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ÍNDICE TEMÁTICO 
39
A psicanálise e o mal-estar contemporâneo
ano XX - dezembro de 2007
192 páginas
capa: Marilia Kranz
  
 

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Resumo
Este trabalho, exposto à Comissão de Admissão do Departamento de Psicanálise do Ins tituto Sedes Sapientiae em 2006, focaliza a problemática da permanência e da mudança no registro das identifi cações. Baseado nas idéias de Piera Aulagnier, mostra – por meio do relato detalhado de um longo percurso analítico – de que modo o mergulho na própria história contribui para o remanejamento das identifi cações e para a aquisição de uma maior liberdade interior.


Palavras-chave
identifi cações; permanência; mudança; complexo de Édipo; imagos paterna e materna.


Autor(es)
Cláudia Andréa Gori
é psicanalista, membro do Depar tamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.


Notas
1 Artigo publicado pela primeira vez em 1965, in Cahiers Laennec.

2 P. Aulagnier, “A propósito da realidade: saber ou certeza”, p. 233.

3 P. Aulagnier, “Os dois princípios do funcionamento identifi catório: permanência e mudança”, p. 188.

4 P. Aulagnier, “Os dois princípios do funcionamento identifi catório: permanência e mudança”, p. 188.

5 P. Aulagnier, “Um discurso no lugar do “Infans” (T0-T1)”, p. 216-7.

6 Ibid. p. 217.

7 P. Aulagnier, “Condenado a investir”, p. 291.

8 P. Aulagnier, “A propósito da realidade: saber ou certeza”, p. 236.

9 P. Aulagnier, “Um discurso no lugar do ‘Infans’ (T0-T1)”, p. 221.

10 P. Aulagnier, “Um discurso no lugar do ‘Infans’ (T0-T1)”, p. 222.

11 Ibid. p. 222.

12 P. Aulagnier, “Os dois princípios do funcionamento identifi catório: permanência e mudança”, p. 192.

13 P. Aulagnier, “O conceito de potencialidade e o efeito de encontro”, p. 234.

14 P. Aulagnier, op. cit., p. 233.

15 P. Aulagnier, “As primeiras entrevistas e os movimentos de abertura”, p. 197.

16 P. Aulagnier, op. cit., p. 197.

17 P. Aulagnier, “O tempo da interpretação”, p. 12.

18 P. Aulagnier, “A propôs du transfert: le risque d’excès et l’illusion mortifère”, p. 431.

19 P. Aulagnier, “O tempo da interpretação”, p. 15.

20 P. Aulagnier, “A propósito da realidade: saber ou certeza”, p. 247-8.

21 P. Aulagnier, “Historiadores em busca de provas”, p. 209.

22 P. Aulagnier, “A propósito da realidade: saber ou certeza”, p. 236-7.

23 P. Aulagnier, op. cit., p. 233.

24 P. Aulagnier, op. cit., p. 234.

25 P. Aulagnier, “O tempo da interpretação”, p. 12.

26 P. Aulagnier, “ O tempo da Interpretação”, p. 15.

27 P. Aulagnier, “Historiadores em busca de provas”, p. 208.



Referências bibliográficas
Aulagnier P. (1976) A propôs du transfert: le risque d’excès et l’illusion mortifère. In: Coll. Savoir, faire, espérer. Bruxelas: Publicações das Faculdades Universitárias Saint-Louis.

_____ (1989) Historiadores em busca de provas. In: O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro. Do discurso identifi cante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta.

_____ (1989) O conceito de potencialidade e o efeito de encontro. In: O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro. Do discurso identifi cante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta.

_____ (1989) As primeiras entrevistas e os movimentos de abertura. In: O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro. Do discurso identifi cante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta.

_____ (1989) Um discurso no lugar do “Ifans” (To-T1). In: O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro. Do discurso identifi cante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta.

_____ (1990) A propósito da realidade: saber ou certeza. In: Um intérprete em busca de sentido I. São Paulo: Escuta.

_____ (1990) Os dois princípios do funcionamento identifi catório: permanência e mudança. In: Um intérprete em busca de sentido II. São Paulo: Escuta.

_____ (1990) Condenado a investir. In: Um intérprete em busca de sentido I. São Paulo: Escuta.

_____ (1996) O tempo da interpretação. Revista Psicanálise e Universidade n.4, São Paulo.





Abstract
This paper was presented to the Admission Committee of the Department of Psychoanalysis of the Instituto Sedes Sapientiae. It focuses on the problem of permanence and change as related to identifi cations. Using Piera Aulagnier´s ideas, it delves into a case history and shows how a plunge into one´s history can contribute to a reshuffl ing of identifi cations and to the acquisition of greater inner freedom.


Keywords
identification; permanence; change; Oedipus Complex; father and mother imagoes.

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 TEXTO

Fragmentos da análise de Rafael

a singularidade do trabalho de historiar


Fragments of Rafael
the singularity of the work of the historian
Cláudia Andréa Gori

Neste trabalho, pretendo enfocar um dos aspectos da problemática identifi catória, que é a questão da permanência e da mudança. Para tanto, lançarei fragmentos de um caso clínico, que serão iluminados com base nas postulações de Piera Aulagnier sobre os princípios de permanência e de mudança, apresentados em seu texto Os dois princípios do funcionamento identifi catório: permanência e mudança, datado de 1984 [1].

Aulagnier considera que, antes que o Eu faça sua primeira aparição na cena psíquica – sob a forma de um Eu ideal – ele é falado e investido, antecipadamente, pelos enunciados que testemunham o desejo dos pais por esta criança e constituem uma primeira imagem identifi catória que antecipa o que será enunciado pelo Eu, ainda ausente.
Para a autora,

é próprio do Eu não poder apreender-se senão sob a forma de um saber do Eu sobre o Eu, só podendo existir pela apropriação de uma série de enunciados identifi catórios cujo detentor exclusivo é o discurso, e que colocam, concomitantemente e numa relação de reciprocidade, aquilo que volta à psique como primeiras imagens do Eu e do objeto exterior a ele e investido por ele [2].

Assim, para que o Eu possa esboçar o primeiro capítulo de sua história, representando e tornando pensável um tempo anterior à sua própria existência, ele é obrigado a fi rmar alianças temporárias com o Eu parental, ao qual caberá a tarefa de “[…] assegurar ao Eu infantil ser reconhecido através de suas próprias modifi cações, ajudando-o na escolha das cláusulas, a fi m de excluir aquelas que fazem parte do impossível e aquelas que caem sob o signo do interdito” [3].

