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Resumo
A autenticidade em Heidegger propõe questão central para a Filosofi a. O que é mais próprio, o que os antigos denominavam de essência, eidos, o que determina e obriga o Pensamento. Na psicanálise freudiana, que abriga o imediato e o sensível do afetivo, a autenticidade acolhe o movimento paradoxal e múltiplo das pulsões em seu regime inconsciente. Observemos e aprendamos o que a fi cção pode nos ensinar de modo criativo e que nos obriga a reelaborar a teoria.


Palavras-chave
utenticidade; dois registros do Eu; nu e vestido narrador; Sein de Heidegger; Inconsciente de Freud.


Autor(es)
Chaim Samuel Katz
é psicanalista, doutor em Comunicação (UFRJ), escritor (Nazismo e Psicanálise, Psicanálise e Instituição, Ética e Psicanálise, entre outros).


Notas

1 M. Heidegger. Ser e tempo.

2 M. Heidegger, “das Ding”, Vorträge und Aufsätze, p. 214.

3 S. Freud (1900a), A interpretação dos sonhos. GW, II/III, 573; ESB, V, p. 517. Qualquer citação dirá primeiramente as páginas da edição alemã, Gesammelte Werke. Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main. Fischer Verlag, várias datas. E depois as da edição brasileira, ESB, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução Imago. Rio de Janeiro, várias datas.

4 G. Róheim, 1945. “O Eu é acima de tudo corporal”, dizia Freud.

5 S. Freud (1900a). Seguirei a parte D (“Sonhos típicos”) do capítulo V (“O material e as fontes dos sonhos”), especialmente o item α (“O sonho embaraçoso da nudez”; p. 246ss.; p. 240ss.). Op. cit., vol. V.

6 Não conheço nenhum texto completo em português, por isto uso uma versão alemã, retirada da Internet, Des Kaisers neue Kleider (as citações do texto são, bem ou mal, por mim traduzidas. Os textos entre aspas são traduções). Quanto a Andersen, obtive informações valiosas e atraentes em Harold Bloom, “Great Dane. Hans Christian Andersen wrote dark, timeless fairytales – for children and grown-ups”. Opinion Journal Wall Street Journal. 20/04/2005. Na Internet.

7 E. La Boétie [1549] Discurso sobre a servidão voluntária.

8 Procurei uma notícia sobre o escrito citado por Freud, O Talismã, pequena peça teatral, mas nada encontrei, em nenhuma enciclopédia. Há uma nota na edição alemã das cartas a Fliess (p. 273), onde se diz que tal peça é de 1892. Informa-se na Internet que Ludwig Anton Salomon, dito Fulda, matou-se em Berlim, em 30 de março de 1939, aos 76 anos de idade (muitos judeus se suicidaram depois da ascensão do Nazismo ao poder alemão).

9 O. Andersson, Studies on the Prehistory of Psychoanalysis. The etiology of psychoneuroses and some related themes in Sigmund Freud’s scientifi c writings and letters. 1886-1896, p. 33.

10 W. Benjamin [1929] “A imagem de Proust”, p. 37.

11 W. Benjamin [1936] “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. op. cit., p. 221.

12 S. Freud (1900a), op. cit., p. 246; p. 240.

13 Recordemos que Freud fala do sentimento de vergonha como conseqüência do assassinato do pai primordial. Os irmãos sentem vergonha, uns diante dos outros, por tais atos (é o assassinato do pai que faz dos indivíduos irmãos). Cf. S. Freud (1912-13), op. cit. É o afeto de vergonha, enublado na contemporaneidade, que acompanha o compartilhamento das experiências individuais.

14 S. Freud (1900a), op. cit., p. 249; p. 242.

15 S. Freud (1917d) [1915] GW, X, p. 413. Devo essa indicação ao meu colega Helcio Aranha.

16 Há um testemunho importante, para o pensamento e a constituição de outras corporeidades, no relato pessoal/impessoal de um fi lósofo que “sofreu” implante cardíaco. No seu exergo se escreve, citando Arthaud, o pensador primeiro do corpo sem órgãos: “Nada existe de mais ignobilmente inútil e supérfl uo do que o órgão que chamamos de coração, meio mais sujo que os seres puderam inventar para bombear a vida em mim”. Haja paradoxos… Cf. J.-L. Nancy, L’Intrus.

17 G. Agamben [1995] “Le visage”, p. 107.

18 S. Freud (1900a) “Sonhos sobre a morte de pessoas queridas”. Op. cit., p. 255; p. 247.

19 Idem, p. 260; p. 251. O modelo único de representação de morte deveria ser apenas a morte fi nal, aquela à qual Freud se referia quando citava Shakespeare ou Goethe (“Deves uma morte à natureza”)? Mesmo no interior de uma teoria das representações, “morte” passaria a só ser representável levando-se em conta experiências psíquicas de morte bastante ou até inteiramente distintas. Sabe-se que o entendimento da morte como morte fi siológica se modifi cará com a teoria da compulsão à repetição e as pulsões de morte. Com a teoria da pulsão de morte e da importância constitutiva da disjunção psíquica (Entbindung), ter-se-á que aprender que se morre insistentemente. E que os psicóticos morrem intensamente, desde que seu psiquismo é especialmente disjuntivo. E isso afastará a Psicanálise, defi nitivamente, do primado das representações articuladas exclusivamente em sistema.

