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Resumo
Este artigo examina a passagem de Freud 17 da técnica da hipnose à da associação livre no nascimento da psicanálise, sustentando a tese de que seu percurso seria repetido na prática clínica cotidiana – na qual o analista fi ca desafi ado a encontrar as portas de saída para os impasses da hipnose, re-inaugurando a cada sessão o caminho freudiano, numa experiência de gênese. Nesta reinauguração, o analisando trabalha diversas vezes favorecendo o analista, ajudando-o a encontrar seu lugar de linguagem, muitas vezes perdido, muitas vezes reencontrado. A interrogação que norteia nosso raciocínio poderia ser assim resumida: “quem hipnotiza quem?”.


Palavras-chave
hipnose; associação livre; atenção fl utuante; técnica psicanalítica; trauma.


Autor(es)
Sérgio Zlotnic
é psicanalista e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo.


Notas

* Este trabalho é derivado de tese de doutorado defendida pelo autor em 2002, com subsídios do CNPq, acerca de uma “Metapsicologia da atenção flutuante”.

1 S. Freud (1912), “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”.

2 S. Freud (1921), “Psicologia de grupo e análise do ego”.

3 S. Alonso. “Sugestão e transferência: os relatos clínicos de Freud”, p. 33-8.

4 S. Freud (1895), “Emmy von N.”.

5 S. Freud (1918), “Homem dos Lobos” (História de uma neurose infantil).

6 L. Chertok; I. Stengers, O coração e a razão – a hipnose de Lavoisier a Lacan.

7 S. Freud (1920), “Além do princípio do prazer”.

8 S. Freud (1918), op. cit.

9 S. Alonso, op. cit., p. 37-8.

10 S. Freud (1895), op. cit.

11 S. Freud (1921), op. cit.

12 O termo é de Alonso (S. Alonso, 1991, op. cit.).

13 Kohut, citado por Chertok, 1989, op. cit., p. 165.

14 S. Freud (1918), op. cit.

15 S. Freud (1920), op. cit.

16 S. Ferenczi, (1930), “Princípio de relaxamento e neocatarse”.

17 J. Laplanche, Novos fundamentos para a psicanálise.

18 Ver para isso L. C. Figueiredo, “Modernidade, trauma e dissociação”, p. 219-44, artigo no qual o autor se refere a este movimento atual de resgate dos temas do traumático e da clivagem na psicanálise.



Referências bibliográficas

Alonso S. (1991) Sugestão e transferência: os relatos clínicos de Freud, Percurso, ano III, n. 5/6, p. 33-8.

Chertok L.; Stengers I. (1989) O coração e a razão – a hipnose de Lavoisier a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Ferenczi S. (1930 1992) Princípio de relaxamento e neocatarse. In: Obras completas, vol. 4. São Paulo: Martins Fontes.

Figueiredo L. C. (2001) Modernidade, trauma e dissociação. In: Bezerra Junior, B.; Plastino, C. A. (orgs) Corpo, afeto e linguagem. A questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa.

Freud, S. (1976) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1895) “Emmy von N.”, in “Estudos sobre histeria”, vol. 2.

____. (1912) “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, vol. 12.

____. (s/d) “Homem dos Lobos” (História de uma neurose infantil ), vol. 17.

____. (1920) “Além do Princípio do Prazer”, vol. 18.

____. (1921) “Psicologia de grupo e análise do ego”, vol. 18.

Laplanche J. (1992) Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.





Abstract
This paper examines Freud’s path from the hypnosis technique to the free association. The author argues that his way is repeated in today’s consulting rooms, in which the analyst is challenged to fi nd exits for impasses of hypnosis, re-inaugurating the freudian route in each session. In this re-opening, the patient often helps the analyst, fi nding his place in language, lost and found many times. The essential question may be summarized thus: who hypnotizes whom?


Keywords
hypnosis; free-association; fl oating attention; psychoanalytical technique.

