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Resumo
Resenha de Néstor Braustein, Gozo, São Paulo, Escuta, 2007, 336p.


Autor(es)
Betty Bernardo Fuks
é psicanalista, professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA (RJ), autora de Freud e a judeidade: vocação do exílio (Zahar, 2000) e Freud e a cultura (Zahar, 2003).

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 LEITURA

Gozo, um conceito lacaniano

Jouissance: a concept of Lacan
Betty Bernardo Fuks


Resenha de Néstor Braustein, Gozo, São Paulo, Escuta, 2007, 336p.

“Sejam vocês lacanianos, se quiserem, eu sou freudiano”. Nesses termos, Jacques Lacan assumia que o futuro da psicanálise está na dependência direta de um incessante retorno às fontes freudianas. É uma maneira incisiva de lembrar aos analistas que a transmissão da disciplina criada por Freud exige repetição e traição a um só tempo; porque dizendo o mesmo sempre se diz outra coisa. No campo da ciência do particular, não há lugar para aprendiz de feiticeiro: o analista, deixando-se invadir pela “estranhaconhecida” presença do outro, vive a experiência de modo a modifi car, inventar e recriar a teoria. Nesse sentido, o próprio retorno de Lacan ao que Freud chamou de teoria psicanalítica é exemplar. Com um quê de ortodoxia e provido dos modelos e sensibilidades que recebeu de sua época, abandona a leitura cronológica dos textos freudianos para buscar, nos brancos e nas margens de cada um deles, o não dito. Isso resultou numa série de contribuições originais à psicanálise, sistematizadas durante as décadas em que realizou seu seminário, aberto a analistas e leigos. Foi assim que, relendo os fundamentos do conceito freudiano de pulsão de morte, pôde transformar em conceito o vocábulo da língua alemã Genuss, gozo, usado por Freud em pouquíssimos textos. O conceito de gozo (jouissance) circunscreve o paradoxo do prazer no desprazer da satisfação pulsional e ocupa um lugar central na teoria lacaniana. Uma invenção. Uma ferramenta precisa para o analista que, acossado pelas mudanças subjetivas deste início de século, observa o exercício de um gozo que não mais encontra as barreiras do prazer. No plano clínico, a encruzilhada se coloca entre uma prática voltada exclusivamente à interpretação do sintoma, como o era no tempo da fundação da psicanálise, e à urgência de introduzir um limite capaz de reduzir o excesso de gozo e orientar o sujeito em direção ao desejo.

Néstor Braustein, dono de uma invejável capacidade de leitura, acuidade de raciocínio e sensibilidade crítica, acaba de lançar, no Brasil, Gozo, livro que ilumina, de modo original e criativo, o conceito de mesmo nome. O autor revela uma capacidade inquietante de escavar o conceito numa dimensão poética, clínica, teórica e didática ímpar. Resultado: desde sua primeira publicação no México em 1990 e da segunda edição francesa de 2005, Gozo passou por sucessivas modifi cações, atualizações, reescritas e inovações terminológicas. Ao designar a dimensão “gozosa” da psicanálise, o autor faz surgir outros sintagmas, enriquecendo a conceituação lacaniana do que está mais além do princípio do prazer freudiano. Sorte a do leitor brasileiro que ganha esta obra exaustivamente revisada e acrescida em seu conjunto de novas indicações bibliográfi cas e ensaios inéditos.

Para Braustein, Lacan precisou recorrer ao caminho do direito, mais precisamente pela filosofi a do direito de Hegel, na qual “aparece o Genuss, como algo que é ‘subjetivo’ e ‘particular’, impossível de compartilhar, inacessível ao entendimento e oposto ao desejo”, para dar fundamentos ao conceito de gozo. A oposição gozo/desejo, central na obra de Lacan, tem, portanto, uma raiz hegeliana e é através dessa ferramenta que o mestre de Paris retorna aos princípios freudianos. O gozo, no direito, remete à noção de usufruto, de desfrute de alguma coisa como um objeto de apropriação, mas o sistema jurídico oculta que esta é, na verdade, uma expropriação, pois alguma coisa só é “minha” quando há outros para quem este “minha” é sempre alheio. É aqui, segundo Braustein, o ponto de confl uência entre as teorias do direito e as da psicanálise e a “questão fundamental da primeira propriedade de cada sujeito, seu corpo, e as relações deste corpo com o corpo do outro”.

Lacan não se atém apenas ao campo do direito para pensar a jouissance. A medicina testemunha a experiência banal do médico de constatar que muitas vezes, sob a aparência de cura, o doente apresenta um apego à doença mais forte do que a tecnologia e a presteza médica. Em oposição a Descartes, que preconizava ser o corpo unicamente a substância extensa em oposição à substância pensante, Lacan afi rma que o corpo goza de si mesmo, ou seja, foi feito para gozar. Trata-se de um gozo evidente, mas que se “oculta na relação que estabelecem o saber, a ciência e a técnica com essa carne que sofre e que é feita corpo que se põe nas mãos do médico para sua manipulação”. Há, com efeito, um gozo no momento em que a dor começa a aparecer e o sujeito experimenta uma dimensão do organismo que permanece velada.

Gozo oferece uma extensa pesquisa teórica e clínica. O leitor é convidado a perscrutar a diferença estabelecida entre gozos distintos através da precisão da palavra lacaniana de que a pulsão não é compatível com a idéia de satisfação. Retomando os três sentidos do termo pulsão – energético, parcial e de morte –, Braustein faz considerações primorosas que nos ajudam a entendê-la como sendo essencialmente pulsão de morte, já que Freud nos indicou o caráter fundamentalmente conservador das pulsões em sua tendência inequívoca ao restabelecimento de um estado anterior. A partir daí, aprofundando o entendimento da idéia de gozos distintos, o autor traz uma revisão bastante contundente sobre alguns temas e conceitos freudianos e lacanianos – Das Ding, objeto a, castração, nome-do-Pai e angústia – para, em seguida, nos brindar com uma bela refl exão sobre o deciframento do gozo.