20 S. Freud. Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904. Ungekürzte Ausgabe. S. Fischer. Frankfurt, 1986. A tradução brasileira é da editora Imago (Rio de Janeiro, 1986; sem numeração das cartas). Ambas foram editadas por Jeffrey Moussaieff Masson; reelaboração da edição alemã por Michael Schröter e transcrição de Gerhard Fichtner. Doravante, Correspondência Freud-Fliess, o primeiro número é da página alemã; o segundo, da página brasileira. Correspondência Freud-Fliess, carta 132 (07/07/1897).

21 As cartas de Freud para Wilhelm Fliess são constitutivas do que alguns convencionaram chamar de auto-análise de Freud. Cf., por exemplo, O. Mannoni [1967], “L’analyse originelle”. In O. Mannoni, Clefs pour l’Imaginaire ou l’Autre Scene. Se foi ou não, deixemos para outra vez. Mas o argumento aqui diz que Freud transferia para Fliess.

22 Correspondência Freud-Fliess, 272; 255/6.

23 S. Freud (1936a), Carta a Romain Rolland, “Uma perturbação de lembrança na Acrópole”. GW, XVI.

24 Correspondência Freud-Fliess, carta 142 (15/10/1897).

25 Idem, carta 143; 295, 275.

26 Idem, carta 144; 297, 276.

27 Qual humano nasce nu? Como se livrar do sistema de parentesco, dos modos de nominação e da diferença sexual? Tais sistemas são, desde sempre, vestes. Como se tornar órfão e desnudado? Enormes esforços, grandes investimentos…

28 Ver a atual série da TV norte-americana, Six feet under. E, bem antes, The loved one, novela de Evelyn Waugh (1947).



Referências bibliográficas
Agamben G. (1995/2002) Le visage. In: Moyens sans fi ns. Notes sur la politique. Paris: Payot.

Andersson O. (1962) Studies on the Prehistory of Psychoanalysis. Th e etiology of psychoneuroses and some related themes in Sigmund Freud’s scientifi c writings and letters. 1886-1896. Estocolmo: Svenska.

Benjamin W. (1929/1996) A imagem de Proust. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 10. reimpr. São Paulo: Brasiliense.

_____ (1936/1996) O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 10ª reimpr. São Paulo: Brasiliense.

de La Boétie É. (1986) Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1986. Texto completo na Internet www.culturabraliseira.org

Freud S. (1900 a). “A interpretação dos sonhos”. Gesammelte Werke. Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main. Fischer Verlag, ii/iii. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, várias datas.

_____ (1912-13) “Totem e tabu”. esb, vol. xiii.

_____ (1917d [1915] ) “Complemento metapsicológico à lição sobre o sonho”. gw, x.

_____ (1936 a) “Uma perturbação de lembrança na Acrópole”. gw, xvi.

Heidegger, M. (1927/1996) Ser e tempo. Petrópolis: Vozes.

_____ “das Ding”, Vorträge und Aufsätze. Pfulingen. Neske, 1954.

Mannoni O. (1967/1969) L’analyse originelle. In: Clefs pour l’Imaginaire ou l’Autre Scene. Paris: Seuil.

Masson J. M. Sigmund Freud. Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904. Ungekürzte Ausgabe. S. Fischer. Frankfurt, 1986. Reelaboração da edição alemã por Michael Schröter e transcrição de Gerhard Fichtner.

_____ (1986) A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

Nancy J.-L. (2000) L’Intrus. Paris: Galilée.

Róheim G. (1945) Th e Eternal Ones of the Dream. Nova York: International Universities Press.





Abstract
The thinking about authenticity of Heidegger brings about a vital questioning for philosophy. The Eidos, called by the ancients the essence, determines and imposes the thinking. In the Freudian psychoanalysis, which harbor the immediate and the sensitive of the affective, the authenticity welcomes the paradoxical and multiple pulsion (drive) movement in its unconscious regime. We shall observe and learn what fi ction, elaborated by Freud in a creative mode, may lead and teach us to reformulate the psychoanalytical theory


Keywords
authenticity; two registers of the ego; the narrator both naked and full dressed; Heidegger´s Sein; Freud´s Unconsciousness.

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 TEXTO

Multiplicidade e ambivalência da autenticidade

Multiple aspects of authenticity, in particular its ambivalence
Chaim Samuel Katz

Este pequeno artigo se escreve hoje (em 2007), paralelo ao texto falado no “Fórum sobre autenticidade” organizado pela Formação Freudiana do Rio de Janeiro (01/10/2005). A provocação (pro-vocare, chamar a si) do Fórum foi pensar em torno do conceito central de Heidegger, sobre o que é próprio (eigen) ao Dasein, o que (lhe) é autêntico (eigentlich) como propriedade essencial, como o que persevera (Spinoza; Heidegger detestaria minha ilação!) na constituição do Ser. O Dasein é autenticidade do Ser, ensinou Heidegger, o homem enquanto Da-sein é o “pastor do Ser”, sem o qual ele não é (quem ou o que não é? – deixo a frase ambivalente, pois é assim a autenticidade).

