos um sonho em que o sonhador, dirigindo uma velha perua, derruba o muro da mansão em que sua mulher está aprisionada. Uma outra personagem aplaude seu feito ousado. O paciente desperta ainda com o prazer de tê-lo realizado e de vê-lo reconhecido como ato justo. Essa história quixotesca é sonhada numa fase em que o analisando enfrenta penosas negociações para que sua esposa e ele consigam desligar-se de uma empresa por ela herdada, tendo que se haver com a dura oposição de parentes. Os atos violentos necessários para encaminhar o desejado desligamento “disfarçaram-se no sonho, numa empresa cavalheiresca” [9]. Esse disfarce de altruísmo ocultaria as hostilidades da luta fi nanceira e não seria um disfarce qualquer, pois seu elo nodal teria como confi guração o veículo de assalto, “meio automóvel, meio carroça de guerra” [10], capaz de transportar a cena para outro registro.

No sonho, forma extrema de disfarce, há um eu que se disfarça, há um que promove o disfarce deste, há um eu espectador, que sempre está presente. Ao longo de sua obra, o autor reexamina a concepção de eu, pondo em destaque a impossibilidade de falarmos de um eu único ou de um eu uno, se pretendemos pensar sobre a psique a partir da psicanálise. Pode-se dizer que realiza uma fenomenologia psicanalítica do eu, ou dos vários eus, na medida em que descreve os modos pelos quais este se nos apresenta. Por exemplo, no artigo “O eu no fígado da pedra” [11], a partir da idéia segundo a qual cada ato praticado visa também à construção do sujeito deste ato, permite-nos compreender por que meios são criadas formas para o eu. A exemplo da prática do ator teatral, cuja fala, gesticulação, movimentação e demais recursos permitem identificar uma personagem, “todo ato é também construção de seu eu: parte considerável do esforço psíquico despende-se nisso e as qualidades desejáveis do eu que se cria como sujeito do ato dão-lhe características especiais” [12].

Não estamos longe do modelo freudiano, pelo contrário. Não são deixados de lado nem o inconsciente, nem o aparelho psíquico. Mas entendo que, ao rever a teoria, Fabio Herrmann lhe dá precisão. Do eu que serve a três senhores, metáfora famosa da segunda tópica, caminhamos em direção ao eu defi nido como “aquilo que se sacrifi ca para a conservação do eu” [13]. Em suas captações do eu, esta escrita nos elucida, ao mesmo tempo que nos lança em um campo vertiginoso: “quando imaginamos o eu, a forma do sujeito psíquico, é como se houvesse uma infi nidade de fi guras, todas aproximadamente idênticas, como acontece quando nos pomos entre espelhos trifásicos” [14]. Não pretende ser anti-econômica, construindo um modelo desnecessário de multiplicações, mas, isto sim, mostrar o alcance da psicanálise em relação àquilo que é um homem e ao mundo em que vivemos. Oferece-nos pontos de vista esclarecedores a respeito do sujeito psíquico e do temário da identidade, que, como veremos e já se prevê, repercutem na arte da interpretação: “minha silhueta psíquica – certas marcas identitárias, um estilo de ser, meu nome, a história que convencionei ser a minha – é a herdeira do sacrifício de sucessivas formas mais ou menos iguais, que vão morrendo no tempo para que eu seja quem sou, ou quem creio ser” [15].

O prazer com que lemos o texto, de que extraio esta última e outras citações, não nos pode desviar da seriedade com que nele são abordadas questões centrais da teoria e da clínica psicanalíticas. Por meio desse modo de ser do homem, por meio do disfarce, podemos rever a questão da censura, relacionada com o mecanismo de repressão, a forma pela qual é burlada e também a maneira pela qual esclarecimentos a este respeito fundamentam a teknê interpretativa. No campo da metapsicologia, encontramos um modelo de duplicação do sujeito psíquico, relacionado com o jogo do disfarce. Para o autor, “a mais conhecida das formas teóricas que correspondem a esse modelo geral do disfarce, derivado da duplicação sub-reptícia do sujeito psíquico, é sem sombra de dúvida a concepção freudiana de censura dos conteúdos ligados aos impulsos instintivos” [16].

