EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Paulo César Endo, A violência no coração da cidade – um estudo psicanalítico, São Paulo, Escuta, 2005, 320 p.


Autor(es)
Renata Udler Cromberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo.

voltar à primeira página
 LEITURA

Um jabuti no labirinto da violência [ A violência no coração da cidade – um estudo psicanalítico ]

A land turtle in the labyrinth of violence
Renata Udler Cromberg


Resenha de Paulo César Endo, A violência no coração da cidade – um estudo psicanalítico, São Paulo, Escuta, 2005, 320 p.

O impacto e ineditismo do livro de Paulo Endo A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico trouxe-lhe um prêmio merecido, um dos Jabutis de 2006, principal prêmio literário do país. A imagem da longevidade do jabuti, símbolo de um caminhar lento e cauteloso, mas implacavelmente farejador, é uma boa metáfora para o trabalho de pesquisa que se descortina nesta cidade de São Paulo pelos labirintos da violência que se instala em seu coração.

De saída ele se faz e nos faz acompanhar do lugar de um bom pai, um pai Tirésias, cego visionário, que sabe que antes da cidade vieram as florestas, os bichos, o profundo da noite e que não se esquecer disso pode trazer a aposta de que a cidade possa ser melhor, construída como um lugar sem medo, lugar de vida, trabalho, amor e diversão. O lugar do bom pai é aquele da transmissão de uma esperança lúcida e a escrita de Endo se anima e se tece entre a criança que se foi, a lembrança de uma cena de violência assistida aos seis anos, uma briga de adultos cheia de ódio, agressão e armas, onde pela primeira vez se sentiu chocado com a determinação de ferir e machucar – e a impotência da intervenção do homem forte a seus olhos que era seu pai – e a criança que seu filho é e que pergunta aos três anos: “Pai, o que é a justiça?” O desejo e o dever da transmissão do que é a construção da justiça possível, no mundo em que um corpo habita e que habita o corpo. Tal escrita busca então restituir o dizível ao que era imagem quase sem pensamento no coração do menino que se foi e atribuir imagem e palavras ao que é conceito de justiça em abstrato no pensamento do menino que é. É a ameaça de perda do pai vivo que remete àquilo que atinge o corpo do pai e o corpo do menino. Paulo Endo se põe a velar por uma espera de um sentido ausente que insiste na contracorrente dos sentidos habituais. Mas o faz de forma a não sucumbir ao medo da constatação da violência que pode atingir qualquer corpo na cidade e que induz ao encolhimento do jabuti na sua casca protetora. Não é uma psicopatologia do medo que nos apresenta estratégias defensivas, mas, ao contrário, o jabuti se arma apenas de uma coragem lúcida e sai às ruas se fazendo primeiro geógrafo que, com os olhos e o pensamento, traça mapas que dêem uma inteligibilidade ao que se apresenta como o labirinto caótico da violência na cidade.

Se o eixo organizador do livro, o seu foco, é a violência na cidade de São Paulo, os instrumentos da coragem lúcida em enfrentá-la como problema vêm do psicanalista: falar no público do privado, trazer a morte e o luto, temas negados na contemporaneidade como coisas da vida privada, para o centro da cidade. A psicanálise freudiana como ferramenta fundamental, eixo teórico organizador para os deslindamentos subjetivos das violências cometidas e recebidas. O geógrafo se faz presente na caracterização do corpo, com suas representações e desejos, na cidade das intersecções violentas na maneira de ocupá-la e habitá-la. E se torna historiador ao buscar as determinações deste mapa na história da transformação da cidade em metrópole no início do século xx. Depois o pesquisador se faz geólogo ao buscar as bases metapsicológicas da violência na neurose traumática, no sadomasoquismo e na pulsão de morte. Por fim o pesquisador volta à superfície se fazendo psicanalista – filósofo político atuante na cidade ao apontar as propagações das violências, suas politizações e o combate politizado contra ela. A sua participação junto às atividades do Fórum em Defesa da Vida e Contra a Violência do Jardim Ângela traz as periferias como o lugar pululante de criação de novas políticas. Há que ouvir o que a rede de solidariedade produz como nova política para repensar as políticas públicas e legislativas sobre violência. O lugar do novo é lá mesmo onde se age nas entranhas do lugar violento para transformá-lo, através dos protagonistas da violência sofrida, em solidariedade com as virtuais novas vítimas, que se tornam agentes da Paz. O testemunho dos habitantes é aqui seu diapasão, seu instrumento de ressonância.