O conceito ou pensar sobre a autenticidade permeia todo o livro mais importante de Heidegger [1]. E pode ser apreendido no seu texto sobre “a coisa”, que marcou todo o pensamento do segundo Lacan, desde seu seminário sobre a ética da Psicanálise. Sabemos como Heidegger recusa tanto a imediaticidade como a evidência [2]. Evidência diz em alemão o que é auto-compreensível (Selbstverständlich), o que se põe imediatamente à experiência. Ora, para Heidegger, o auto-compreensível se confunde com o sensorial, que é imediato, o que limitaria o Pensamento. Por sua vez, o Pensamento só existe desde a fundação do que o permite, ou seja, da posta concomitante do homem e do Ser, do que ele chama de da-Sein. Da-Sein, o ser-aí é o que simultaneamente permite e obriga à autenticidade, pois ele é cuidado, Sorge. Dasein se põe permanentemente à busca do que é propriamente, como próprio. Eigen, diz próprio; Eigentlichkeit, o propriamente, que se traduz na fi losofi a heideggeriana como autenticidade. Para falar do que da-Sein é ou pode ser, Heidegger usa o neologismo Selbstseinkönnen, poder-ser o próprio.

Bem, daí a questão que desenvolvo: como pensar a autenticidade na psicanálise freudiana, para quem a imediaticidade das pulsões também obriga o Pensamento? Para as psicanálises, o que é autenticidade, o que é próprio? O que seria o Dasein sem a inumanidade das pulsões?

No livro dos sonhos, Freud escreve que “as moções inconscientes de desejo aspiram manifestar- se também durante o dia, e os fatos da transferência, bem como o das psicoses nos ensinam que elas o fazem através da via do sistema pré-consciente até a consciência, a fi m de dominar o controle da motilidade” [3]. As moções inconscientes de desejo têm sua fonte na vida infantil, ensinou. Contudo, não se trata das vivências infantis em geral, de experiências vividas (Erlebnisse) quaisquer, mas daquilo que na infância é alvo de recalque. Ou seja, o autêntico infantil inconsciente se produz como sistema e diz respeito a como esse sistema se organiza, através do modo do recalque, por diferença com os sistemas pré-consciente e consciente. Freud ensina que a evitação do desprazer dispara o mecanismo de recalque.

Duas emergências do Eu

Podemos pensar, com Freud, que existe um “primeiro eu”, um eu incipiente ou primário, que é inconsciente e corporal, e depende ou deriva da formação dos primeiros anos da infância através do processo de recalque, enquanto um “eu secundário”, que não se restringe ao inconsciente, corresponde a um “eu polido”, eu urbano (polis, cidade, urbe), e é uma instância de controle do infantil. Esta teoria foi pensada por Férenczi e estabelecida por Geza Róheim [4].

Postula-se um quantum de afeto diferenciado referente a cada registro e cabe ao (que podemos chamar de) “eu secundário” domesticar isso que podemos chamar de “eu primário” – que é infantil na sua dinâmica, econômica e tópica – através dos processos de inibição.

Claro, os freudianos sabemos que se trata do afeto da sexualidade, pois desde sempre o corpsiquismo está à busca de satisfação. Tal chamada experiência de satisfação primária não se detecta apenas pelos ou nos regimes empíricos da sensibilidade, ela se marca fantasmaticamente, de modo autêntico e a ser permanentemente trilhado ou retrilhado. Daí o se repetir das pulsões, construindo objetos impossíveis de fi nalização, obrigados à pura repetição.

Na Traumdeutung, Freud elabora uma organização desejante recalcada como determinadora, domesticadora das pulsões, regulada através de processos, já que ele parece recusar, nesse momento, o conceito de que as pulsões ou instintos, em sua forma imediata, por suas ocupações (Besetzungen) insistentes e permanentes, também constituem o sistema ou organização inconsciente. Ele postula que só o que foi recalcado pode constituir o Inconsciente como sistema.

Pois bem, mas podemos aprender que, nesse momento da Traumdeutung, Freud também pensa a emergência do inconsciente como sendo uma potência e manifestação do individual, desde o indivíduo, um indiviso, não divisível. Tal individual nasce (teoricamente, no modo freudiano de teorizar) com e como um corpo próprio e particular, simétrico aos corpos examinadosidealizados pela Fisiologia médica da época.

Por exemplo, a transferência, o über tragen, “conduzir-para-além-de”, viria depois na formação e emergência de tal indivíduo. O indivíduo, que investe desde sempre, só fi caria disponível para transferir depois de (se) experimentar no modo infantil recalcante. E tal indivíduo será teorizado como corpo psíquico único e unitário, com afetos e representações individuais, representações e afetos que evoluiriam simultaneamente, desde um corpo nascido da mãe própria, mãe da geração e da reprodução, pertencendo a uma individualidade corporal. Ou, para dizer melhor, desde os encontros das forças pulsionais, produzem-se as fantasias inconscientes, desde as quais as pulsões se organizam. Aí estará o Wunsch, o desejo e suas especifi cidades.