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 TEXTO

O percurso de Freud e a Psicanálise da hipnose à associação livre

a questão da transferência *


Freud: from hypnosis to free-association
the issue of transference
Sérgio Zlotnic

Da psicoterapia à psicanálise

Apoiado em bases fenomenológicas construídas a partir das obras de Husserl e Heidegger, por mais de dez anos fui um psicoterapeuta interessado noutras portas de entrada para a alma que não apenas a palavra. Esbarrei, entretanto, no fenômeno da transferência, estrangeiro ao corpo teórico da minha abordagem e que exigia decifração.

Passei, então, a freqüentar grupos psicanalíticos de estudo e supervisão com o firme propósito de aprender a escutar os comunicados que a transferência veicula e para os quais me acreditava surdo.

Com a interpretação da transferência, meu novo instrumento de trabalho, recém-aprendido, capaz de desembrulhar tantos nós, pude encontrar novas direções para muitos impasses dos processos terapêuticos dos pacientes que, na época, eu acompanhava. E, como o motorista que instala uma buzina nova, eu me sentia magicamente poderoso, de posse do instrumento que me dava o dom de enxergar além. Desnecessário levantar da poltrona: “simplesmente pela palavra”, podia iluminar regiões escuras e alcançar os confi ns.

Esta é a primeira lembrança do efeito da psicanálise sobre a minha clínica não psicanalítica. Não tinha a intenção de me tornar psicanalista. Como se tivesse aportado em uma ilha com o intuito de apenas conhecê-la, tudo o que eu desejava era ser um psicoterapeuta que trabalhasse a transferência! Mas o navio já havia sido queimado no porto: as questões da clínica (que “fazem a metapsicologia sofrer”) eram tão envolventes que me levaram, de cipó em cipó, de interrogação em interrogação, para dentro de uma mata cerrada, feita de conceitos e indagações que conduzem a problemas cada vez mais complexos. Fui, assim, me afastando de meu terreno familiar, de minha terra de origem. E demorou para que eu integrasse a idéia de que a análise transcorre na transferência e para que me interessasse, particularmente, pelo estudo das fundações dessa relação durante a formação em psicanálise, à qual passei a me dedicar.

Os temas de meu interesse diziam respeito à questão da técnica psicanalítica e o primeiro mergulho no texto de Freud “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” [1] surpreendeu: esta escritura lembra sobremaneira a postura fenomenológica de um psicoterapeuta! Na atenção fl utuante indicada ao analista, vê-se, entre outras, a noção husserliana de Lebenswelt – mundo vivido: o terapeuta busca permanecer no nível do vivido imediato, anterior à refl exão. A postura de um psicanalista, afi nal, pensei eu, não é muito diferente da posição pretendida por um fenomenólogo.

Mais tarde, em “Psicologia de grupo e análise do ego” [2], o tema da hipnose se conecta com as questões do narcisismo e da sugestão. Ali, para esboçar a gênese mítica do ideal do eu, consideram-se as relações do primitivo pai com seu fi lho e de suas semelhanças com outros pares equivalentes do ponto de vista dinâmico: sujeito apaixonado e objeto da paixão; hipnotizador e hipnotizado; e, em certos momentos, sublinhe-se, paciente e analista. A transferência, em seu aspecto-sugestão, está aí contemplada, o que nos reenvia ao tema da técnica clínica: o que ocorreria com a atenção flutuante quando o vínculo analista/analisando esbarra nesta modalidade primitiva da horda primeira? Dito de outra forma, em posição de servil subserviência, pode um sujeito abandonar-se ao sabor do fl uxo das cadeias associativas? Em outras palavras, para chegar a ser sujeito, não está suposto destacar- se da massa hipnótica?

