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Resumo
Resenha de Gláucia Dunley, A festa tecnológica – o trágico e a crítica da cultura informacional contemporânea. São Paulo/Rio de Janeiro, Escuta/Fundação Oswaldo Cruz, 2005, 224 p.


Autor(es)
Sérgio Paulo Rouanet
é diplomata, embaixador do Brasil, ex-secretário de Cultura da Presidência da República; membro da Academia Brasileira de Letras. Entre seus vários livros, contam-se Teoria crítica e Psicanálise (Brasiliense) e Dez amigos de Freud (Companhia das Letras).

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 LEITURA

Psicanálise e pensamento trágico na escuta da desmesura contemporânea

A festa tecnológica – o trágico e a crítica da cultura informacional ]


Psychoanalysis and tragic thought: on the footsteps of demeasure
Sérgio Paulo Rouanet


Resenha de Gláucia Dunley, A festa tecnológica – o trágico e a crítica da cultura informacional contemporânea. São Paulo/Rio de Janeiro, Escuta/Fundação Oswaldo Cruz, 2005, 224 p.

Tiradentes, 5 de fevereiro de 2005

Prezada Glaucia:

Devo-lhe antes de mais nada desculpas por minha demora em enviar meus comentários a seu livro: A festa tecnológica – o trágico e a crítica da cultura informacional contemporânea. Poderia invocar razões objetivas para esse atraso, como obrigações de família e a necessidade de aproveitar os feriados de fi m de ano para pôr em dia outros compromissos intelectuais. Tudo isso é verdadeiro, mas é preciso acrescentar que um dos principais motivos da demora está na própria natureza do seu trabalho. Ele exigiu uma atenção tão minuciosa, uma leitura tão refl etida, que precisei esperar uma ocasião oportuna para fi xar por escrito as minhas impressões. Mesmo agora, neste período de calmaria relativa, não estou certo de que possa fazer justiça à riqueza de suas refl exões. Por isso vou limitar-me a algumas observações avulsas, sem qualquer intenção sistemática.

O que primeiro me impressionou em seu livro foi sua tentativa de repensar de modo muito próprio a questão da modernidade. Habitualmente ela é descrita em termos weberianos, como um processo que começou no Ocidente por volta do século 17 e que se tornou mais tarde global em seus efeitos, com características como a dominação burocrática racional, o monopólio da violência por parte do Estado e o estabelecimento de um sistema tributário centralizado.

Mas entre essas características, duas são especialmente importantes, o processo de secularização, que Weber chama de dessacralização, ou “desencantamento” (Entzauberung) e o desenvolvimento científi co-tecnológico. De modo geral, Weber considerava esses processos como duas faces da mesma moeda, o que signifi ca que para ele religião e capitalismo eram incompatíveis. Num mundo ainda dominado pela visão religiosa, não havia espaço para o progresso técnico; num mundo já tecnifi cado, não havia espaço para o sagrado. O que você faz é problematizar essa relação, mostrando que ela é infi nitamente mais complexa.

Você começa fazendo uma distinção muito interessante entre modernidade e contemporaneidade. A primeira é dominada pelo trabalho e pela acumulação, bem como pela aplicação da ciência e da técnica ao processo produtivo. A segunda, cujo advento você faz remontar às últimas cinco décadas, é dominada pelo consumo desenfreado, pela dilapidação de recursos, pela tecnologia transformada num fi m em si mesmo, independentemente de quaisquer fi ns produtivos. Na primeira, prevalecia uma cultura da comunicação, enquanto na segunda surgiu uma cultura da hiper-informação, em que os valores da comunicação se dissolveram numa pletora de informações, com o auxílio das novas tecnologias.