Elaborando assim a emergência do inconsciente como corpo próprio e do corpo próprio como inconsciente, Freud postula o “ser infantil”, de modo específi co. Ou seja, o criador da teoria psicanalítica dos sonhos se vê levado a pensar o infantil não apenas como inconsciente em sistema, mas como inconsciente de experiências infantis recalcadas desde uma experiência individual de experimentar. Ele elabora a constituição do infantil como produto de experiências cronológicas da criança individualizada, experiências vivenciais assujeitadas ao recalque. Na passagem, na transmutação das pulsões para a ordem do recalque, aí estaria a autenticidade.

Visível e invisível

Vejamos um exemplo, importante [5]. Freud acompanha e elabora um conhecido conto de Hans Christian Andersen – escritor dinamarquês de quem agora se comemoraram duzentos anos de nascimento (nasceu em Odense, pequena cidade perto de Copenhague, em 02/04/1805) – chamado “As novas roupas do Imperador” [6]. Tratase, em resumo, da história de um Imperador preocupado unicamente com suas roupas e vestimentas, a ponto de seus súditos dizerem dele, permanentemente: “o Imperador está no guarda- roupa”. E que um dia sabe da visita ao seu reino de dois homens (impostores certamente) que apregoam fazer as mais maravilhosas roupas existentes, roupas visíveis apenas para os homens que não fossem idiotas e que exercessem adequadamente suas atividades.

O Imperador, além de só se preocupar com seu guarda-roupa, fi ca fascinado com a dupla qualidade que as vestimentas propiciariam ao seu usuário e convoca os dois homens para fabricá- las, dando-lhes bastante dinheiro para que teçam as vestes. Os dois impostores, segundo o conto, tecem o invisível, pois tal tecido é inexistente, e eles fi cam com o dinheiro e o ouro recebidos. Mas tecem concomitantemente seus argumentos, sua formidável retórica.

As roupas ficam prontas e o Imperador as veste, roupas que são simultaneamente visíveis e invisíveis, e se vê nu diante do espelho. Para não enquadrar a si mesmo nas qualidades negativas de idiota e displicente, ou incompetente em sua atividade, ele “vê” as roupas e comenta que são as mais maravilhosas que já conheceu. Chama um ministro querido para admirá-las. Também esse seu velho e favorito ministro não vê as roupas; contudo, não querendo passar por idiota e displicente, confessa seu espanto positivo diante da visão de tal maravilha. Do mesmo modo que o povo em geral, que está pronto para ver tais vestimentas maravilhosas, alcançado ou fundado que é pelas formidáveis notícias.

As vestes ficam prontas, leves como teias de aranhas (“es ist so leicht wie Spinnwebe”), invisíveis em sua quase imponderabilidade, e o Imperador se põe a desfi lar com tais adereços, vestido de cueca, mas usando a roupa visível-invisível.

O povo assiste encantado. Contudo, enquanto o Imperador desfi la, “diz fi nalmente uma pequena criança: ‘mas ele não está vestido’. ‘Ouçam a voz da inocência’, diz seu pai, que cochicha aos outros o que a criança disse”. Os populares, aqueles mesmos que antes não queriam passar por idiotas ou displicentes por não enxergarem as maravilhosas vestes, ecoam a voz da criança e o comentário de seu pai.

O Imperador reconhece sua tolice e volta ao castelo envergonhado, desnudado de verdade. Na seqüência, os castelões procuraram pelos impostores, “que já não estavam ali”, fugiram. Podemos pensar que se invisibilizaram: nunca o invisível é visível desde o início. O argumento parece como um subproduto fi ccional ou constituinte da “servidão voluntária” [7]. Neste caso, os dois impostores teriam submetido o rei que, por sua vez, submete seus súditos. Mas foi denunciado por um menino. Então, quem é o soberano absoluto? Existe algum?

O que Freud buscou em tal conto, que interpretou como se fosse um sonho, é a confi rmação da sexualidade infantil, que se manifesta repetidamente e de modo incessante, bem como a postulação da curiosidade sexual infantil, que permanece na maturidade. Infantil destinado à repetição, que não se cala diante da ordem do recalque e que, diferentemente da dialética de Hegel, não se supera em etapas posteriores e superiores. Além disto, Freud postulará sua semelhança com a estrutura dos sonhos, o que nos dá outra dimensão, intensiva, dos sonhos.

Acurado observador, Freud nota que o conto de Andersen é uma variação de um conhecido e popular conto de fadas e não um conto original e único. O que o interessa é o motivo ou o tema, o conteúdo de tal conto, que ele interpreta como um sonho ou paralelo a um sonho, que estaria – em outra versão – versifi cado por Ludwig Fulda em 1893 [8].