Dessa maneira, o Eu pode reconhecer-se naquilo que ele se torna, apesar daquilo que de si mesmo e de seus objetos se modifi ca, ao longo de seu percurso identifi catório, desde que ele possa ancorar-se em um ponto de partida fi xo, que se encarrega da garantia de sua singularidade.
A autora considera, ainda, que

[…] a saída do tempo da infância coincide com a instituição de uma redação conclusiva referente às cláusulas não modifi cáveis do compromisso, cláusulas que garantem ao Eu a inalienabilidade de sua posição no registro simbólico, ou se preferirmos, na ordem temporal e no sistema de parentesco [4].

Segundo Aulagnier, o Eu é o redator de um com promisso identifi catório, sendo que o conteú do da primeira parte de suas cláusulas – a dependente das alianças temporárias com o Eu parental – não deverá mudar, ao passo que o conteúdo das outras partes deverá permanecer modifi cável para assegurar o futuro do Eu. Parafraseando Freud, a autora acrescenta que o princípio de permanência e de mudança são os dois princípios que regem o funcionamento identifi catório.
Ela considera também que o Eu
[…] percebe que ele nunca é totalmente idêntico àquele que ele foi, mas que este que foi é o único que pode lhe dar acesso a um certo conhecimento do que é e lhe prometer um futuro possível. […] essa necessidade de preservar a memória de um passado como garantia da existência de um presente, não pode ir mais além […] do momento em que o eu surgiu na cena psíquica [5].

No entanto, a autora ressalta que o Eu – por meio de seu próprio corpo, de suas inscrições e de sua familiaridade com o corpo, com a voz e com a imagem materna – é informado que algo precedeu sua entrada na cena psíquica. A esse respeito, ela escreve:

Este “já-aí” de um tempo vivido, o eu terá que poder pensá- lo, acreditar que possui uma história, sem o que sua posição se parece muito com a de um sujeito que estaria sempre sob a ameaça de descobrir, de repente, que aquele que ele foi desmente radicalmente aquele que crê ser [6].

A primeira vez que recebi Rafael, tive a impressão de estar diante de alguém que acabara de sair de um estúdio fotográfi co, sua produção era perfeita: terno novo, cabelos impecáveis, sapatos lustros, porte elegante e um ar de superioridade que, em um primeiro momento, conseguiu intimidar- me. Ele havia iniciado sua análise com um colega meu, mas em decorrência de sua mudança de residência, pediu a esse colega que ele lhe indicasse uma analista na cidade na qual ele moraria.

Ao chegar, Rafael mostrou-se ansioso e pouco à vontade. Disse-me que fora encaminhado pelo Dr. W. e que se sentia “fora de centro” (sic), que ele não era mais o mesmo e que “todas as coisas tornaram- se desinteressantes” (sic). Rafael contou-me que esses sentimentos começaram havia seis meses e quando eu perguntei a ele o que acontecera em sua vida nessa época, ele disse: “Nada assim… de mais… até parece que eu sou mal resolvido com o meu pai mas não é, ultimamente eu me dava até bem com ele… ele faleceu há seis meses… infarto”.

Segundo os relatos de Rafael, seu pai foi um renomado médico e sua família tem como tradição o culto pelas letras e pela arte, valores que Rafael exibe com orgulho. Ele disse: “Minha família tem certa superioridade… sempre se diferenciou pelo acesso à cultura… meu pai tinha uma biblioteca particular que era maior que a biblioteca da cidade…”

Seus pais separaram-se porque sua mãe não suportava a autoridade que o marido exercia sobre ela e os fi lhos. Nas palavras de Rafael: “Meu pai foi muito autoritário, minha mãe sempre foi submissa a ele, não é que eu defenda isso, eu acho até que as mulheres não podem ser assim… sem querer fazer nenhum comentário… (irônico)” Foi a partir dessa fala que eu comecei a pensar sobre o possível lugar que eu ocupava, naquele momento, na transferência: eu era a mulher submissa, que deveria fazer todas as coisas da forma como ele quisesse.

Além disso, essa fala despertou em mim a seguinte indagação: será esse um dos motivos pelos quais Rafael pediu para o Dr. W. que lhe encaminhasse para uma analista? Será que, nesse momento, a única forma possível de existência, para Rafael, seria exercer sua autoridade sobre uma mulher submissa, da mesma forma como fazia seu pai? Deixei que essas questões fi cassem ressoando em mim.

Ele era o filho mais novo do casal, sendo que seus outros quatro irmãos seguiram o caminho do pai e se fi zeram médicos. Segundo Rafael, durante a infância, ele sempre foi o “cafécom- leite” (sic) nas brincadeiras com os irmãos, porque ele era aquele que tinha menos altura de todos. A este respeito, ele disse: “Sempre teve muita competição entre a gente, o meu pai estimulava um pouco isso… na escola, os meus irmãos foram ótimos alunos… eu não… eu nunca gostei de estudar, ia mal na escola”.

Rafael terminou o curso de medicina há cinco anos, mas disse que passou todo o tempo da faculdade sem estudar, porque não gostava do que fazia. Apesar disso, nos primeiros tempos de formado, ele começou a trabalhar juntamente com seu pai.

Ele contou-me que seu consultório foi detalhadamente projetado pelo seu pai, mas foi Rafael quem supervisionou a obra para que tudo saísse da forma como o pai queria. Ele me disse: “Eu não via a hora de o consultório fi car pronto… eu sonhava com o momento em que meu pai entraria no consultório e me veria atrás de uma mesa, em uma cadeira com espaldar alto…” No entanto, quatro meses depois da inauguração do consultório, Rafael desentendeu-se com seu pai porque ele queria mandar em tudo e fazer tudo do jeito dele. Rafael abandonou, então, a medicina, e logo em seguida seu pai veio a falecer.

Atualmente, aos quarenta anos, ele é o editor- chefe de sua própria empresa de jornalismo médico, sendo responsável pela confecção e distribuição de um periódico altamente conceituado pelos profi ssionais da saúde.