Em seguida, você trabalha diferentemente a relação com o sagrado nos dois casos. No primeiro, o mundo dos deuses foi efetivamente expulso pela economia, como imaginava Weber. Foi a secularização. É nesse momento que se dá a relação inversa entre o universo mágico-mítico-religioso e o universo da produção e do trabalho, postulada pela sociologia. Mas na contemporaneidade, segundo o que você nos propõe, assiste-se a um processo ambíguo, em que um impulso radicalmente profano, voltado para o gozo imediato e para os valores terrestres, coexiste com outro, impregnado pela nostalgia do divino.

Esses dois impulsos se condensariam nos objetos híbridos produzidos pela tecnologia, mistos do humano e do não-humano, na medida em que constituem “próteses” do corpo e da mente do homem. Na modernidade, o não-humano da prótese era constituído pelas máquinas, extensões dos braços e dos músculos do homem, enquanto na contemporaneidade é constituído pelos sistemas de informação, extensões computadorizadas do cérebro. Essas próteses são produtos de um homem que é ele próprio um “deus protético”, nas palavras de Freud, ou seja, que não procura mais expulsar Deus, porque se transformou ele próprio em Deus. Ora, ao fundir o humano e o não-humano na prótese tecnológica, esse homem-deus está aludindo, obscuramente, a outra forma de fundir o humano e o não-humano, praticada nas fases mais arcaicas da história da humanidade, em que o não-humano era simplesmente o divino, com o qual o homem primitivo se fundia. Desse modo, se tanto a modernidade quanto a contemporaneidade produziram próteses, a prótese moderna, maquinal, não permitia ao homem ultrapassar o aqui e agora do mundo do trabalho e da produção, enquanto a prótese contemporânea, tecnológica, permite articular uma escuta das origens, além do universo puramente humano.

Acredito que é neste ponto que se situa o que você chama a festa tecnológica, a orgia do consumo que remete a orgias dionisíacas, o mundo contemporâneo do excesso e do excedente que se comunica com um mundo sagrado igualmente marcado pelo excesso e pelo excedente, a violência e a crueldade contemporâneas se interpenetrando com a violência e a crueldade inerentes à Grécia dos primeiros tempos, antes que a metafísica tivesse dado início a seu trabalho destrutivo.

A festa tenta voltar ao trágico, à tragédia de Ésquilo, em que os deuses governavam os humanos sem apelação possível, ou à tragédia de Sófocles, onde já aparece o confl ito entre a ordem humana e a divina, entre a dike encarnada por Antígona e a encarnada por Creonte. É uma tentativa de recuperar a experiência da fronteira, do entre-dois entre o divino e o humano, que caracterizam o trágico. Em vão. A festa não é um verdadeiro retorno à unidade, ao mundo mítico em que conviviam homens e deuses. Ela tenta estabelecer uma comunicação entre o sagrado e o profano, mas sem êxito. Ela não gera nenhum entusiasmo dionisíaco, mas angústia. Angústia motivada, Realangst, no sentido de Freud, não só porque o retorno ao Um não ocorre de fato, mas porque podem existir falsos retornos, em que reaparecem formas degradadas do dionisismo original, como os fanatismos religiosos. Ao mesmo tempo, o mero fato de que a tecnologia contemporânea contenha um potencial de volta às origens é algo de positivo. É uma virtualidade de transcendência embutida no coração da imanência, um aceno e um apelo que nos chegam de épocas imemoriais, problematizando o eterno presente em que estamos mergulhados. É por isso que a festa tecnológica é as duas coisas, promessa e ilusão, segundo o que você propõe, me parece.

Enquanto promessa, a festa aponta para um futuro possível, no qual possamos viver na imanência de um mundo secularizado, sem que se extinga a esperança num mundo melhor, baseado na reconciliação com a natureza. É o sonho da unidade, da fusão com o todo. É uma utopia trans-tecnológica, facultada pela própria tecnologia, na melhor tradição marxista, para a qual o reino da liberdade não se opõe ao desenvolvimento máximo das forças produtivas, mas é sua conseqüência lógica. Voltarei mais adiante a esse assunto.