Na contemporaneidade da psicanálise, em que medida as armadilhas da hipnose se atualizam e desafi am o analista em seu lugar de interpretador, em seu lugar de linguagem, engessando- o? Nos episódios em que o instrumento princeps do trabalho analítico, a linguagem, parece entrar em colapso, haveria armadilhas nas quais o analista/terapeuta é capturado? De que natureza são essas armadilhas e qual seu vínculo com o tema da hipnose?

Ao refletir sobre esses momentos de uma análise/terapia, nos quais um obstáculo se interpõe no fluxo do processo do tratamento e precisa ser atravessado, imaginei a existência de duas forças operando na clínica: uma delas, expressando-se na forma das metamorfoses da atenção flutuante e da associação livre, e outra, traduzindo-se com o nome de estados hipnóides. Ambas estariam presentes nos processos psicoterápicos ou psicanalíticos.

Trato neste artigo da passagem da hipnose à associação livre na experiência de Freud, sugerindo que este percurso será necessariamente repetido na prática clínica de todo dia, por menos que um analista queira, ou ainda que não saiba. Tal como a idéia de que a ontogênese refaz a fi logênese, o itinerário de Freud seria obrigatoriamente refeito pela dupla analista/analisando. Não que os analistas, com um pêndulo na mão, tentem hipnotizar de fato seus pacientes. Mas, em certos momentos do suceder analítico, a ligação erótica que vincula analista/analisando se daria à moda da hipnose. Suponho que isso seja um fato da clínica analítica que é, além de inevitável, desejável. A posição exageradamente neutra e distante do analista pode ser tão nociva quanto seu reverso: uma atitude intrusiva. E mais: o analista deve deixar-se capturar pelas forças hipnóticas que insistem em abraçar a dupla do jogo analítico. Donde, abandonar muito precocemente o analisando ao sabor de suas cadeias associativas pode ser, em certos momentos, desfavorável.

Acreditando que o próprio paciente indica os caminhos que inauguram a psicanálise propriamente dita, e que esse caminho passa necessariamente pela transferência, retornei ao “Psicologia das massas e análise do ego”, inspirado num artigo de Alonso [3] que examina dois casos clássicos da clínica freudiana: Emmy [4] e o Homem dos Lobos [5]. A primeira paciente indicou a Freud o lugar de analista a ser por ele ocupado. O segundo, nas palavras da autora, através de sua passividade e docilidade, como que “hipnotizou” Freud, levando-o a atuar: estabelecendo um prazo para o final de sua análise, o analista acata o desejoordem de uma porção do paciente – procedimento que o próprio Freud posteriormente criticou.

O exame desses dois casos teve sobre mim grande impacto. Considerava que o interesse do paciente não seria outro que não o de aconchegar- se na cadeia narcísica dos processos hipnóticos, os quais se oporiam ao laborioso processo analítico de simbolização. Por isso, me surpreendeu que Emmy tivesse rompido por conta própria a cadeia especular que capturava analista e paciente. Apoiado também em meu trabalho prático, cheguei a esta conclusão, de que o paciente pode empurrar o processo na direção daquilo que a psicanálise deseja e facilitar o tratamento naqueles momentos em que a resistência do analista está presente. Em relação ao segundo caso examinado por Alonso em seu artigo, o que mais me intrigou foi a inversão de papéis: intrigante pensar, como faz a autora, que o hipnotizado (Homem dos Lobos) teria o poder de contra-hipnotizar – ou lançar contraordens. É assim que ela entende o procedimento de Freud no caso: ele estaria obedecendo a uma contra-ordem do paciente, estabelecendo um limite para sua análise. Interessei-me pela questão da hipnose a partir daí, motivado por esta dúvida/questão: quem hipnotiza quem?

Posteriormente, me deparei com o trabalho minucioso do psicanalista francês Léon Chertok [6], cujas propostas são surpreendentemente próximas daquilo que eu estava desenvolvendo. Também Chertok parece acreditar que a hipnose está presente na clínica psicanalítica, o que, para ele (e para mim), não é algo a ser lamentado nem evitado. Utilizando-me da riqueza de seu livro, pude encontrar algumas indicações que vinculam a passagem da hipnose à associação livre (que inaugura a psicanálise) ao texto de Freud de 1920 [7], que impõe uma nova postura técnica da parte do analista, como se sabe.