Casado há seis anos com uma médica, Rafael não tem fi lhos e, certa vez, ele me disse que tem algum receio de não conseguir ser um bom pai, pois imagina que não saberia dizer não aos fi lhos. Ele contou-me, também, que não tem intimidade com a esposa, não se entrega amorosamente, apesar de gostar dela. Sobre essa questão, ele disse:

“Não é só com ela… é minha vida emocional como um todo que está assim… sabe, eu sou um bom profi ssional, mas no lado emocional eu estou mal… Eu sinto isso, eu vejo as pessoas e sinto que a vida tem mais coisa… eu percebo… mas não sei como fazer… assusta, um pouco”.

Deixei essas palavras ressoando em mim e tive a seguinte impressão: ele sabe como relatar suas próprias experiências; o que talvez ainda não saiba é como acessar a dimensão afetiva dessas experiências, ou seja, o prazer ou o sofrimento que as acompanharam. A esse respeito, Aulagnier escreve:

A memória do Eu […] é primeiro a memorização do prazer ou do sofrimento que acompanhou certas de suas experiências, de seus encontros, de suas descobertas. Será a este memorizado “afetivo” que ele apelará nesse trabalho de refl exão, de previsão, de antecipação, sem o qual não poderia exercer a menor modifi cação, quer se trate da realidade exterior ou de sua realidade psíquica [7].

Adornado pelos brasões das tradições familiares, o que é motivo de orgulho, o profi ssional de sucesso deixou entrever, por uma brecha, seu estado de sofrimento decorrente de sua inabilidade para acessar seu mundo afetivo. Mais do que isso, Rafael percebia a existência dessa dimensão afetiva em si mesmo, desejava ter acesso a ela, mas não sabia como fazê-lo.

Este momento, no qual Rafael reconheceu seu sofrimento e supôs que eu soubesse o que fazer com sua dor, foi o marco de sua entrada em análise, mas também de um movimento psíquico meu no sentido de desejar, verdadeiramente, saber o que estaria sendo ocultado por trás daquela fi gura tão imponente. O que poderia amedrontar e paralisar aquele ser tão superior?
No que diz respeito à experiência analítica, Aulagnier escreve:

[…] o brilho e o fascínio que o “sujeito-suposto-saber” exerce repousam sobre o “objeto” que o analisado imputa a esse saber: poder certifi car que é o sujeito que fala, enunciar em seu lugar uma certeza identifi catória que lhe diz respeito. A posse dessa verdade que se lhe atribui é o motor da transferência: o analista é aquele que se supõe conhecer os enunciados que defi nem “em verdade” o modelo da realidade psíquica e o modelo do Eu de um outro [8].

Em outras ocasiões Rafael contou-me, também, que seu pai não se envolvia afetivamente com as pessoas, mas se relacionava com elas por meio da autoridade e da admiração que ele provocava. Nas palavras de Rafael: “Meu pai foi uma pessoa muito querida… as pessoas admiravam seus dotes intelectuais, mas ele não tinha amigos; ele se relacionava com as pessoas exercendo sua autoridade, sempre muito mandão… ele não tinha amigos… nesse sentido eu acho que eu sou muito parecido com ele… meu pai falava as coisas do coração quando bebia, então, o que aconteceu? Eu passei a ir beber com ele no bar todas as noites e era muito bom…” Com os olhos marejados, Rafael continuou: “…Até hoje eu sou assim… o problema é que, quando meu pai estava comigo, a gente parava de beber logo que a gente conseguia ter um contato afetivo mais próximo… hoje eu só paro de beber quando eu estou cansado e não agüento mais… eu não sei onde está o meu freio… o que me faz parar… isso me preocupa.” Eu disse a ele: quando você está alcoolizado há um afrouxamento das cobranças que você se impõe para ser tão perfeito, então, você pode sentir. E ele respondeu: “Mas eu não sou alcoólatra, eu quero esclarecer que eu não sou alcoólatra, eu bebo um vinhozinho, só isso, poxa, agora eu sou o bandidão!”

Não é difícil perceber que Rafael mostrouse ameaçado quando eu tentei acessá-lo; é como se as minhas palavras tivessem o peso de um diagnóstico fechado e irreversível, proferido por uma autoridade médica.

Diante disto, eu lhe disse: talvez você não seja mesmo alcoólatra… mas esse vinhozinho leva você à sua relação com o seu pai e eu acho que você me avisa que é difícil tocar nesse assunto. Quase chorando, Rafael disse-me: “Não… não é difícil, não… é que… que… (silêncio) se não fosse difícil eu já teria conseguido falar”. Rafael pronunciou estas palavras de forma entrecortada e na surdina, como se ele tivesse acabado de ter um insight e não quisesse que eu percebesse. Logo em seguida, ele continuou: “É… quando a pessoa está alcoolizada, ela fi ca livre de todas as responsabilidades…”.

Enquanto eu escutava esta história, comecei a pensar no quanto a presença concreta do pai era importante para Rafael: era essa presença que demarcava os territórios, os limites, era esse pai que traçava os caminhos pelos quais o fi lho deveria seguir. E agora, na ausência desse pai, ele se sentia fora de centro e não sabia mais onde encontrar seus limites internos.

Talvez, esses limites não estejam traçados com força sufi ciente para demarcar os territórios e trazer a Rafael o sentimento de segurança, tão necessário para que ele possa empreender a construção de sua própria história. É provável que este seja um dos motivos pelos quais ele precisa estar sempre “na linha”, como ele mesmo diz. Em uma linha dura, eu acrescentaria. Certa vez, Rafael disse-me: “Eu procuro respeitar as pessoas… eu procuro não impor… mas é um limite tão sutil… é uma questão de ocupação de espaço. Ao mesmo tempo, se eu fi car em uma posição passiva, a pessoa vem… e até onde eu posso ir para não desrespeitar os limites do outro, nem os meus? Eu acho que tem que haver um acordo… eu não sei como é”.

O que Rafael me pede, entre outras coisas, é que eu o ajude a descobrir os sentidos desse primeiro capítulo de sua história, que lhe garante a inalienabilidade de sua posição na ordem temporal e no sistema de parentesco. Ele quer saber em quais pontos fi xos de sua história ele poderá se ancorar para que ele possa construir seus devires. A esse respeito, Aulagnier escreve:

O que é próprio ao percurso identifi catório, enquanto um identifi cante permanece vivo, é nunca estar fechado, mas precisa conseguir se ancorar num ponto de partida fi xo, descobrir seu sentido, na dupla acepção do termo, saber de onde vem, onde está, para onde vai [9].