Penso que este artigo, “A paixão do disfarce”, é um excelente exemplo de como a obra de Fabio Herrmann nos leva a refletir sobre o trabalho analítico, reconhecer o quanto este implica em desvelamento passo a passo, que resulta das intervenções do analista e do material lacunar do analisando. Neste movimento, é crucial admitirmos o risco de sugestão. Encontramos uma valiosa elucidação a respeito de como tal risco tem origem na ilusão, por parte de ambos os envolvidos, de que, ao cair o disfarce, revelarse- á algo como um eu verdadeiro. É preciso levar em conta que “o par disfarce e revelação pode também desembocar apenas noutro disfarce, uma máscara escondendo outra máscara” [17]. Como saber, então, qual é o eu do paciente, ainda que relativo, ainda que apenas predominante? Entendo que, se não coisifi camos a concepção de instâncias psíquicas, talvez tenhamos que deixar de lado esta pergunta, que só nos faz ficar de mãos vazias, num falso garimpo. E o autor nos diz ainda, ajudando-nos a limpar o campo, a afastar reifi cações: “talvez tenhamos que admitir que o eu, o tesouro que se oculta e se protege sob os disfarces, nada mais é que um efeito ilusório de revelação” [18].

Nada está perdido, contudo. Muito pelo contrário: abre-se um importante caminho para a investigação, que traz, como conseqüência, hipóteses ou descrições afi adas, fundamentais para a apreensão de perfi s das neuroses e das psicoses. Uma forma grave de disfarce é acompanhada pela crença, proporcional, em sua efi cácia. Sem dúvida, corresponde à necessidade de defesa e à criação de personagens que tornariam inexpugnável a cidadela do eu: “a personalidade do disfarce patológico sente, não sem certa razão, que perderá sua identidade se a expuser minimamente ao contato. O disfarce, nesses casos, cumpre um papel semelhante ao encistamento de uma bactéria: não deixa viver completamente, mas preserva da morte” [19]. Fabio Herrmann nos dá o exemplo da fala de um analisando que é presa de orgulho desesperado: “Eles não me conhecem, ninguém me consegue conhecer. Eu fi njo que cumpro as regras. Mas é só por fora. Por dentro, só os desprezo. Esta é minha vitória: ninguém sabe o que penso” [20].

Se os diversos eus são inseparáveis da humana produção de disfarces, não constituem porém mero estorvo. Não estão na frente de um inconsciente único, por eles oculto. Veiculam o desejo. O autor nos lembra de que as representações (Vorstellungen) ocorrem desde o início da vida psíquica e seu conjunto “vai formando um quadro razoavelmente aceitável da realidade externa”, mas, dentre elas, as que são representantes do desejo não chegam a “formar um quadro de confi abilidade equivalente” [21]. As mais confi áveis servem ao convívio social, à superfície aparencial da realidade.

Entendo que há um grande esforço na criação de um eu, na assunção de um modelo identifi catório, uma dedicação à construção de uma identidade estável, com a qual o sujeito possa se apresentar e se tranqüilizar, que integra o processo de normatização do quotidiano, que, por sua vez, implica o afastamento paulatino do desejo. Mas, nesta sujeição a uma realidade aceitável, o que é evitado inscreve-se como um resto que entra na confi guração da identidade. Para Fabio Herrmann, “a identidade representa o desejo negativamente” [22]. Assim, “é perfeitamente compreensível que o disfarce fi gure melhor o desejo, superando nesta tarefa o próprio eu que ele procura disfarçar” [23]. Ao mesmo tempo que vê no disfarce uma certa função de adaptação, de conformar-se ao quotidiano, à medida que aprofunda sua investigação, o autor faz com que nos deparemos com o que ele chama de o estado de disfarce, estado que surge como dissonante em relação ao eu que um sujeito talvez acreditasse ter e exibir. Ao produzir de forma ostensiva um disfarce, num ato de auto-criação, este “revive a experiência inaugural de criação da identidade” [24]. É nesta situação que o disfarce pode ser compreendido como “herdeiro da mentira original” [25], a partir da qual nasce a identidade.

A identidade é, desde o princípio, disfarce. Para retomar agora a idéia de mentira original, recorto algo das exposições claras de Leda Herrmann, apresentadas em sua tese de doutoramento, Andaimes do real: a construção de um pensamento [26]. Entre a mãe e o bebê, dar-se-ia uma espécie de diálogo, no qual, atenta às oscilações de satisfação, ela atribuiria intenções à criança e atuaria como se nela houvesse um homenzinho ou uma mulherzinha embutidos. Assim, “essas modulações do aconchego derivadas do diálogo interno do adulto com o bebê, traduzindo os ritmos do bebê, acabam por estabelecer uma relação com a proto-intenção materna” [27]. O choro sem fome, tomado pelo que não é, torna-se a porta de entrada para a fome fi ngida. A autora esclarece a intenção deste modelo mãe-bebê, que nada tem a ver com supostas induções a partir de observações do rebento humano: “Fabio destaca o que considero o fundamental no desenvolvimento que para ele toma a idéia de psique como o sentido humano. Ele afi rma que a possibilidade é a dimensão do real humano na relação entre necessidade e a satisfação” [28].