A hipnose e o trauma

A princípio, a hipnose parecia consistir num instrumento puro de rememoração, confiável e “científico”. Como se o médico fosse apenas o aplicador de uma técnica e nada tivesse a ver com o material que emergisse do paciente. A esse material – lembranças traumáticas – era atribuído o estatuto de fato realmente ocorrido, ligado a afetos estrangulados ou não expressos à época do acontecimento, mas que, uma vez liberados (recordados), eliminariam o sintoma neurótico que ocupava o lugar de sua rememoração.

Há, porém, um elemento misterioso em ação por trás da hipnose: os afetos liberados por esta técnica dirigem-se a um terceiro ausente, em algum ponto entre o hipnotizador e o hipnotizado. Além disso, os afetos descobertos talvez não sejam simplesmente liberados mas, em certa medida, criados. Fica claro que o laço estabelecido entre médico e paciente neutro não é, e que a lembrança que a hipnose desperta nos pacientes é construída e não de fato ocorrida. Sendo assim, a técnica estaria condenada (ela simplesmente encontraria os traumas que o médico deseja!) porque falseia a realidade, fazendo voltar à memória do paciente acontecimentos traumáticos que não ocorreram realmente, mas foram imaginados.

Com a noção psicanalítica de fantasia construída pelo sujeito, a estratégia passa a ser o conhecimento desse campo atravessado pelo desejo. A origem da neurose estaria, então, dentro do paciente e não em um evento externo a ser perseguido, ainda que a história efetivamente ocorrida – e absolutamente irrecuperável – certamente o tenha marcado. A teoria da sedução é abandonada com a compreensão de que os traumas sexuais seriam fantasias imaginadas pela criança para se defender de sua própria pulsão projetada: a fantasia cria o trauma! Em outras palavras, o trauma é uma fantasia forjada pelo desejo. O abandono da hipnose coincide, portanto, com a descoberta da transferência: poderosos e descontrolados afetos são dirigidos para a (e mobilizados pela) figura do médico, que passa a consentir em ocupar vários lugares no imaginário do paciente e não apenas aquele do hipnotizador. Sustenta-se sobre esta base a idéia de transferência. Embora o amor do paciente seja dirigido ao médico, ele não deve se acreditar o único alvo desse afeto. Reedições de um passado esquecido estão constantemente em jogo na cena analítica.

De um único lugar diante do paciente, o analista passa a ocupar lugares diversos, ao gosto (do inconsciente) do paciente. E a cena terapêutica, que parecia um espaço neutro, no qual se desenrolava a luta contra o esquecimento, com o médico se acreditando um observador isento, se torna mais complexa, dando lugar à cena analítica. Para que os múltiplos personagens que habitam o paciente se apresentem, o analista se oferece, com seu corpo e sua escuta, como alvo das projeções e transferências que irão, dessa forma, revelar a textura dramática do mundo de seu paciente – sua história, fantasia e fatos traumáticos, ocorridos ou construídos. Este aspecto, inclusive, deixa de ter importância, uma vez que os fenômenos ganham o estatuto de realidade psíquica.

O analista permite que surja, assim, espalhada no tempo de uma análise, a ilusão do analisando, sem compartilhar da convicção de que essa ilusão tenha sido fato algum dia. Apesar de a suspeita – a história relatada pelo paciente pode não ter sido a história ocorrida – ser parte irreversível da atitude do analista, este nunca duvida da verdade psíquica dos fatos que permeiam a viagem analítica de cada paciente. Verdade psíquica que não coincide com a verdade dos acontecimentos factuais, agora para sempre perdida.