Mas a festa é também ilusão, no sentido de que o retorno às origens pode dar-se sob a forma da paródia, da repetição mecânica, vazia e ritualizada. Nessa direção, o sagrado volta como sintoma, como retorno do recalcado, e não como experiência viva. A volta ao sagrado não tem um sentido de submissão a forças superiores, mas de transgressão vazia dos limites abolidos que agora separam o humano do divino: hubris, arrogância, desejo sacrílego de usurpar o lugar de Deus. Nesse registro perverso, a tecnologia visa à indiferenciação, mas sob formas que nada têm a ver com a indiferenciação que caracteriza a esfera do sagrado. Um exemplo é a globalização, que nivela todo o planeta. Outro é o pesadelo do mega-híbrido, conexão de todos os meios numa rede única (retorno degradado da idéia do fl uxo, do excesso, da continuidade), em que a tribo universal, sob a égide de um “contrato totêmico”, recebe do Deus-Capital as informações excedentes necessárias ao funcionamento do capitalismo contemporâneo.

Com isso, você dá nova espessura à antítese weberiana que opõe a secularização à tecnologia. Sim, Weber tinha razão quando disse que a modernidade econômica e científi co-tecnológica só pôde se instalar com o recuo do mito e da religião. Mas não, diz você, esse recuo não foi defi nitivo, porque embora o homem tenha feito o luto da perda de Deus –para o qual muito contribuíram Hölderlin, Nietzsche e Freud, daí redundando a liberação de um dos maiores interditos da religião judaico-cristã, o da imagem –, não conseguiu superar a sensação de desamparo em que fi cou mergulhado quando se tornou atheos, isto é, não quando abandonou os deuses, mas quando foi abandonado por eles. Daí que a contemporaneidade seja atravessada por um duplo impulso, o desejo de viver a separação introduzida pelo processo de secularização e a nostalgia da fusão com o divino.

O que fazer diante disso que inicialmente se apresenta como uma contradição? Optar, pura e simplesmente, pela separação? Seria rejeitar grande parte da história humana, enterrar nas criptas do passado experiências e conteúdos semânticos que ainda são relevantes para o presente. Escolher a via da ressacralização? Seria privar-nos dos ganhos de autonomia proporcionados pelo pensamento leigo em face da heteronomia do sagrado. Acolher ambas as soluções, invocando uma suposta lógica nãoaristotélica, além do princípio da não-contradição e do terceiro excluído? Seria uma maneira excessivamente sumária de não escolher coisa nenhuma. Em vez de dar uma resposta, você prefere fazer uma refl exão “preparatória”, encaminhando o pensamento à medida que percorre alguns momentos signifi cativos do pensamento europeu. Você cita vários pensadores, de Kant a Schelling, de Bataille a Heidegger, mas quero concentrar-me em apenas três: Hölderlin, Nietzsche e Freud.

Em Hölderlin, você encontra uma contradição geral no homem, que o faria oscilar entre uma aspiração ao absoluto (fusão, mistura do profano e do divino) e uma aspiração ao limite (separação). A tragédia grega, principalmente a de Sófocles, permitiria a escuta dos limites entre o humano e o divino, apontando para uma necessária separação, para a individuação, para a existência de uma fronteira intransponível entre o mundo profano e o sagrado. Ao mesmo tempo, ela encenava um sonho de fusão entre o homem e o deus, de relativização das fronteiras entre o humano e o divino. Sófocles, gregamente traduzido por Hölderlin, é impulsionado por um duplo movimento, um sair de si em direção ao divino, e um caminhar em direção à Terra. Mas no mundo moderno, essa dualidade não tem mais cabimento. Segundo a sua transmissão de Hölderlin, os modernos, os hespéricos, precisam aceitar a retirada categórica dos deuses, e nela poder ver a necessidade absoluta da separação, passando a ter como tarefa trágica moderna o apropriar-se criativamente do Tempo. Os deuses se foram, e deixaram em seu lugar o Tempo. É um tempo trágico, porque é o tempo da retirada dos deuses, da recíproca infi delidade pela qual o homem se esquece dos deuses e os deuses ficam indiferentes ao homem. E é o tempo puro e vazio de Kant, o tempo como limite, como signo de finitude, que juntamente com o espaço, também puro e vazio, condena a homem a uma percepção meramente fenomênica, meramente espacio-temporal, impedindo-o de ter acesso ao númeno, ao sagrado, ao que está do outro lado da fronteira. Fiel a Kant, o homem hespérico escolhe fi rmemente a via da Terra, da separação.