De acordo com a autora, este sentido é o que transforma o tempo físico em tempo humano e ele só pode ser apreendido pela psique em termos de desejo. Ela considera que o nosso passado próximo e distante constitui-se pela história reconstruída dos objetos que mantêm viva a lembrança dos prazeres perdidos. Nas palavras da autora:

Essa intrincação entre os fi os do tempo e os fi os do desejo, graças à qual o eu pode ter acesso à temporalidade, só é possível se se der desde o princípio, a origem da história tem que coincidir com a origem da história do desejo [10].

Mais adiante, ela acrescenta:

O neurótico realizou esta aliança tempo-desejo, sua “loucura” é querer conseguir respeitar a mobilidade temporal recusando simultaneamente a mobilidade dos objetos suportes desses desejos [11].

Com a ausência do pai, Rafael perdeu seu centro, escorregou na linha de sua história e alguns demarcadores de seus territórios e dos tempos históricos tornaram-se um pouco borrados. Assim, eu disse a ele: na medida em que você vai ocupando todos os espaços, como você faz aqui, ocupando toda a sessão com o seu discurso, em vez de você manter o outro à distância e sob controle, você se aproxima ainda mais do território dele; com isso você vai apagando aquele espaço entre as pessoas que precisa fi car vazio. E ele disse: “Eu acabo me misturando um pouco com as pessoas… é por isso que, às vezes, eu não sei muito bem quem sou eu… (longo silêncio). Quando eu era adolescente, eu olhava a lua… fazia poesia… hoje eu perdi tudo isso… fi quei grotesco… eu perdi o controle… por que a gente escorrega, de vez em quando? Por que não dá para evitar esses terrenos escorregadios?” Eu disse a ele: Evitar esses terrenos seria evitar a poesia… a poesia é o relato do escorregão. Aulagnier considera que nenhum sujeito

[…] pode proteger-se da ação do tempo, desses acontecimentos representados pela morte do outro, dos acidentes que podem atingir seu próprio corpo modifi - cando-lhe sua representação psíquica […] [12].

Assim, a partir das formulações de Rafael, suponho que o controle que ele gostaria de ter sobre ele mesmo, sobre as pessoas e o tempo, é a mais pura expressão de seu desejo de permanecer em um tempo-espaço mítico, onde ele não precisaria negociar suas referências identifi catórias, suas defesas e os materiais que escolherá para construir uma história que será somente sua.

No entanto, é com angústia que Rafael vive seu desejo de permanecer nessa espécie de bolha do tempo-espaço. Nos momentos em que essa angústia desponta na cena analítica, eu a escuto como uma ressonância de seu pavor (e desejo) de submeter-se ao desejo dos outros. Nesses momentos, a única maneira que ele encontra para escapar dessa posição submissa é empreendendo tentativas de exercer sua autoridade sobre o outro.

Este movimento psíquico esboçado por Rafael leva-me a pensar sobre as teorizações de Aulagnier a respeito das mudanças às quais o percurso identifi catório do Eu poderá estar sujeito. A esse respeito, a autora escreve:

Sem esta ligação entre o presente e um depois diferente, o movimento [identifi catório] pararia: o eu lutaria em vão contra seu estado de submissão aos enunciados identifi cantes da mãe, ou de algum outro dotado do mesmo poder, sobre o tempo e sobre o devir [13].

Ela considera que as modifi cações do percurso identifi catório do Eu “[…] só são possíveis e desejadas se o eu conserva a certeza de que elas respeitarão o não-modifi cável ao qual se juntarão, para dar lugar e forma a esse novo momento de seu devir” [14].

Assim, recolher-se nessa bolha do tempoespaço manteria Rafael enclausurado em seu passado infantil. A respeito desse enclausuramento, Aulagnier escreve:

O neurótico, apesar da intensidade de seus confl itos, conserva à sua disposição meios de defesa, meios de pensar e reinterpretar sua história […]. O sonho do neurótico não é voltar à infância, mas sim reconstruir uma história desse passado de acordo com os desejos da criança que supostamente o viveu, com a fi nalidade de pôr fi m aos primeiros capítulos de sua história e se tornar capaz de investir os seguintes [15].

Em relação a esse movimento psíquico que se faz presente nas neuroses, Aulagnier tece algumas considerações sobre o trabalho da análise. Nas palavras da autora:

É sobre esse duplo movimento de retorno e de clausura do passado infantil que nos apoiamos para lhe oferecer viver uma nova história transferencial cuja interpretação lhe permitirá modifi car a versão que até então se dava da história de sua infância [16].

As histórias que Rafael me contou sobre a relação entre ele e o pai denunciavam o quanto essa relação era permeada pelas expectativas que o pai depositava no fi lho e, por outro lado, pelo desejo de Rafael de atendê-las: “Meu pai esperava muito de mim… quando eu era adolescente e não trabalhava, ele me disse ‘você não ganha nem para pagar suas contas; o que você vai ser na vida?’ Ele não está aqui hoje para ver…” (lacrimeja).

Depois de um longo silêncio, Rafael mudou a tonalidade do discurso e me contou a respeito do lançamento da nova formatação de seu periódico médico. Foi com orgulho e pompa que ele narrou todos os detalhes do evento, dizendo que havia muita gente importante.

Nesses momentos, nos quais Rafael contava- me a respeito de seus feitos magnífi cos, seu discurso era infl ado e infl amado e eu não era mais do que uma minúscula espectadora, diante daquele espetáculo todo. Ele disse, também: “Eu olhava tudo aquilo e só pensava assim: ‘falta o meu pai aqui… já pensou o pai vendo isso? Falta ele… minha avó estava lá… mãe do meu pai… ela viu… mas ele não…’ (longo silêncio).” Apesar dessa tonalidade quase idílica que permeava a relação de Rafael com a fi gura paterna, em alguns momentos da análise, a lisura dessa superfície era arranhada por algumas farpas discursivas.

Certa vez, Rafael disse: “Quando meu pai estava doente, no hospital, eu passei longas horas com ele… ele sabia que estava sem saída, no fi m… que o seu poderio estava com os dias contados (longo e espesso silêncio). Não tinha nada que eu pudesse fazer por ele, além de fi car ali, ao seu lado… imaginando como eu daria continuidade aos ideais dele…” E eu ousei continuar, dizendo: …Imaginando como seria sua vida livre do poderio do seu pai… Rafael voltou-se para mim e, prontamente, retrucou: “Não! Eu não pensei na ausência do meu pai… eu não pensei… eu pensei em manter os ideais dele presentes”.