Ao ver a história do disfarçar-se como a própria história humana, Fabio Herrmann também a põe a serviço da explicitação das proposições fundadoras de Freud, em A negação. Assinala que, nessa história, “podemos reconhecer o ‘símbolo da negação’ a que Freud se referia” [29]. No contexto de seus comentários sobre os disfarces de Ulisses, somos reconduzidos à idéia freudiana de que tal símbolo assinala o surgimento do pensar com um primeiro grau de independência, diante da repressão. Neste passo inicial, haveria, para Freud, um relativo descolamento das conseqüências da repressão, um mínimo de liberação que acompanharia a compulsão do princípio do prazer.

Com relação ao trabalho analítico, o disfarce não é um ponto cego da teoria a impossibilitar a credibilidade das interpretações, como Sartre chega a sugerir. Faz-me pensar no trabalho que desde a prática de Freud atravessa a resistência – o Durcharbeiten –, que, sem a confrontar, torna-a quase colaboradora. Para Fabio Herrmann, existe a possibilidade de “o analista fazer trabalhar o disfarce, participando da cena por ele proposta, como se fi zesse parte de um sonho, contracenando” [30]. Ao desfazer uma crença ou um disfarce, o método psicanalítico efetua uma ruptura de campo, de um posicionamento da psique gerado por um inconsciente relativo. Ao vórtice, isto é, à avalanche de representações desencadeadas pela ruptura, representações desconectadas, incompatíveis com qualquer apresentação mais ou menos acabada de um eu, pode, com efeito, suceder-se novo disfarce. A análise prossegue.

Volto agora à crítica de Sartre, a sua proposição segundo a qual dissimular alguma coisa implica a unidade da consciência. Para o fi lósofo, há uma consciência espontânea, que visa aos objetos ou às situações sem examinar a si mesma, e uma segunda consciência, refl exiva, que se volta para a primeira. Ele considera insufi ciente a teoria psicanalítica, sobretudo em relação à repressão ou recalque, fenômeno que ela procuraria explicar. Sua insufi ciência residiria em não ter esclarecido “como a tendência recalcada pode ‘se disfarçar’, se ela não envolve: (1) a consciência de ser recalcada, (2) a consciência de ser repelida porque ela é o que é, (3) um projeto de disfarce” [31].

A teoria freudiana não teria sido capaz de explicar de que modo pode existir uma disposição para buscar um disfarce que ignora o feitio que a este quer dar. Sartre afi rma que o intra e o inter-relacionamento das instâncias psíquicas não esclarecem o que dá verossimilhança à concepção de uma censura que não tem, ou melhor, não é, consciência daquilo sobre o que se exerce. As páginas, tão antigas, em que o fi lósofo acusa a inconsistência teórica de Freud, ainda têm o efeito de nos fazer pensar que, se o inconsciente não é pressuposto desde o início, não há como fazê-lo surgir dos jogos entre repressão e disfarce.

É claro que, em geral, não há por que extrair conceitos de obras de dois pensadores e compará-los, muito menos, se eles mesmos não o fi zeram, só pelo fato de terem o mesmo nome. Mas, neste caso específi co, penso que muito mais do que o nome aproxima o disfarce em Fabio Herrmann e em Sartre. Não cabem aqui extensas leituras críticas ou chusma de argumentos, mas pode-se notar, primeiro, que a dinâmica da censura, para ambos os autores, está relacionada com o disfarce e, segundo, como pretendo pelo menos sugerir, que o exame de teorias a respeito daquela dinâmica, efetuado por cada um deles, faz ressaltar o que é próprio do método da psicanálise.

Indiquei o modo pelo qual Fabio Herrmann apresenta o disfarce no sonho. O desenvolvimento do texto evidencia que o método da psicanálise não visa a desmascarar, arrancar disfarces. A rigor, só podemos falar destes situando-os em um campo onde há um inconsciente relativo (a este campo) que o organiza segundo regras, que só se deixam entrever quando o próprio campo se rompe. Para Sartre, o método da psicanálise necessitaria pressupor uma consciência autônoma de má-fé, entre o inconsciente e a consciência. Mas esta acusação baseia-se na idéia de uma consciência (de) crença acoplada de modo inexplicável com um mítico inconsciente substancial. Neste, nós, psicanalistas, não precisamos crer. Sequer necessitamos supô-lo.