A violência no coração da cidade

São Paulo é uma das cidades mais violentas do país e do mundo e a violência foi apontada em pesquisa recente, de maio de 2008, como a principal preocupação do paulistano, desbancando a alta do custo de vida, preocupação predominante 25 anos atrás. Curiosamente, este é o intervalo de tempo dos dados de pesquisa nos quais Paulo Endo se apóia para suas lúcidas e antecipadoras constatações. Os números mostram a propensão geométrica da taxa de mortalidade por homicídio na cidade, embora haja variações díspares que colocam os índices em Moema abaixo dos menos violentos do mundo e Jardim Ângela acima dos mais violentos do mundo.

Endo distingue muito bem o que são violências fundantes dos acordos, das leis e da ética e as violências devastadoras onde o movimento de fuga para o próprio narcisismo é a reação a qualquer mínima diferença com ódio, mal-estar e indiferenciação que autoriza a eliminação do diferente. É esta operação que produz um distanciamento radical dos que diferem que autoriza a sua expulsão para fora da cidade como forma reiterada de anular as possíveis e prováveis experiências de conflito. Há uma relação orgânica entre os anseios expulsivos, segregacionistas e eliminacionistas e as sucessivas políticas públicas em prol das elites minoritárias que têm se mostrado eficazes e catastróficas ao longo da história da cidade na desconstrução sucessiva de espaços em que a cidade possa se exercitar na dificuldade crescente que um habitante destas zonas tem para construir-se como cidadão.

Os mapas da violência apresentam, com clareza, a correlação estreita entre a desigualdade
social e a violência urbana, quase sinônimo de injustiça. Certos distritos da cidade de São Paulo, assolados pela desigualdade, tornaram-se verdadeiros campos abertos onde se pratica a violência de modo cotidiano e corriqueiro e, portanto, onde, apesar da transição para a democracia na década de 1980, graves violações dos direitos humanos continuam a ocorrer, com execuções sumárias, torturas e detenções arbitrárias pela polícia e por grupos ligados à segurança privada e ao crime organizado.

Há uma intrínseca relação entre os processos violentos do período escravocrata e as formas de violência no Brasil atual através da espoliação do corpo do escravo, do negro, do pardo, do não-branco. O corpo adquire um papel fundamental como causa dos sofrimentos e violências que o sujeito padece socialmente. A categoria racial pardo salvaguarda a todos de reconhecer a sociedade brasileira como uma sociedade predominantemente negra; afirma um certo status social daquele que estaria excluído dos benefícios que a “brancura lhe daria” mas livre das violências prévias que recaem sobre os pretos que por definição autorizam desmandos e intrusões. Ser negro no Brasil é assumir uma posição conflituosa e em oposição, na qual se é previamente colocado, a não ser que se faça visível em sua alma algo que o embranqueça, mas somente no tempo que estiver evidente: alma de artista, de jogador, de empresário, de político, que tire o negro de sua negritude.

Na verdade, estar entre os não-cidadãos numa cidade como São Paulo é aterrorizante e suas conseqüências podem ser dramáticas, entre as quais figura a máxima exposição do corpo e, com ela, a nudez da própria vida, exposta à sua eliminação. Ser branco, rico e bem-sucedido envolve e exige cada vez mais uma superproteção do próprio corpo, da própria vida, que se torna ela também, exposta, matável, justamente porque estes corpos tornam-se perfeitamente comutáveis em valores, como mercadorias caras no mercado da violência, o que é atestado pela escala incontrolável dos seqüestros na cidade (p. 31).

Isso tem exigido resguardo, proteção física, enfeudamento e construção de enclaves fortificados, formas de isolamento e proteção que desumanizam a cidade.