Retomando o artigo de Alonso mencionado acima, ao refl etir sobre a questão da sugestão na transferência, a autora se detém por um momento na análise do “Homem dos Lobos” [8]. Depois de quatro anos de análise, Freud decide colocar um prazo para interromper o tratamento desse paciente que se encontrava por muito tempo “numa atitude de indiferente docilidade”: o que imperou nesse momento clínico foi a sugestão, afi rma Alonso. Diz ela:

Freud, a partir do lugar de ideal do ego, exerceu um ato de sugestão. É como se, pela passividade, o Homem dos Lobos tivesse solicitado a Freud “colocar a mão na sua fronte”. É como se Freud, ao responder à demanda, tivesse re-instaurado uma continuidade especular, deixando ambos aprisionados numa estruturação narcisista [9].

Donde, para nós, a pergunta: desse par analista/ paciente, que teria derrapado para um terreno minado de armadilhas da hipnose, quem é o hipnotizador, quem é o hipnotizado? Quem teria pressionado a testa de quem? Intrigante imaginar, com Alonso, que Freud teria cedido a uma contraordem do paciente. Claro está que no tratamento do Homem dos Lobos, iniciado em 1910, Freud já havia abandonado há tempo o hipnotismo. Pois então: não basta abandonar a hipnose para abandonar a hipnose! Haveria armadilhas hipnóides que continuariam a contaminar o campo e a capturar o analista. Um caldo narcísico a ser atravessado: como se o analista tivesse de inaugurar a psicanálise a cada vez e com cada paciente, encontrando a saída da prisão de continuidade especular. Como se o caminho de Freud, das técnicas da hipnose à técnica de associação livre, tivesse de ser novamente percorrido, eis nossa tese.

A realidade psíquica

Ainda quando Freud utilizava a hipnose sustentando uma atitude de insistência e pressão, interrogando seus pacientes para arrancar seus segredos, sua paciente Emmy von N. [10] sugere que ele pare de pressionar e a deixe falar livremente. Sempre com Alonso, nesta solicitação, “Emmy abre brechas no campo da sugestão”, como que indicando a Freud seu lugar de analista. Lugar de escuta a ser encontrado fora do modelo surdo da escolha narcisista de objeto. Mas, sugiro, para que este novo lugar seja encontrado, parecem necessárias operações prévias que incluem assassinar um pai, quebrar um tabu, haver- se com o próprio desejo. Na medida em que, para Freud de 1921 [11], o indivíduo que se libertou do grupo teria sido o primeiro poeta épico, pareceria coerente sugerir que o ato psíquico que leva até a saída da prisão de continuidade especular (do circuito narcísico, da armadilha da hipnose) seria sinônimo de um ato poético: apreender, em palavras, sensações que seriam pura intensidade. Da mesma maneira, o outro estaria fora do circuito narcisista e só poderia ser alcançado num salto. Salto que possibilitaria apreender uma outra imagem, que não a de si mesmo, no olhar do segundo elemento da dupla.

Consentir em ser apanhado pela armadilha da hipnose e ali permanecer, pelo tempo que fosse necessário, daria a analista/analisando um chão preparatório para o salto poético. Pois não foi depois de um tempo de submissão ao pai, e somente depois disto, que o fi lho poeta épico se fez sujeito e encontrou uma posição diferente daquele lugar comum, da massa, em que estava prisioneiro? Teria, assim, que haver um tempo de ilusão, um tempo de acreditar numa relação dual narcísica, antes de operar a passagem da hipnose à associação livre. E esta passagem, note-se, poderia ser facilitada e até inaugurada pelo próprio paciente – que também empurra o analista na direção da psicanálise. Recusar este tempo de hipnose poderia ser traumático e tão nocivo quanto permanecer indefi nidamente prisioneiro das cadeias narcísicas.