Assim, pude perceber que Rafael ainda estava muito dedicado em sua tarefa de tecer o espesso manto de pensamentos, palavras e silêncios, que se prestava a recobrir o ódio que ele também sentia pelo pai. Portanto, todo trabalho no sentido de ir destramando esse manto deveria ser cauteloso.

Em outra ocasião, ele me contou um pouco mais a respeito do evento de relançamento de seu periódico médico: “O evento foi num museu, como o meu pai faria… aliando arte e medicina… tinha uma tela em branco aonde todo mundo que chegava dava uma pincelada com tinta colorida… nós fotografamos e vamos fazer um cartão de agradecimento, escrito assim ‘Você faz parte dessa história’ ”.

Rafael sente que ele não apenas é parte integrante da história que o precedeu, como também é um efeito dela; ele percebe que emprestou desta história os documentos, as provas por meio das quais ele escreveu o primeiro capítulo de sua história como existente. O que lhe falta descobrir é como ordenar esses documentos, de modo que ele possa encontrar os elos que interligam as experiências presentes com aquelas que foram por ele vividas no passado, construindo um compromisso entre o que o Eu foi, o que ele é, e o que irá se tornando.
Para Aulagnier,

Na falta dessas balizas, o Eu estaria condenado a uma busca regressiva que transformaria seu passado, presente e futuro em efeitos não modifi cáveis de um momento de origem, perdido num passado tão mítico quanto inapreensível [17].

Rafael temia tornar-se prisioneiro desses pontos fi xos de sua história, mas, ao mesmo tempo, receava abrir-se aos movimentos de mudança e perder essas referências identifi catórias que devem permanecer estáveis, para que ele se reconheça naquilo que ele se torna.

Nas sessões seguintes, Rafael contou-me que sua família é bastante unida e que, mesmo depois da morte de seu pai, todos se ajudam mutuamente quando alguém se encontra em situação difícil, fi nanceiramente, ou quando precisa de algum conselho. No entanto, sua família sempre teve difi culdades para demonstrar afeto, eles nunca se abraçaram ou trocaram palavras carinhosas. Sobre essa questão, ele disse: “Meu bisavô era anestesista, teve cinco fi lhos e todos foram padres porque naquela época não tinha escola para todo mundo e se o sujeito fosse para o seminário, o seminário pagava tudo. Então, ser padre signifi cava ter acesso à cultura, tanto é que depois todos eles largaram a batina para se casar… e minha família condena isso… não se fala nisso até hoje… é como se fosse algo proibido porque padre não tem sentimento… quer dizer, tem, claro que tem… mas eles são treinados para deixarem isso de lado e minha família tem um jeito assim, a gente convive, é gostoso, a gente conversa sobre várias coisas, mas o sentimento nunca pode aparecer…”

Enquanto eu escutava Rafael, eu fl utuava sobre suas palavras e me indagava: que autoridade teria esse anestesista, capaz de brincar de matar e ressuscitar pacientes e de levar cinco fi lhos para o seminário? Por que o abandono da batina e a tentativa de traçar os caminhos da própria história tiveram como pena a condenação familiar? Eu estava envolvida com essas questões e as ressonâncias que elas produziam em mim forjavam novos territórios associativos, até o momento em que essa trama associativa foi rompida por um “Você está me entendendo, Dra.?”

Com dificuldade, retomei meu fl uxo associativo e tentei comunicar meus pensamentos a Rafael, quando ele me interrompeu novamente, dizendo: “Acho que eu estou falando coisas muito abstratas, você está me entendendo? Eu…” Eu disse a ele: sim, Rafael, eu estou escutando o que você está me dizendo e pensando a respeito… parece-me que há uma proibição circulando pela sua família… desde antes de você existir… é proibido viver a vida afetiva estando com a batina, assim como é proibido largar a batina e perder o controle para viver os afetos… Esse seu controle é a sua batina… e você, como médico, como fi ca diante dessa proibição? Nitidamente desconfortado com a minha fala, depois de um longo silêncio, ele disse: “Como médico… Eu devo ser igual ao meu pai…”

Rafael estava prisioneiro da história familiar que o precedia, ele não podia desobede(ser) a autoridade paterna e se reconhecer como um sujeito singular e autônomo. Assim, ele estava aprisionado no insustentável lugar de sua mãe, que se submetia aos caprichos abusivos do pai. Ao mesmo tempo, essa posição feminina era-lhe muito assustadora; Rafael contrapunha-se a este lugar identifi cando-se com a fi gura paterna e exercendo sua autoridade, seu poder e sua sedução.

Nesse momento pude vislumbrar, muito fugazmente, o que apavorava Rafael: ele sentia medo de traçar seu próprio caminho porque isso poderia implicar rompimento com as determinações familiares e com a fi gura do pai. É como se ele corresse o risco de ser despojado de seu lugar nas relações de parentesco, se ele empreendesse qualquer movimento no sentido de assumir suas marcas singulares e construir sua história.

Nos primeiros tempos da análise, a transferência foi marcada por uma angústia: todas as vezes que Rafael fl agrava qualquer movimento meu de fl utuação, ele interrompia o nascedouro dos meus pensamentos. Essas interrupções eram freqüentes e se manifestavam, invariavelmente, por meio da pergunta “Você está me entendendo?”, que surgia nos momentos mais férteis, nos quais é possível engendrar os pensamentos.

Certa vez, tive a oportunidade de dizer a Rafael que talvez ele se sentisse inseguro quando me oferecia suas mais preciosas lembranças; é como se ele se perguntasse “O que será que ela vai fazer com isso?” Por isso, ele gostaria de controlar os meus pensamentos ou até mesmo destruí-los, antes mesmo que eu pudesse formulá- los. A partir dessa minha fala, Rafael pôde reconhecer sua insegurança e, a esse respeito, ele me disse: “Acho que pode ser, sim… Eu fi co preocupado com o que você pode estar pensando de mim… eu não gosto que as pessoas pensem coisas a meu respeito que não são verdadeiras… (longo silêncio)”. Perguntei a ele se a imagem que o outro tem dele é capaz de abalar suas próprias certezas e ele disse: “Quando a pessoa me fala o que ela está pensando, e eu posso discutir com ela, aceitar ou me contrapor à imagem que ela faz de mim, então, fi ca tudo bem… o problema é quando eu não sei o que ela pensa… acho que isso me ameaça, sim… porque eu não sei muito bem que imagem eu tenho de mim”.