A definição do cara certo a ser morto ou preso fica inteiramente a cargo da polícia, do policial em ação. A tortura praticada pela polícia civil no Brasil, como violência ilegal institucionalizada, é o caminho curto para o dinheiro fácil, violação do direito de não ser violentado.

A ação específica de torturar degrada o sujeito através da usurpação de seu corpo, sendo um dispositivo que permite ao praticante ganhar poder, através da ação arbitrária e direta sobre outrem, reconhecimento, através da confissão, e dinheiro, através da propina. Tudo no escuro da ilegalidade (p. 37).

As polícias brasileiras em segredo ou ostensivamente buscam impor-se e sua ação não permite abstrações de nenhuma espécie. Deter, prender, privar de liberdade não é o bastante; é dispor, dessubjetivando o cidadão, do que tem de mais próprio e singular: sua vida, seu corpo.

Paulo Endo traça um implacável mapa histórico de como se deu a partilha da cidade de forma injusta, a serviço das minorias privilegiadas e seu jogo de interesses. Ele se mostra então um geógrafo e historiador do mapa recortado a sangue no corpo do habitante, a serviço de um projeto de cidade mais justa e solidária, que quebre a elitizada privatização territorial, o investimento urbanístico injusto e a legislação como meio para execução dos sonhos e projetos das camadas mais privilegiadas, em detrimento das mais pobres.

Assim, ele apresenta de forma minuciosa a história da partilha imobiliária especulativa entre centro e periferia da cidade traçada desde o início do século xx pela Companhia City e Light, ambas firmas estrangeiras, de forma injusta e espoliadora, uma passagem avassaladora pelos territórios abertos de uma metrópole ainda nascente e promissora a partir do aumento populacional gerado pelo aumento de industrialização que determinou grande procura de terrenos e habitações. Essas determinações históricas vão definindo um traçado da cidade que submete as novas gerações à crença de que as demarcações são inapagáveis, tamanha sua solidez e força, resultando numa cidade demarcada pela desigualdade e por subjetividades que mantêm e reforçam estas desigualdades em muitos aspectos. A urbanização trouxe consigo processos discriminatórios, cuja linha de corte recaiu sempre sobre o corpo do cidadão negro e pobre.

Tornar-se cidade para São Paulo tem sido um processo cuja estrutura repousa no alijamento, da maioria da população, dos benefícios da cidadania e a tornam uma cidade injusta, incapaz de promover o bem-estar para a maioria de seus habitantes, e que fracassou em seus compromissos republicanos e democráticos. A truculência policial, o ideal da justiça com as próprias mãos, a lei do tráfico, os crimes passionais, os seqüestros, os linchamentos, os processos de periferização e exclusão territorial urbana são exemplos claros da violência que ocorre como instrumento pessoal, que viabiliza a consecução de interesses conflitivos, através da eliminação da parte que obstaculiza e que se opõe.

Endo introduz um conceito fundamental, a distinção entre lugar e espaço, para dar conta de entender o sistemático processo de limpeza das áreas centrais da cidade de São Paulo que ocorre sistematicamente desde o final do séc. xix e prossegue até hoje nas disputas pela ocupação e uso dos espaços da metrópole paulistana e nos permite testemunhar o litígio permanente pelos direitos de habitar e partilhar a cidade cidadã.

O lugar é aquele em torno do qual forma-se uma comunidade, com suas raízes históricas, seus costumes e suas tradições. Lugares instauram identidades, pois separam o que é próprio do outro, ao contrário do Espaço que é o poder da uniformização que destrói o lugar enquanto lugar especial, que dissolve no ar tudo o que é sólido. Nas grandes desapropriações de terrenos de favelas ou casas populares para construções públicas, como a avenida Água Espraiada ou a Operação Nova Faria Lima, há estratégias de pressão sobre os moradores que indicam a maneira como o local foi se desconstruindo como um lugar dos moradores para transformá-lo em espaço expropriado, em experiência de medo e de morte. O mais terrível é constatar que quando o espaço invade o lugar, destruindo-o, desfigurando-o, fazendo o morador desconhecê-lo, a resistência fica abalada pelo medo e a sensação de estar em grande perigo. Sua presença física torna-se, então, subitamente descontextualizada e indesejável. “A circulação do cidadão, própria e singular, que só pode ser exercida pelo corpo contextualizado, inscrito em um determinado lugar, é bruscamente impedida e inviabilizada” (p. 71). Nesta operação de transformação do lugar em espaço, é o corpo que é visado, como obstáculo, entulho, objeto de degradação pública e subjetiva. Um projeto para a cidade que implique o seu reconhecimento como um bem partilhável por todos e denuncie o desconhecimento desta partilha como uma violência vai se tornando insustentável. A violência se incrusta no coração da cidade, quando é condenada no público e exercida no privado. “Quanto mais exposto o corpo, mais tocável, menos interessante torna o que ele tem a dizer. O último que fala é o primeiro que apanha”.