Na Traumdeutung, Freud postula que os sonhos se signifi cam, só ganham signifi cado quando narrados pelo próprio sonhante, pois somente um próprio (Selbst, eigentlich, “o si mesmo”, o autos, que signifi ca no grego arcaico o que é “feito pelas suas próprias mãos”) pode delinear e ajudar a defi nir o quadro, o ambiente psíquico onde eles se tornam signifi cáveis. Ou seja, se sua autenticidade requer a regressão à infância, ela deve ser intensifi cada, precisa da narrativa e das associações do sonhador autos, ele mesmo. Na primeira pessoa e desde seu corpo próprio individual, do corpo (e da voz) do narrador.

Inicialmente, ao começar a construir a psicanálise, Freud postulou “a identidade da histeria em todos os tempos e lugares” [9], ou seja, afi rmou a imanência e pertinência do aparelho psíquico, em quaisquer épocas ou eventos. Mas, concomitantemente, impôs a presença do narrador e a narrativa desde sua voz, a expressão em “voz própria”. Foi assim com as chamadas histéricas, que deveriam dirigir o caminho para a cura através de suas narrativas, desde suas próprias experiências ou experiências próprias. Recuperar a história perdida, suas reminiscências, ensinou Freud, só seria possível através da narração em torno do que é esquecido pelo próprio, pelo Selbst.

O narrador ativo, reconstrução da narrativa e do próprio narrador

Haveria que chegar a um esquema totalizador, onde a história do narrador faria sentido, onde ele seria autêntico desde sua coerência. Os psicanalistas sabemos que tal duplo modo (importante, importante) de construir a Psicanálise trouxe ao mesmo tempo a questão de quando o narrador não pudesse fazer suas narrativas pela lógica do sistema psicanalítico (como o fazem ou deixam de fazer os chamados perversos e psicóticos) e, especialmente, com sua capacidade, do próprio narrador, de transferir fantasmaticamente. Além do que, sabemos que toda narrativa é uma tentativa de reconstruir o que nunca foi completo ou totalizado, e a tentativa produz seu próprio narrador.

Duas questões se colocaram de início. Se as narrativas se escutam unicamente como representações, só seria autêntico o que se encaixasse no sistema geral de representações. Logo, o narrador deveria narrar representacionalmente, conjuntando as narrativas para totalizar tematicamente o sistema psíquico que as permite, sistema que constitui a própria possibilidade de narrar. Ou seja, os que não quisessem refazer suas histórias de vida, suas lembranças e memórias desde as expectativas teóricas do psicanalista, os que não pudessem ou soubessem transferir, estariam fora do campo psicanalítico.

Do mesmo modo, a escuta psicanalítica só precisaria ouvir as narrativas sob forma de representações, e se interessaria apenas pelos narradores assim produzidos. E, como sabemos por defi nição, tais narrativas assim delineadas têm que ter uma seqüência lógica, conjuntiva (gebindet, constituída de Bindungen, conjunções), de ligações organizadas tematicamente.

Mas, segunda questão, no quadro que desenhamos acima, com nosso Imperador e suas preciosas roupas, vemos que a lembrança individual não tem o que contemplar por respeito a algum tema preciso. Pois, de saída, o Imperador é sonhado, por si mesmo e por seus súditos, no modo incoerente dos sonhos.

Também por dois outros motivos, que sigo primeiramente com uma citação de Benjamin:

o importante, para o autor que rememora, não é o que ele [o próprio] viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência… Pois um acontecimento vivido é fi nito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” [10].

Contudo, nesse momento do que nos propusemos a pensar, temos que considerar o signifi cado plural da fi cção de Andersen, pois ela se encontra num campo de narrativa que pode ou ainda pode ser compartilhada com os outros, é uma Erfahrung.

E seguimos com a noção proustiana de memória involuntária, que podemos entender como desassociação livre, pois ela não depende do que Freud chamava de “histórias de vida” com seus temas representacionais, na medida em que sempre e inúmeras vezes criamos, inventamos nosso próprio passado. Como indaga o mesmo Benjamin, se não é preciso

perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando- a num produto sólido, útil e único? [11]

Na edição de 1925 da Traumdeutung, Freud se achega a tal modo de formular a questão, dizendo que “[ao menos] num caso, nosso trabalho interpretativo é independente das associações [do narrador], a saber, quando o sonhador emprega elementos simbólicos no conteúdo do sonho” [12]. Mas, ensina, só devemos considerar os sonhos onde as situações provocam vergonha no sonhador.

O que são tais “elementos simbólicos do conteúdo do sonho”? E por que provocam “vergonha no sonhador”? Ou seja, as representações podem se verifi car de modo fora da consciência daquele que representa, o “representador”, mas é preciso a presença de seu afeto de vergonha. Ou seja, presença da representação acompanhada da presença do sentido do afeto! [13]

Aqui Freud introduz a descontinuidade de uma memória múltipla do sonhador. Para entender/interpretar o conto de Andersen, ele aponta a contradição “tão usual nos sonhos” entre “o embaraço envergonhado do sonhador e a indiferença da multidão”. Por quê? Pois “o sonhador é o próprio Imperador e o impostor é o sonho, a tendência moralizadora revela um conhecimento obscuro disso, que o conteúdo latente diz respeito a desejos proibidos ilícitos, que foram sacrifi cados pelo recalque” [14]. Sendo os sonhos a realização do desejo ou de desejos, eles dizem respeito à infância, onde o sonhador podia se exibir aos outros, sem ser censurado.