O terceiro capítulo revela o dom do autor de sair e voltar ao campo da psicanálise, com uma perspectiva de fora absolutamente fecunda. Da urgência em abordar as complexas relações entre o ensino de Lacan e o pensamento de Foucault, surge a escrita do ensaio que, articulado com o conjunto do livro, atualiza o ponto mais debatido da contribuição lacaniana sobre o gozo, ou seja, a inexistência de qualquer relação natural entre os sexos que, segundo Braustein, serve de base para toda a teoria queer.

Surgida como herdeira dos Gay and Lesbian Studies dos anos 1980, essa teoria retomou e desenvolveu, nos Estados Unidos, o trabalho de investigação da história da antiguidade clássica de Foucault. Sua hipótese básica é a de que a identidade sexual e a identidade de gênero são construções sociais e ideológicas que classifi cam e segregam os “diferentes”. Seu objetivo é dar conta dos múltiplos fenômenos e experiências subjetivas e das teorias correspondentes sobre as modalidades de gozo que escapam à heteronormatividade.

Em sua crítica a Foucault, a quem não deixa de atribuir o mérito devido de grande pensador e fi lósofo, autor de História da sexualidade, Braustein demonstra de que modo o conceito lacaniano de gozo tornou-se ferramenta necessária para qualquer propósito de modifi car o campo epistemológico da vida dos seres que falam, de suas vidas como realidades corporais. A psicanálise, mais do que qualquer outra disciplina, segundo o autor, teria condições de oferecer ao movimento queer saídas mais contundentes e menos ideologizadas sobre a sexualidade humana.

No quarto capítulo, o autor apresenta uma leitura bastante original da famosa Carta 52 à luz da Segunda Tópica e do aforisma “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”. O aparelho psíquico, genialmente descrito por Freud nesta carta, é articulado ao Isso, lugar de gozo e dos signos: o inconsciente é palavra e fala e discurso (do Outro). O Isso goza. Ora, dentro desse esquema, o inconsciente é designado pelo autor como um discurso, uma passagem do gozo à palavra. Em síntese: o inconsciente é deciframento de gozo, e seus produtos são suscetíveis de interpretação. Essa afi rmativa é uma espécie de porta de entrada à segunda parte do livro: a clínica psicanalítica. Aqui a experiência do autor determina articulações originais entre o conceito de gozo e as estruturas clínicas – neurose, perversão e psicose. Bela maneira de dar conta do que faz e explicitar claramente para que serve a psicanálise, num mundo em que cada vez mais se tenta apagar a singularidade do sujeito, oferecendo-lhe a ilusão de que os objetos gozosos podem rechear a falta-a-ser que o desejo revela em sua raiz. Nesse sentido, as referências de Braustein às patologias mais dramáticas de nossa época – anorexia, bulimia, toxicomanias e outras formas da angústia –, todas ligadas ao excesso do gozo sob o signo da pulsão de morte ou pulsão do supereu, iluminam a crítica da psicanálise à cultura.

A produção maciça de objetos na atualidade atende, exclusivamente, à demanda do mercado capitalista em detrimento do sujeito do desejo. Ou seja, o homem contemporâneo é compelido a gozar em excesso daquilo que não serve para nada. As características desses produtos, os gadgets, tendem a isolar-nos e a produzir, ao mesmo tempo que uma massifi cação, um gozo cada vez mais auto-erótico e autista.

Não se pode deixar de fazer uma referência ao capítulo VII, @-dicção do gozo, no qual é demonstrado de que modo a falta a ser nos adictos ou toxicômanos não parece ser provocada por um objeto inominado e irrecuperável, mas pela ausência de uma mercadoria que se compra no mercado. Tomando todos os cuidados para não falar superfi cialmente desta patologia, confi gurando- a como “conduta” e não estrutura clínica, o autor sustenta que ela pode se manifestar em neuróticos, perversos ou psicóticos. A droga, como objeto de uma necessidade imperiosa que não aceita as diferenças da satisfação demandada, fi ca muito semelhante ao auto-erotismo que conduz por suas vias a um gozo paradoxal, o gozo da transgressão, dos remorsos e do castigo imposto pelo Outro. Daí porque na drogadição o sujeito está abolido. A droga, objeto da necessidade e não do desejo, é um substituto da sexualidade comum, uma espécie de repressão a ela, ou, pelo menos, um “modo de se afastar das coações relacionais impostas pelo falo”.

No último capítulo, Gozo e ética na experiência psicanalítica, o recurso usado para encaminhar o leitor a tal sorte de questão foi o de explorar uma outra face do gozo – “aquela que passa pela mediação ativa do diafragma da palavra”. A práxis da análise diz respeito à intervenção sobre o discurso, “desarmando a trama de signifi cações para que afl ore o gozo do deciframento de um saber que não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito é o efeito, o fi lho”. O autor parte da hipótese de que se a experiência psicanalítica está jogada integralmente na relação do sujeito com o gozo, ela se orienta para certo bem que é o gozo como possível. E aqui Braustein faz uso do estilo que convém a sua mensagem: “o gozo é aquilo que deve ser recusado para que possa ser alcançado. Na rota até o gozo há que fazer, forçosamente, uma escala no porto do desejo”. O lirismo da sentença agrega algo mais ao livro e dá provas de que é possível escrever sobre psicanálise sem a repetição enfadonha do termo.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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