O imenso trabalho crítico de Fabio Herrmann, seu exame das condições de possibilidade do método da psicanálise, não resulta em confronto com diatribes sartrianas ou quaisquer outras mais ou menos bem articuladas. Mas pode funcionar como vacina contra as mitologias coisistas que Sartre acusa na psicanálise. A Teoria dos Campos nos lembra de que, se há o inconsciente, este não tem mais perenidade do que o efeito do interpretante psicanalítico, que tem a função de “organizar os produtos das rupturas de campo interpretativas” [32].

Em nosso caminhar na clínica, um dos melhores mundos possíveis para a existência da psicanálise, “cada inconsciente relativo descoberto vale só por sua potencial ruptura de campo, passos teóricos que a areia engoliu” [33].

Segundo a crítica sartriana, ocorre uma distorção no uso psicanalítico de duas noções, a saber, a de libido e a de censura. O filósofo crê indiscutível sua asserção acusando pertencer cada uma destas a um modelo teórico distinto, sendo os dois incompatíveis. A primeira noção, como força cega, só teria sentido para uma visão físicomecânica da psique e, a segunda, para uma concepção finalista. O finalismo estaria em pressupor que a tendência encontraria um disfarce com a finalidade de passar pela censura, à semelhança de um contrabando que passa pela alfândega.

Fabio Herrmann também se permite utilizar uma analogia inspirada na Física: “(a forma do campo) promove uma torção do espaço psíquico em torno de suas representações axiais – o eu relativo, ou disfarce” [34]. A forma de um campo é determinada pela pulsão ou impulso instintivo atuante. Nem piloto da consciência, nem tesouro cuja caça resulte na posse, o eu é relativo e multiplica- se nos inúmeros campos que o perfazem. Penso que, não obstante, o eu, que o sujeito pretende conhecer, representa representações identifi - catórias. Esta frase não vem aqui por descuido, pois com ela pretendo lembrar que o eu-identidade, por assim dizer, age e fala, em nome das representações (Vorstellungen), como seu representante (Repräsentanz). Isto é, idéias ou representações imagéticas internas levam o eu-identidade a compor- se e a apresentar-se como seu embaixador, com freqüência, à própria revelia.

Considero a idéia de disfarce sub-utilizada por Sartre, na medida em que só é convocada para pôr à prova teorias de Freud e não é relacionada de modo sufi ciente com as magistrais descrições da má-fé, com as quais, como psicanalistas, temos muito a aprender. Apesar do apego do filósofo a suas próprias interpretações de passagens das refl exões teóricas de Freud, suas críticas ainda valem como procedimento de redução ao absurdo da concepção de um inconsciente único, consubstancial em si, entidade subterrânea a enviar contrabandos para a consciência. Além disso, talvez tenhamos que dar razão a Sartre toda vez que se insinua entre nós uma crença num inconsciente reifi cado e em intervenções interpretativas originadas em uma teoria que se pretende aplicar. Convenhamos que o efeito desta só pode ser o de revelar (ou confirmar) o que já se pressupunha.

De certa forma, Fabio Herrmann fez o que Sartre não pôde fazer, ao também descrever o disfarce como resistência, porém mostrando que, ao fazer parte do processo psicanalítico, ele o possibilita. A teoria que se faz na clínica não é aplicação de modelos teóricos pré-existentes, tenham estes ou não incongruências em suas fontes conceituais. Apesar disso, o método da psicanálise, revisto pela Teoria dos Campos, não substitui o sentido dos conceitos freudianos. O campo é um “sistema de regras” e sua “propriedade essencial é proibir a existência de qualquer representação que o denuncie” [35]. Os impulsos instintivos (ou tendências) não admitem representação alguma, mas geram uma tensão e o simultâneo enovelar-se do campo sobre si mesmo, que constitui um inconsciente relativo.

Para Fabio Herrmann, “vê-se, portanto, sem grande difi culdade, que a relação entre diversos inconscientes relativos não pode criar um espaço psíquico homogêneo, um inconsciente único onde todos os impulsos interagissem: nem muito menos uma zona mais ou menos livre, a consciência, que apenas eventualmente sofresse o desvio de complexos inconscientes” [36].

Segundo a Teoria dos Campos, O disfarce é um eu relativo. Também podemos considerá-lo uma consciência (de) má-fé, na medida em que equivale a uma crença do analisando em sua própria essencialidade ou em sua efi cácia para ocultar uma personalidade em-si. Mas o método da psicanálise não implica confrontá-lo. Na clínica, “em cada momento do contato analítico” [37], a interpretação, quando é bem sucedida, apenas tensiona os campos dominantes e provoca a ruptura, que pode gerar futuro, novo leque de sentidos.
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