O afeto de vergonha, quase desaparecido na contemporaneidade, acompanha o compartilhamento das experiências individuais

Porém, temos pequena questão. A exibição do Imperador é um problema ou manifestação de ordem patológica, do sofrimento (pathos) visibilizado num corpo nu? Talvez. Ou é também a mostração do corpo próprio, um corpo próprio sem artifícios, uma expressão para dizer a vontade de potência do corpo, sem amarras?
A respeito da teoria dos sonhos, lemos em Freud:

Devemos acrescentar que, quando [o “homem”] vai dormir, dá-se um inteiro desnudamento similar no seu psiquismo, desnudando-se de todos os invólucros de seu corpo, daquilo que é um complemento de seus órgãos corporais, como os óculos, perucas, dentaduras etc. O dormir é uma reativação somática da paragem do corpo materno com a realização do estado de repouso, calor e ausência de estímulo [15].

Para meu mestre vienense, o sonho regride à infância e diz respeito unicamente a um corpo individual, corpo primeiro, sem adições nem artifícios, corpo do indivíduo, individual, sem nascimento com os outros, não considerando a alteridade.

Corpo natural e “ser próprio”

Na obra freudiana, tal naturalização do corpo corresponde, muitas vezes, à naturalização do psiquismo, um modo primeiro de dizer a autenticidade, a Eigentlichkeit do corpo psíquico. A regressão onírica chegaria ao corpo individual nu, sem assistência dos outros, amparado em si mesmo, posto isoladamente desde seu modelo originário, que é o da vida intra-uterina. Mas, quem é na vida intra-uterina sem a mãe?

Lembremo-nos, colocando no nosso livrinho de notas necessárias para uma próxima discussão, que Férenczi afi rmou que o corpo próprio se faz através dos mecanismos de introjeção (e projeção) primária(s), onde o outro está sempre presente. Ou seja, o “ser próprio”, o Selbstsein precisa da experiência da alteridade para se afi rmar. Mesmo quando pensamos sobre animais individuais, qual pássaro existe sem se exibir à sedução/desejo de ser seduzido pelo outro, que ninho se faz sem um adorno, uma estética extra-corpo que constitui autenticamente as inúmeras modalidades de vida, de se determinar para e pelos outros?

Inexiste a natureza, disse Lucrécio, o mestre materialista implacável, os “humanos”, os modos de subjetivar é que construímos tal idéia.

Deixemos temporariamente a questão da alteridade e indiquemos os outros tecnológicos que constituem nossa corporeidade própria. Devemos pensar por relação às novas questões que as tecnologias contemporâneas impõem ao que é o se fazer corpo e ao se pensar corporeidade. Será preciso que os psicanalistas acompanhemos melhor este novo estado de coisas coetâneo, que inclui desde fi lhos inseminados artifi cialmente e outros órgãos corporais fabricados ou retirados de outros corpos (e os futuros clones) até próteses e adições corporais antes insuspeitadas (hoje em dia fabricam-se asas humanas aderidas ao chamado corpo próprio individual; fi nalmente os anjos existem e são humanamente fabricados! Xenófanes e Feuerbach, novamente, estão certos).

Questionar nossa teoria desde o que é hoje a sexualidade no pensamento atual é importante e teremos que aprender a fazê-lo. É preciso pensar se existe tal homem natural e individual à moda de um certo Rousseau, pois este mesmo sempre postulou que o humano se faz através do afeto da piedade, da compaixão, que obriga e impõe inclusão do outro humano, corporalmente delineado e tematizado. E nossos afetos pelos artefatos tecnológicos que nos constituem?

Tecnologia e transformações na teoria psicanalítica

Espanta que, durante tantos anos, não se tenham escrito ensaios ou comentários psicanalíticos sobre a função autêntica, autenticamente constitutiva, de óculos, chinós, dentaduras, próteses, calços, espartilhos, muletas, perucas, apliques, cirurgia plástica de embelezamento, adereços etc., objetos de extensão, atualmente corriqueiros. Como encaixar em tal naturalidade, presumida teoricamente, as próprias próteses do maxilar de Freud, vítima de um câncer insidioso?

Reduzir os chamados artifícios à pretensa função de um narcisismo abstrato da contemporaneidade não é apenas uma insufi ciência psicanalítica, mas uma confi ssão de que temos pouco direito ao presente, com suas questões mais pungentes. Isto, no regime da correção de corpos fi siológicos, da produção hodierna de novas corporeidades. É imaginar, para o efeito dessa teorização por vezes empobrecedora e redutora, mas vigente pelo critério psicanalítico das generalidades, que o corpo é e só pode ser verifi cável desde o nascimento supostamente fi siológico do indivíduo e sua gênese imutável; modo sumamente empobrecedor de elaborar qualquer vida ou (especialmente) o viver humano, a constituição bem reduzida de um modo de subjetividade.