É na contemporaneidade que a contradição, o antagonismo da dupla aspiração, transforma- se em paradoxo, tornando simultâneo ou permitindo coexistir, mesmo que dissimetricamente, ambos os termos do duplo impulso, o que paradoxalmente pode ajudar o homem trágico contemporâneo a não se esquecer daquilo de que se separou, pois toda separação dói, e só na divisão e no sofrimento a totalidade pode sentir-se a si mesma.

É principalmente através de Nietzsche que você pensa o tema da secularização. Isso pode gerar alguns mal-entendidos, pois uma coisa é o fato sociológico da secularização, ocorrido entre o século 17 e 18, e que assistiu à gradual perda de prestígio das instituições eclesiásticas e à ascensão correlativa da ciência, e outra é o acontecimento fi losófi co da proclamação da “morte de Deus”, feita por Nietzsche mais de dois séculos depois do início do processo de secularização. Os efeitos radicais de ruptura que você atribui a Nietzsche talvez venham mais do processo de secularização que do grito deicida de um fi lósofo isolado, por mais inspirado que ele seja. Materialmente, a morte de Deus já tinha acontecido. Mas do ponto de vista geral de sua elaboração, você tem razão de dar um lugar privilegiado a Nietzsche, pois ele não se limitou a prosseguir o trabalho de demolição de Deus feito pelos fi lósofos materialistas do século 18 (Diderot, d’Holbach, Helvétius), mas demoliu os próprios demolidores, abrindo assim um espaço para outra maneira de pensar o eclipse do divino. O ateísmo clássico correspondeu ao momento do niilismo reativo, que negava os valores divinos em nome dos valores humanos, limitando-se com isso a inverter o niilismo negativo da cultura judaico-cristã, baseado no ódio à vida. O niilista reativo – o assassino de Deus – é “o mais feio dos homens”. O niilismo negativo e o reativo são dois pensamentos do ressentimento. Para ultrapassar o ressentimento, é preciso passar do niilismo reativo para o passivo (passividade budista-cristã) e deste para o ativo, que destrói tudo, e que ao negar as forças reativas transforma a negação em afi rmação. É o triunfo da vontade de potência. Esse triunfo seria impossível sem o eterno retorno, pelo qual o homem se liberta do ressentimento contra o tempo, afi rmando que tudo o que aconteceu no passado foi produto de sua atividade criadora. Em vez de criticar o passado, como fazem os homens reativos, ele se reconcilia com ele, na medida em que o vê na perspectiva de um devir que inclui o presente e o futuro. E em vez de limitar- se a negar Deus, ele prepara a auto-transcendência do Homem em direção àquilo que o ultrapassa, o super-Homem, o homem como homem, construtor de si mesmo, e nesse sentido assume as tarefas que lhe cabem no mundo profano, sem precisar, como o homem reativo, dar as costas ao mundo sagrado.