Dentre as razões que levam Freud ao abandono da hipnose em si, enquanto técnica, destaco três (e desconsidero o motivo anedótico segundo o qual Freud teria sido um mau hipnotizador!). Em primeiro lugar, ela intensifi ca ao máximo a transferência como efeito da sedução que captura médico e paciente – o analista, que sente superada magicamente sua impotência fundamental em relação à verdade do outro, e o analisando, que encontra o profi ssional onipotente, encarnação do grande Outro que possui todo o saber. A transferência recém-descoberta, necessária, inevitável e motor da análise, é de tipo positivo e moderado para o sucesso do tratamento. Na hipnose, como demonstra o mesmo texto de Freud de 1921, apenas uma posição transferencial ganha máxima intensidade: a posição do fi lho da horda primitiva em estado de terror e fascínio diante do pai todo-poderoso. A análise recém-inaugurada passará também necessariamente por aí. Mas não ficará congelada nessa única modalidade de ligação erótica, grave e monotônica, na qual uma “prisão de continuidade especular” se deflagra [12].

O segundo motivo para o abandono das técnicas hipnóticas diz respeito à idéia de resistência: a hipnose a serviço da catarse, ainda que pretendesse também operar pela via de levare (na medida em que levanta lembranças traumáticas e as desmancha, lembranças que repousavam nos porões do sujeito hipnotizado), não se coaduna com a análise da resistência. As resistências são um poderoso indicador dos caminhos a serem trilhados nos labirintos da clínica. Quanto mais perto estivermos dos núcleos patógenos, daquilo que interessa numa análise, daquilo que contém verdade, tanto maior a resistência do paciente em permitir a aproximação. A resistência sinaliza, portanto, as portas a serem abertas no processo. Prescindir das resistências, como ocorre na hipnose, signifi ca perder um importante indicador.

A terceira razão para o abandono da hipnose, como já apontamos, refere-se à idéia de fato. A noção de um fato efetivamente ocorrido a ser recuperado pelo tratamento foi desmontada. Com isso, o trauma perde o caráter de verdade factual. No registro da fantasia, no qual agora a análise vai transcorrer, as lembranças são construídas e passam, necessariamente, pela transferência que atravessará o processo – cada passo, cada recordação – de cabo a rabo. Com o nascimento da psicanálise, o analista está cabalmente implicado em cada um e em todos os movimentos do analisando. O lugar de cientista neutro, escavando ruínas arqueológicas, utopia impossível, fi ca para sempre perdido. A legitimidade da psicanálise enquanto ciência terá de ser encontrada noutro lugar. A verdade que se descobre numa análise é da ordem da ficção.

Cabe aqui diferenciar a técnica hipnótica a serviço da catarse, da sugestão hipnótica pura e simples: a primeira pretende operar pela via de levare ao passo que a segunda se situa na via de porre. A primeira busca acontecimentos traumáticos acreditando que tenham realmente ocorrido e que podem ser desmanchados com a rememoração. Todo material produzido nessa terapia, na concepção do terapeuta, pertence ao paciente. A segunda acrescenta ao material que emerge do paciente as idéias-substância fornecidas pelo técnico, colocando ali, por conseqüência, elementos externos ao paciente – tanto assim que, para Kohut, o nascimento da psicanálise se dá com o abandono da sugestão direta e não com o abandono da hipnose que, para ele, pode ser psicanalítica [13]. Assim, tomando essa idéia de Kohut ao pé da letra, desembocaríamos na seguinte indagação: haveria ilhotas de psicanálise no campo da hipnose?

Embora Freud nunca tenha desistido completamente de precisar a história ocorrida de fato e que teria marcado o sujeito, buscando por vezes encontrar a hora exata e o acontecimento pontual – que faria da psicanálise, enfi m, uma ciência? – como no caso do “Homem dos Lobos” [14], no caminho teórico empreendido, as idéias de fantasia e de representação psíquicas foram reduzindo a importância do fato efetivamente ocorrido na história do sujeito.