O que dizer quando um corpo depende inteiramente de um artifício tecnológico, para ser um corpo vivo e poder se elaborar e expandir, como é o caso de um implante qualquer, mormente um implante de coração? [16]

Sabemos que a chamada vida intra-uterina é também uma vida de muitas e muitas elaborações. Vida que será capturada politicamente e socialmente, tecnicamente e culturalmente, politicamente, já que aprendemos que a vida simples, a mera vida, a vida nua, mera vida (que aprendemos com o conceito de blosses Leben de Benjamin; com a nuda vita de Agamben) é apropriada desde mecanismos de captura nos vários regimes da vida social (bio-poderes, Foucault), e que estes nos ligam, nos conjuntam profundamente às articulações institucionais, jurídicas, políticas, de saber. E tecnológicos.
Como ensina o grande fi lósofo italiano:

Pois o homem não é ou não deve ser uma essência ou natureza nem um destino específi co, sua condição é mais vazia e insubstanciável: a verdade. Para ele, o que fi ca escondido não é alguma coisa por detrás da aparência, mas o próprio fato de aparecer, o fato de ser apenas o rosto. Levar a aparência à própria aparência é a tarefa da política [17].

O que chamamos de humano nasce também e sempre amparado pelos outros, mesmo quando tal amparo seja desamparador e escravizante, como nos casos das vidas nuas. Quando a vida social determina indivíduos ou/e grupos que podem ser simplesmente eliminados, não apenas da existência, mas da vida social validada, que origem psicogenética garante uma suposta emergência individual?

O desejo não é unitário, segundo aprendemos com o próprio Freud, não se realiza de um único modo e imediatamente, como pensam alguns, para quem no saber psicanalítico sua fonte originária e única de signifi cação estaria nas vivências infantis a serem recordadas.

O infantil é múltiplo e permanentemente insistido. Como ensinou Freud: “Quando alguém, entre manifestações dolorosas, [ou] sonha que seu pai ou sua mãe, irmão ou irmã morreram, eu não usaria este sonho como prova de que ele deseja tal morte agora. A teoria dos sonhos não exige tanto; contenta-se em inferir que – alguma vez na infância – ele teria desejado sua morte” [18]. Ou seja, o infantil se recria permanentemente, incessantemente, em modos parciais. Morte como afeto é distinto de morte como representação fi nalizant; o infantil insiste, persevera.

Postulava Freud que as fantasias que se apresentam agora nos sonhos são da ordem infantil cronológica, tendo se constituído numa época remota da vida do sujeito. Mas o desejo de morte não diz respeito apenas a representações adultas do presente, pois os sentimentos hostis (Feindseligkeiten) são bem mais freqüentes na criança do que se imagina, concluirá o próprio Freud. Enquanto uma representação adulta de morte se faz desde o enterro, à gelidez do cadáver, à sua decomposição e ao “terror do nada sem fi m” etc., a representação das crianças diria respeito também aos impulsos hostis, ao desejo de apagar temporariamente um adversário, e até mesmo ao querer a conservação da vida (um menino deseja que a mãe, depois de morta, seja mumifi cada, para que possa permanecer, não morrer, se voltar à eternidade) [19].

Assim, do mesmo modo que Freud nos ensinou que o conto de Andersen é múltiplo, uma versão das muitas versões possíveis, devemos questionar o que é autêntico, aquilo que seria próprio por relação a uma das múltiplas narrativas. Sigamos.

Criança e afetos paradoxais

Um exemplo se escreve no próprio texto freudiano sobre as roupas do Imperador. “A criança também emerge no conto de fadas, pois foi um grito súbito de uma criança pequena [que viu a nudez] ao verifi car ou se ver no conto ou versão de Andersen: ‘Mas ele não está usando nada’ ”. Observo que Freud não fala de uma pequena criança, mas de “a criança”, das Kind. Postulo que essa criança é também a criança infantil do Imperador, ou seja, ao lado da criança imperial que desfi la se exibindo, existe aqueloutra que grita, “ein kleines Kind”; uma criança pequena, “a voz da inocência”, denunciando a exibição e pedindo contenção ao exibicionista. E que constitui o Imperador de modo tão fundamental, que “ele” (o conto ou o sonho impostor, como quer o nosso, ao menos o meu, mestre) é incapaz de seguir adiante com o desfi le.

Denunciada/o na sua nudez, a narrativa pára o séquito exibicionista, o Imperador volta para o castelo e seus camareiros vão à procura dos dois fabricantes do invisível, que tinham fugido: “E os camareiros vão e procuram os impostores, que já nem estavam aí”. O infantil denuncia não apenas a nudez, como a impostura; mas os impostores já não estão: este é o exercício da ilusão, da mais autêntica.