Finalmente, Freud é decisivo no dispositivo teórico do seu trabalho. Sua noção de festa tecnológica vem evidentemente da noção freudiana do festim totêmico. As duas festas permitem uma intercomunicação efêmera entre o divino e o humano; as duas se baseiam no excesso; ambas se materializam no consumo – consumo das mercadorias e das informações, por um lado, e consumo antropofágico do animal totêmico, por outro lado; tudo gira em torno de um culto, cujo objeto é o Pai, ou um ídolo obsceno representando o Capital; e, nas duas festas, funciona o fenômeno da ambivalência, amor e ódio ao objeto do culto, reverência para com o Pai e triunfo sobre ele. Todos esses paralelismos permitem concluir que a festa tecnológica é uma forma oblíqua de rememoração, pela qual o homem contemporâneo refaz, à sua moda, a festa totêmica celebrada por seus antepassados. Além disso, é de Freud que vem a idéia de que o homem se transformou num Deus protético. A propósito de prótese, achei especialmente interessante o que você escreveu sobre o papel das próteses no ensaio de Freud sobre o Unheimliche, em que aparecem, na análise de um conto de Hoff mann, os óculos do sinistro Coppola, como prótese dos olhos, e a boneca Olympia, prótese de mulher. Os objetos que provocam a sensação de “inquietante estranheza” são objetos da mesmo natureza, híbridos entre o mundo ordinário, profano (consciente) e o extraordinário, sagrado (inconsciente). Não há dúvida de que para Freud o ideal da normalidade psíquica é o de um homem cujos processos mentais são ordenados pelas leis da razão (mundo “profano”) sem que em nenhum momento as forças poderosíssimas que vêm do inconsciente (“sagrado”) sejam subestimadas. Mais que ninguém, Freud contribuiu para a derrocada da religião, e ao mesmo tempo trilhou preparando o caminho para que fi zéssemos o luto pelo trauma da morte de Deus, segundo o que você elaborou.

O denominador comum a esses três autores é que eles escolheram a separação, sem esquecerem os valores da continuidade. Foi a escolha de Hölderlin, para quem a separação é o destino do homem moderno, embora a totalidade perdida subsista como latência dolorosa, como sofrimento. Foi a escolha de Nietzsche, que proclamou a morte de Deus para que o homem pudesse fi - nalmente construir um mundo humano, mas criticou as forças reativas que tinham ignorado a força do sagrado. E foi a escolha de Freud, que por um lado se situava sem ambigüidade no campo do Iluminismo e da modernidade, era ateu e materialista, e ao dissociar-se da idéia do “sentimento oceânico” repudiou do modo mais taxativo a idéia da indiferenciação, mas que por outro lado criou uma disciplina em que o homem civilizado se comunica todas as noites com o homem arcaico e em que cada indivíduo reproduz em seu desenvolvimento ontogenético o drama fi logenético pelo qual a humanidade transitou do sagrado para a separação.

Graças a todos esses precedentes, sua conclusão não podia ser outra. Também você escolhe a separação, ainda que plenamente consciente dos riscos dessa escolha e da incompletude desta decisão que está sempre vindo – e que Hölderlin chama abissalmente de “paciência infinita da separação”. Depois de ter dito que a tecnologia contemporânea tem um rosto de Jânus, com um lado voltado para a terra e outro para o sagrado, você olha de preferência para o primeiro, embora sem ignorar a realidade do segundo. Sua mensagem é que precisamos seguir a via da descontinuidade, da individuação, da imanência. Mas ao seguir esse caminho, não podemos ficar surdos aos ecos que vêm de um mundo indiferenciado, em que habitam a continuidade, a desindividuação e a fusão, porque se isso acontecesse não haveria afi rmação do humano, e sim esquecimento do divino.

Há uma frase de Walter Benjamin que traduz bem o que essa escolha pode ter de angustiante. O projeto do Passagenwerk é “abrir caminhos em territórios em que até agora prolifera a loucura. Avançar com o machado agudo da razão, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas de fl oresta virgem.” Impossível dizer mais claramente que o caminho do homem moderno é construído pela separação, através do trabalho, com um machado que corresponde de perto ao martelo de Nietzsche, com o objetivo de expulsar a violência e a crueldade do mundo dionisíaco, que no entanto não pode ser esquecido pelo lenhador, pois sem isso ele poderia ser capturado pelo horror inerente ao sagrado. Esquecer o divino tem um preço terrível, a volta do recalcado.