Dessa maneira, foi-me possível perceber que Rafael sentia-se ameaçado pelas cláusulas não modifi cáveis de sua história, pela autoridade de seu pai e até mesmo pela imagem que esse pai poderia ter dele; essa imagem seria poderosa a ponto de destruir os esboços de imagem que Rafael tinha de si mesmo e, com ela, a possibilidade de ele tornar-se um aprendiz de historiador e construir sua própria história.

Considerando a problemática presente na análise de Rafael, concordo com Aulagnier quando ela diz que “O objetivo do projeto analítico é primeiramente, e sobretudo, ‘temporal’; ele visa tornar possível ao sujeito o investimento e a criação de representações que antecipem por defi nição aquilo que ele jamais pôde ser: um momento do tempo futuro que, justamente por ser futuro, não será jamais idêntico a nenhum momento passado” [18].

Considerando estas idéias pensei que, nesse caso, a transferência exigiria um manejo marcado por uma atitude fi rme, capaz de delimitar territórios e, ao mesmo tempo, terna e cuidadosa, que pudesse ajudá-lo a relativizar a persecutoriedade que era ativada todas as vezes que eu tentava acessá-lo.

Assim, na relação com Rafael, consegui encontrar um lugar um pouco mais confortável para os meus pensamentos, a partir do momento em que me foi possível evitar falas pontiagudas e afi rmativas e engendrar intervenções côncavas e interrogativas.

Em outras palavras, meu discurso não poderia tomar a forma incisiva de um pênis, pois isso me colocaria, transferencialmente, no lugar do pai autoritário e invasivo e não permitiria que Rafael pudesse ir esboçando seu próprio território. Então, eu disse a ele: Rafael, quando eu lhe disser alguma coisa, escute… deixe cair em algum lugar de você… depois você pensa… se tem sentido, você se apropria, se não tem, desconsidere…

Esse artifício técnico possibilitou a Rafael um posicionamento menos tenso e controlador e ele não mais precisava sentar-se na beirada da poltrona, quase ultrapassando os limites do território dele para entrar no espaço que deve permanecer vazio, entre as duas poltronas.

Acredito que, dessa maneira, eu pude assegurar a Rafael seu direito de escolha; afi nal de contas, ele não precisaria submeter-se às minhas falas como se elas fossem um diagnóstico fechado e irreversível proferido por uma autoridade médica; ao contrário disso, ele poderia escutálas, pensar sobre elas e decidir se elas serviriam ou não para alguma coisa.

No meu modo de compreender, nesse momento da análise de Rafael as palavras enunciadas em transferência deixaram de ter o peso de um diagnóstico fechado e irreversível e ganharam o estatuto de palavras analíticas, que revelam, fazem pensar e ressoam.

Esse manejo ressoou, também, no registro discursivo de Rafael: aquele discurso infl ado e infl amado – que abortava meus pensamentos e ocupava todos os espaços do setting, mantendo- me engessada e encolhida na poltrona – cessou e, em vez de ocupar todo o tempo da sessão tentando fascinar-me com o espetáculo de seus feitos grandiosos, ele pôde se lembrar e narrar suas experiências afetivas, as quais puderam ser vividas novamente, na transferência.

Foi dessa maneira que, na situação analítica, Rafael deu início a seu trabalho de historiar, alinhavando as lembranças do primeiro capítulo de sua história. A esse respeito, Aulagnier escreve:

[…] a memória que o analista explora com o sujeito, essa memória cujos conteúdos ele tenta modifi car, seja enriquecendo-a, seja mudando o agenciamento de seus elementos, faz parte integrante do Eu. Ela é esse Eu passado, ao qual o Eu presente apela para poder se reconhecer como um existente [19].

A autora considera também que

A história pela qual um sujeito se relata e se assume como tal exige, como toda história, que o primeiro capítulo não seja uma série de folhas em branco; na falta do primeiro capítulo, o conjunto das demais folhas se acharia suspenso correndo o risco de um dia, vindo aí inscrever-se uma palavra, ser declarado puro erro [20].

Porém, o sujeito não pode saber nada a respeito desse seu primeiro momento de aparição na cena psíquica e, ao mesmo tempo, não pode prescindir desse saber, que é necessário para que a sua história exista. Como resolver este impasse?
Segundo Aulagnier,

[…] o eu esqueceu-recalcou uma parte dessas demandas, e é por isso que a versão que constrói posteriormente (après coup) de seu próprio passado se parece muito com certos romances de inspiração histórica: nela encontramos o nome de certos heróis, a data de algumas batalhas memoráveis, a lembrança de tal ou qual acontecimento excepcional, mas o autor substituiu o que não pôde saber sobre a maneira como os protagonistas reais viveram esses acontecimentos pelo que imagina dessa vivência colocando-se no lugar deles [21].

Dois anos mais tarde, Rafael iniciou uma nova fase em seu percurso analítico. Ele e sua equipe de jornalismo médico empreenderam um projeto que consistiu em fazer visitas semanais às ubs’s de alguns estados, com a fi nalidade de detectar os problemas e as necessidades específi cas de cada uma delas. Para isso, a equipe entrevistou funcionários dos postos de saúde e produziu fi lmes, enfocando a realidade vivida em alguns setores da saúde pública; esses fi lmes foram veiculados por meio de um dvd anexado ao periódico de jornalismo médico.

Este projeto foi vivido com angústia por Rafael; invariavelmente, ele se sentia cansado e se queixava de falta de energia para fazer as suas peregrinações aos postos de saúde, para editar e publicar as fi lmagens. Certa vez, ele me disse: “O projeto é tão legal… eu sinto necessidade de fazer isso… é estranho porque eu nunca senti tanta necessidade de fazer um trabalho como eu estou sentindo neste momento da minha vida. (longo e espesso silêncio) Mas, é um trabalho que me cansa, que esgota minhas forças…”.