Mas a ilusão permanece, no modo paradoxal. Ou seja, simultaneamente à exibição da criança do Imperador, o infantil recalcado de sua infância exibicionista, está a inibição da criança, que tem sua fala ecoada por algum pai. Ambas as crianças são, inseparavelmente, o infantil do Imperador. Uma exprime exibição, outra, inibição, simultaneamente e inseparavelmente.

Pode-se indagar se essa minha versão não é mais e apenas um arranjo semântico, entre tantos outros possíveis, para apontar para as difi culdades do momento da teoria psicanalítica ou, ao menos, de uma investigação do que seria próprio, do regime de autenticidade psicanalítico, Eigentlichkeit.

É, mas também não é, e podemos observar isso com outro exemplo, na intimidade freudiana, numa elaboração inconsciente, num momento muitíssimo importante da criatividade de Freud. Trata-se de uma carta, onde ele cita os mesmos escritos de Andersen e Fulda, para dizer que são interpretações equivocadas de desejos [20] (relembro que sua correspondência com Fliess é concomitante à elaboração da Traumdeutung [21]). No início da mesma carta, escreve Freud:

Sei que no momento sou um correspondente incapaz, sem direito a nenhuma reivindicação, mas não foi sempre assim e não será [sempre] assim. O que aconteceu em mim, ainda não sei; qualquer coisa (irgend etwas) do mais profundo das profundezas de minha própria neurose se insurgiu contra a compreensão das neuroses e, de qualquer modo (irgendwie), você está envolvido [22].

No exato momento em que Freud vivencia sua própria inibição para a produção, reconhece a transferência com Fliess (mesmo sem ainda nomeá- la como conceito, sem poder sabê-la como tal). Ou seja, a reprodução dos desejos infantis se dispõe diferentemente da produção adulta, teoricamente elaborada.

Ou ainda, Freud confessa ao amigo Fliess sua própria inibição infantil de escrever, sua restrição produtiva, em vez de afi rmar seu exibicionismo. Muito antes de seu conhecido escrito de 1936, sobre seu transtorno de memória na Acrópole [23], pode-se entender tal afi rmação como o desejo e o temor concomitantes de superar o pai. Ele redigia a Traumdeutung, e tinha difi culdades em elaborar seus conceitos muitíssimo originais. Mas seus sentimentos, nessa carta transferencial a Fliess, são de uma difi culdade da qual ele pode falar, narrar, mesmo quando não os conceitue ou elabore psicanaliticamente.

Freud não falsifi ca eventos passados, para enfrentar seus sentimentos de desrealização (Entfremdungsgefühle, sentimentos de estranhamento, como escreve na carta a Romain Rolland), mas os aceita e segue adiante na produção conceitual da Psicanálise. Três meses depois dessa carta, ele enuncia, no modo teórico, o “poder de atração do rei Édipo, apesar de todas as objeções que a razão erige contra as pressuposições fatuais” [24]. Bem como anuncia o reconhecimento de resistências, “que me aprisionam e arrastam por todas as épocas, numa veloz associação de idéias” [25]. Apesar do medo de que Fliess, seu grande “transferencista”, não vá apoiálo em tais formulações: “Querido Wilhelm! Estou tão contente, por receber suas notícias novamente (é a terceira [carta] desde Berlim), que afastei todas as idéias de desforra [da parte de Fliess]” [26].

Portanto, no encontro com o outro, e com o Outro, se expressa também uma inibição e não apenas a exibição que se espera, que a expectativa teórica impõe, inúmeras vezes, acerca da infância. Pulsões não são unicamente exposição ou exposições de se mostrar aos outros, recuperar um sentimento de nudez onde o homem estaria disponível “como no nascimento” [27]. Pulsões não têm alvos, Ziele, únicos. São sempre e também intensidades, ritmos, oscilantes. Multipolarizações.

Falta de vergonha = narcisismo?

Nas sociedades sem-vergonha em que vivemos, onde não há ou há pouca inibição para a exibição dos corpos nus, constituindo-se no que alguns psicanalistas chamam de “sociedades narcisistas”, essas que teriam seus corpos nus e imediatos como modelos a serem representados, quais são os corpos exibidos (exibicionados)? Corpos que representam um padrão de beleza única, com idades e padronizações marcadas, como qualidades a se reproduzirem infi nitamente, desde a infância até a morte. Corpos que são fotografados e reconhecidos fi siognomonicamente desde o ultra-som no ventre, até serem maquiados belamente depois da morte [28]: não corpos quaisquer, produções totalizantes.

Pensemos se as sociedades onde se produzem tais padrões obrigatórios não são também as mesmas sociedades, como no caso atual da brasileira, onde seus líderes se apropriam, despudoradamente, dos bens de todos, condenando a imensa maioria da população à fome permanente, ao extermínio infi ndo. Não há culpa, nem vergonha, inexistem limites que contenham tais atitudes e investimentos; que, contudo, não merecem a mesma atenção e consideração da teorização psicanalítica, pois seriam situações ditas não-sexuais, sem infância que as justifi casse.

O que seriam o autêntico e a autenticidade? O que merece teorização?

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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