Creio que você ouviu minha palestra na puc, em setembro do ano passado, e deu-se conta de como nossas idéias convergem a esse respeito. Mas creio que você vai mais longe. Em minha palestra, eu tinha defendido a tese de que os fundamentalismos religiosos eram tentativas de reagir ao trauma da morte de Deus, seja pela repetição da situação traumática original (uma guerra cósmica entre o bem e o mal, em que as forças do mal tinham experimentado um triunfo transitório), seja pela reconstituição de um mundo imaginário anterior ao trauma, em que reinava a harmonia, e em que o humano e o divino se fundiam. Em sua terminologia, esses fundamentalismos, sobretudo em sua forma terrorista, seriam exemplos do que você chama de retorno degradado do divino, fenômeno inevitável quando não se faz o luto pela morte de Deus. Onde você vai mais longe é na intuição de que existe uma semelhança de natureza entre o fundamentalismo e algo que à primeira vista nada tem a ver com ele, o capitalismo globalizado. Você coloca no mesmo campo – o campo da fusão, da indiferenciação – a hubris de uma modernidade que, na contemporaneidade, transformou a técnica num fi m em si mesmo, e o retorno a Deus pela via dos fanatismos religiosos. Tanto o capitalismo global quanto o fundamentalismo aspiram à indiferenciação. A indiferenciação capitalista é a de um mundo globalizado que expeliu o pluralismo e a diversidade, e a indiferenciação terrorista é a de um mundo unifi cado pela expulsão do Mal e pela derrota de Satã.

Com isso, você desvenda o substrato comum à técnica e ao fundamentalismo, uma pulsão de poder que se manifesta pela destruição do seu objeto, e portanto está a serviço da pulsão da morte.

Essa idéia da presença do sagrado no coração do capitalismo contemporâneo confi gura algo como uma utopia, a tentação de construir um mundo novo sobre o modelo de um arquétipo pré-histórico. Essa idéia aproxima seu pensamento da utopia marxista da superação do reino da necessidade pelo reino da liberdade, através do próprio desenvolvimento da produção e da tecnologia. Esse reino, caracterizado pela dissolução das contradições antagonísticas, é a própria imagem da utopia “totêmica”, que remete ao mundo da horda, anterior ao advento da diferença. É a utopia marcuseana do mundo pacifi cado, regido por Eros, em que a pulsão da vida se funde com a pulsão da morte, e em que o homem se reconcilia com a natureza. Também para Marcuse esse mundo “sagrado” só poderá ser atingido pelo próprio desenvolvimento da técnica. E creio que se pode até pensar numa utopia “lacaniana”, a presença, num mundo dominado pelo simbólico e estruturado pelo Nome-do-Pai, de um mais além do simbólico, mais além das malhas da linguagem e da representação, mais além da lei do Pai, de uma utopia trans-fálica, trans-simbólica, aninhada num “real” inatingível mas irrenunciável, de onde acena a miragem de um gozo Outro, ilimitado, intocado pela ameaça da castração. Esse último tema está sendo trabalhado com muita profundidade por Denise Maurano Mello. São várias fi guras da mesma utopia, que aparece nas entrelinhas do seu livro: a utopia da reconquista do sagrado, a partir do próprio sagrado embutido na contemporaneidade. Pouco importa se esse sagrado é defi nido como algo que se situa além das classes (Marx), além do atual princípio da realidade (Marcuse) ou além do simbólico (Lacan) – é sempre um território localizado do outro lado do limite.

Querida Gláucia, aí vão os comentários que posso fazer no momento, esperando que eles lhe possam ser úteis. Parabéns e obrigado por tudo aquilo que pude aprender ao ler seu belíssimo livro.

Afetuosamente,
Sergio Paulo Rouanet

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