Nessa época, Rafael substituiu seu visual engomadinho pelo velho jeans e camiseta; ele ia à análise desarrumado e despenteado. Além disso, ele começou a dar passagem às suas dúvidas; embora não gostasse disso, ele pôde questionar se aquele Rafael que estava a serviço dos outros era de verdade, ou se ele viveu um mundo de mentira: “Eu sempre tive medo de desapontar as pessoas… meu pai, principalmente… então, eu esquecia de mim e fazia tudo o que ele queria que eu fi zesse… mas esse não era eu… quem era, então? Eu vivia um mundo de mentira… e eu continuava fazendo as coisas para as pessoas porque eu tinha medo que elas descobrissem essa mentira que se passava dentro de mim…”
A respeito da dúvida, Aulagnier escreve:

É próprio do Eu neurótico ser tomado por uma dúvida insustentável respeitante à sua verdade e seus afetos. O lugar que o analista assume na experiência não é uma criação desta última; ele só se faz dar corpo à ilusão, sempre presente na psique, de poder reencontrar na cena do real um outro que garanta a certeza dos enunciados pelos quais o sujeito se defi ne e defi ne seu modelo de realidade [22].

No meu modo de entender, a partir do momento em que Rafael pôde viver suas dúvidas angustiantes, em transferência, ele se permitiu esboçar novos traçados em seu percurso identifi catório. Dessa maneira, ele deu início ao trabalho de rompimento dos grilhões imaginários que o mantinham refém de sua própria história. A respeito desse movimento psíquico, que é próprio à construção do saber, Aulagnier afi rma: “[…] saber exige a renúncia à certeza do sabido, querer a certeza implica a recusa de reconhecer que todo saber é coextensivo a um movimento contínuo” [23].
Aulagnier considera, ainda, que

É próprio do Eu não poder apreender-se senão sob a forma de um saber do Eu sobre o Eu, só podendo existir pela apropriação de uma série de enunciados identifi catórios cujo detentor exclusivo é o discurso, e que colocam, concomitantemente e numa relação de reciprocidade, aquilo que volta à psique como primeiras imagens do Eu e do objeto exterior a ele e investido por ele [24].

Isso quer dizer que, quando Rafael aceita a existência de suas dúvidas, ainda que a contragosto, e se indaga, dizendo “[…] mas esse não era eu… quem era, então?”, ele extrai uma primeira lasca do bloco de pedra dentro do qual ele está aprisionado. Assim, aos poucos, ele poderá ir construindo as imagens e os discursos por meio dos quais ele forjará respostas possíveis à pergunta “Quem sou eu?”.

Durante todo o tempo do projeto de visita aos postos de saúde, Rafael assistiu aos fi lmes dos lugares nos quais seu pai havia vivido e trabalhado; ele me contou: “Eu choro, Dra… nunca imaginei que eu pudesse chorar (chora). Quando eu vi os fi lmes, eu chorei de soluçar, sem nem dar tempo de pensar… foi ver a imagem e lembrar de tudo num fl ash… Vendo aqueles corredores do posto de saúde daquela cidade, eu me lembrei de quando eu era criança… que meu pai me levava lá para eu conhecer como era o lugar onde ele trabalhava… é uma lembrança viva… eu não imaginava que estava viva assim! Eu senti até o cheiro daqueles lugares… meu pai… (chora).”
Segundo Aulagnier,

O que nomeamos nosso passado constitui-se, graças a esse fundo de memória que protege contra o desinvestimento, a lembrança de um certo número de experiências afetivas que o demarcaram. Experiências privilegiadas, selecionadas em função da intensidade do afeto que as acompanhou. Experiências às quais o Eu, muitas vezes arbitrariamente, imporá uma ordem temporal visando ordenar seu passado, de modo que as experiências que ele estiver vivendo no presente possam encontrar pontos de ligação com experiências já vividas, tornando-se, por sua vez, fonte de emoções. […] É a riqueza ou a pobreza do capital constitutivo de nossa memória que determinará os points de capiton [pontos de ancoragem] que o sujeito poderá ou não reencontrar para ligar essa emoção vivida hic et nunc a outros encontros emocionais efetivados por aquele que ele foi e que não é mais [25].

A cada filme editado, Rafael teve a oportunidade de reviver alguns fragmentos desse tempo em que a presença e a autoridade do pai norteavam, de certa maneira, sua vida. A cada visita realizada, as lembranças eram evocadas, investidas e, ao mesmo tempo, a realidade mostrava-lhe que aquele tempo, aqueles lugares e aquele pai estavam defi nitivamente perdidos. No que se refere à memória, Aulagnier entende que ela

[…] pode ser comparada a um lugar do próprio espaço no qual o Eu deposita os fragmentos desse tempo que passa e que se perde inexoravelmente, a fi m de que se mantenham vivos, fi xando a lembrança das experiências afetivas que modifi caram seu percurso identifi cante, seja para abrir-lhe uma nova via, seja para fazê-lo perder-se num impasse [26].

Assim, Rafael ingressou em um movimento de memorização do prazer e do sofrimento que acompanharam suas experiências, seus encontros e descobertas. A partir do trabalho de edição de fi lmes, Rafael começou a se interessar pelos livros e por outros objetos pessoais que foram de seu pai, os quais estavam amontoados em uma sala, na casa de sua mãe. A esse respeito, ele disse: “Eu mergulhei na bagunça daquela sala e comecei a dar um destino àquelas coisas… arrumar algumas, dar embora outras (silêncio). Como sempre, minha mãe interferiu… pedindo para eu deixar tudo daquele jeito mesmo. Ela sempre tem que dizer o que eu tenho ou não que fazer e como eu devo fazer…”

Nas poucas vezes que a fi gura materna fezse presente no discurso de Rafael, essa presença pareceu provocar nele uma reação manifesta de rechaço: “Ela invade meu território, dá palpite e eu mando logo à merda… contratei uma secretária para me ajudar a fazer esse serviço [arrumar as coisas do pai], pelo menos ela fala pouco”. Por meio desses pensamentos transferenciais, ele me avisava que eu deveria ser apenas uma secretária que fala pouco, ou eu teria um destino bastante específico…

No meu modo de entender, a necessidade premente que Rafael sentiu de empreender esse projeto, o esgotamento psíquico que isso lhe causou, bem como a possibilidade de re-estabelecer um circuito investido de lembranças são indicadores de que ele precisou revisitar, concretamente, os lugares pelos quais ele e o pai estiveram, no passado. Por meio dessa peregrinação, Rafael encontrou a oportunidade de estabelecer uma ligação entre os traços dos lugares por ele revisitados e aqueles traços que fazem parte de seu capital de memória.

No que diz respeito a esta experiência de ressonância entre as experiências presentes e as passadas, certa vez, Rafael disse-me: “Hoje eu tenho uma relação de saudade com o meu pai… essa relação de eu sentir um pouco dele e um pouco de mim mesmo em tudo o que eu faço… e eu quero que isso permaneça… eu não quero que acabe… Hoje tá doendo… (silêncio pesado)”.