Com a idéia de fantasia, portanto, o trauma fica transformado: a cena impactante (traumática) pode não ter ocorrido, mas ter sido fantasiada. Traumas poderiam ser então construções da fantasia, representações que acima de tudo expressariam as criações do sujeito e o seu desejo. O fato, nesse momento inaugural da psicanálise, seria algo para sempre perdido. Obviamente o arranjo peculiar do psiquismo de qualquer sujeito é marcado pelo ambiente, meio externo e pela história vivida, mas o peso e a ênfase recaem agora nas construções intrapsíquicas desse sujeito que faz um trauma porque tem desejo.

Entretanto… o trauma insiste!

Sugerir, como fazemos aqui, que o percurso de Freud, da hipnose à associação livre, seja necessariamente repetido na clínica contemporânea, signifi ca retroceder na teoria psicanalítica e, ao mesmo tempo, avançar na história da psicanálise, contemplando as duas tópicas. Significa recuperar a verdade do trauma da época das técnicas hipnóticas e interrogar novamente a noção de um fato – fantasia ou fato realmente ocorrido? Significa des-inaugurar a psicanálise para poder re-inaugurá-la adiante. E não estamos sozinhos nisso. Senão vejamos:

Em primeiro lugar, acreditamos que, do ponto de vista técnico, ao sublinhar o aspecto traumático presente no seio da clínica psicanalítica cotidiana (e interrogá-lo), o analista ganha um lugar de escuta peculiar, no qual pode circular no cenário analítico com fl exibilidade e melhor responder – mesmo que nada expresse – às demandas do analisando.

Pensando assim, estaríamos de acordo com Freud de 1920 [15] que, ao recolocar a traumatogênese na equação etiológica da neurose, re-desperta a abandonada teoria da sedução.

Estaríamos também de acordo com Ferenczi que, levando às últimas conseqüências justamente esta escritura de Freud, “Além do princípio de prazer” acaba por desembocar na neocatarse [16]. Não seria irrelevante mencionar aqui que, com a teoria da sedução generalizada [17], Laplanche está, ao menos teoricamente, em sintonia com Ferenczi…

Finalmente, ao sugerir essas idéias, estamos em conformidade com um movimento de retorno freudo-ferencziano da psicanálise atual [18], recuperando um Freud mais antigo, da psicoterapia e da catarse – muito embora não se cogite repetir literalmente as condutas de Freud do tempo da teoria da sedução: trata-se, apenas, de reconhecer e dar espaço no cenário analítico aos fenômenos da ordem de um trauma (e apreciar seus efeitos) – e concluir que, na história da psicanálise e no percurso de Freud, nada deve ser descartado como obsoleto, porque o que foi abandonado retorna mais tarde solicitando lugar, legitimidade, cidadania.

Na contemporaneidade, vale a pena observar a literatura psicanalítica recente e apreciar a quantidade de artigos relativos a pacientes difíceis, aqueles que desafi am o lugar do analista – em especial os que desafi am a clínica do recalque (borderlines, por exemplo), que exigem, mais que os demais, que o analista descubra maneiras de reescrever a psicanálise, descendo ao nascedouro de sua ciência, no século retrasado, e procedendo a um trabalho de gênese.

Cabe por fim confessar que, ao afastar-me da psicoterapia e abraçar a clínica psicanalítica, não tinha como saber do meu irônico reencontro com uma fenomenológica experimentação habitando o umbigo e os porões da psicanálise. Reencontro com uma psicoterapia que, desde 1920, se reinstala na metapsicologia e na técnica psicanalíticas.

Meu propósito aqui era dar uma panorâmica da passagem da hipnose à associação livre. Os passos e o contexto, em maior detalhe, que levam Freud a operar seu salto – e fundar a noção de fato psíquico – e, especialmente, o efeito da pulsão de morte no corpo teórico-clínico da psicanálise (que faz retornar com força a noção provisoriamente abandonada de um trauma) serão examinados em maior profundidade em outro artigo.

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