Daquele tempo passado, restaram apenas as lembranças, mas Rafael parecia não estar convencido disso. Senti, nessas palavras, que talvez ele estivesse sendo atravessado por uma fantasia: de que se ele colocasse o passado em seu devido lugar, ou seja, se ele o deixasse passar, ele correria o risco de perder as marcas desse tempo e, com isso, estaria condenado a perderse de suas próprias origens.

Em outras palavras, ele se perderia da história que o precedeu e, em decorrência disso, não teria elementos para construir a sua própria história. Por outro lado, essa tentativa fantástica de reter o tempo provocava em Rafael a sensação de estar aprisionado. Nas palavras dele: “Eu não sei… eu não quero quebrar as tradições da minha família, porque é uma coisa que eu admiro, também… esse gosto pela cultura, pela poesia… mas eu também não quero viver assim”.

Assim, eu tive a oportunidade de emprestar minhas palavras a Rafael, para que ele pudesse vesti-las nessa fantasia, defi nindo-a como tal e modifi cando a relação que enlaça seu Eu com essa produção psíquica. Ele disse: “Às vezes, a gente sente as coisas e não consegue dizer… precisa fi car fl oreando, contando histórias, fazendo teatro… para dizer o que a gente quer… às vezes a gente quer e nem sabe que está querendo… igual agora…!?” Aos poucos, ele pôde ir vivendo esta dimensão mais pantanosa de si mesmo, na qual as palavras às vezes faltam e as certezas transmutam-se em férteis dúvidas, sem que isso seja algo ameaçador.

Algum tempo depois, Rafael começou a se experimentar esboçando um agenciamento diferente dos elementos que fazem parte de seu passado; ele podia guardar as lembranças desse tempo, mantendo-as vivas, sem ser obrigado a apagá-las ou transformá-las em um presente imutável. Ele me disse: “Que bom que eu não sou um anjo… embora tenha o nome de um… (ele ri) os anjos são criaturas perfeitas… se eles errarem são expulsos do paraíso… (silêncio)… Também, nem ia adiantar eu não errar, porque o paraíso já se foi mesmo: meu pai não está mais… e não dá para voltar para a infância… também não dá para fi car parado… (silêncio) mas dá para lembrar e contar sobre a infância… sentir outra vez os perfumes… então… vou seguindo… escorregando, às vezes (longo silêncio).”

Esses traços que Rafael guardou em sua memória constituem as peças por meio das quais ele poderá substituir esse tempo passado por um tempo falado, e ir aprendendo a construir sua própria história. Foi a partir da singularidade desse movimento psíquico que Rafael começou a enunciar a idéia de ser um existente, igual-diferente ao pai: “Antes, eu sentia que a fi - gura do meu pai me perseguia… (silêncio); nem era o meu pai, ele mesmo… mas a fi gura dele em mim… então, eu queria ser peão de fazenda, só para fazer alguma coisa que eu mesmo escolhesse, independente da vontade do meu pai… eu era muito confundido com o meu pai… Mesmo porque, todo mundo falava ‘Também, fi lho de quem é, só podia dar no que deu’… e eu fi cava confuso e pensava ‘Poxa, então eu sou assim porque sou eu mesmo ou porque sou fi lho do meu pai?’… E isso me angustiava… (longo silêncio). Mas que bobagem, afi nal eu sou assim porque eu sou eu mesmo e fi lho do meu pai. São as duas coisas…”

Dessa maneira, Rafael começou a redigir esse compromisso que o permite reconhecerse como efeito da história que o precedeu e, ao mesmo tempo, autor daquela que sua vida conta. No entanto, esse compromisso nunca será defi nitivamente estabelecido; é essa incompletude que garante sua mobilidade e permite que o Eu possa ir tecendo o fi o sobre o qual ele se equilibra, entrelaçando aquilo que ele vai se tornando com aquilo que ele foi.

Assim, é esse Rafael tecelão que se faz presente, a cada vez, no espaço-tempo analítico. Certa vez, ele me contou a seguinte história: “Eu adoro o que eu faço… acho que eu tenho essa coisa do jornalismo na veia…” Eu perguntei a ele: como é essa coisa do jornalismo, Rafael? E ele: “Ah… é isso de ir andando pelas ruas com os poros abertos… e ir captando as coisas… é estar despreocupado e, de repente, um lixeiro te liga e diz ‘Olha, acabei de encontrar o corpo de uma mulher no lixo…’ E aí eu tenho que fazer um trabalho para isso que é apenas informação virar notícia. (longo silêncio)”.
A esse respeito, Aulagnier escreve:

A tarefa do Eu será transformar esses documentos fragmentados numa construção histórica que dá ao autor e aos seus interlocutores a sensação de uma continuidade temporal. Só nessas condições poderá ligar o que é ao que foi e projetar no futuro um devir que alia a possibilidade e o desejo de uma mudança à preservação dessa parte de “próprio”, de “singular”, de “não transformável”, para que não encontre no seu futuro a imagem de um desconhecido, que tornaria impossível para aquele que olha investi-la como a sua própria” [27].

Rafael continua: “Outro dia eu fui a um lançamento de um livro e eu estava todo engomadinho… veio um sujeito e falou assim ‘Ah, você não parece o cara que faz o periódico… eu imaginava que esse cara fosse todo despenteado, desarrumado’. E eu sou… assim do jeito que eu estou agora, todo despenteado e desarrumado… mas eu não vou a um lançamento de livro assim…”

Com isso, ele está dizendo-me que é esse lixeiro- jornalista, mas que ele ainda tem um certo receio de que o lixeiro apareça, de surpresa, no lançamento de um livro, para encontrar o jornalista e lhe contar algo que poderá virar notícia. Ele ainda não sabe muito bem como reciclar esse lixo… em vez de jogá-lo fora. Eu disse a ele: engraçado, não é Rafael? As rosas recebem esterco em seus pés… Ele fi cou me olhando em silêncio e sorriu, pensativo.

Eu pude ver, ali, os esboços de um aprendiz de historiador: caminhando ele vai encontrando, catando e reciclando os fragmentos do tempo. Deste modo, ele poderá fazer seus lutos, mas sem por isso desinvestir nas lembranças e nos seus mais lindos sonhos.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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