Esta conjunção da dor no corpo e o emudecimento e da oportunidade única de reversão da dessubjetivação, que implica fazer a violência falar, está exposta no último capítulo da primeira parte, para mim, o coração do livro: a conjunção entre corpo, lugar e linguagem. A violência na cidade incide no corpo. Mas o corpo é onde se articula o lugar enquanto possibilidade de vivência e constituição do próprio que possibilita o exercício da singularidade no espaço comum e público. A violência é aquilo que irrompe cindindo esta articulação intrínseca entre corpo e lugar. O que é gerado é um corpo desterritorializado, desterrado, objeto que pode ser eliminado por circular indevidamente pela cidade. Como ninguém reclamará este corpo, é desejável eliminá-lo. É o campo das trocas de linguagem que está proibido a este indivíduo, onde a escuta recíproca traz a possibilidade de reconhecimento e inscrição no seio da cidade, como uma das suas partes integrantes e inalienáveis. Nesse sentido, populações inteiras foram separadas de sua condição cidadã ao serem apartadas do seu direito ao lugar e se tornarem habitantes clandestinos e ilegais. É aí que Endo localiza o início da violência, antes mesmo de um corpo se atracar violentamente com outro, violência que não é reconhecida por quem a comete, as camadas privilegiadas e protegidas da sociedade, que mantêm uma diferença inconciliável com as camadas pobres, os moradores de favelas, da periferia e do subúrbio das cidades brasileiras. A observação diferencia esses corpos. Os do lado de dentro, que permanecem e usufruem da cidade, são corpos, zelados, seguros, fortificados; os de fora, os excluídos, são passíveis de interpelação, deslocados, invadidos, expulsos e eliminados. Ex-corpos, corpos retirados de si sem qualquer cerimônia. Ao morador da não-cidade impõe-se a tarefa cotidiana de se opor às formas de organização violenta que vicejam onde as redes de sociabilidade são inexistentes ou estão enfraquecidas. Nesse caso, há pouca possibilidade de ser poupado da violência, a não ser barganhando bens de interesse do violentador entrando no comércio da violência. Um exemplo disso é a ligação dos comerciantes locais com a polícia corrupta ou o policial guardião do traficante.

Paulo aponta, numa observação genial, que a avaliação dos sinais e marcas corporais dos suspeitos na lente do policial coincide com os valores da sociedade paulistana. “Preto, pobre, nordestino, maconheiro e adolescente representam autorizações prévias que permitem as práticas abusivas” (p. 81). O discurso da eliminação define os elimináveis segundo a cor da pele, a região geográfica da cidade ou o estado de origem, a roupa e a conta bancária: pretos, pobres, moradores da periferia, crianças e mulheres da periferia. Uma diversidade de aparatos, recursos e investimentos da sociedade, gerenciados ou não pelo Estado, estão voltados contra os espaços já ilegais, miseráveis e depauperados da cidade, mantendo a crença de que o mal está isolado e pode ser localmente controlado.

Ele nos mostra, com Hanna Arendt, que os sujeitos se fundam, se reconhecem e se diferenciam no exercício da política, aquisição tardia e de modo algum inerente ao homem. O imperativo de proteção ao próprio corpo em detrimento dos demais encobre todo o espaço alteritário e instável que funda o sujeito e a política, reivindicando através do ato a própria supremacia absoluta expressa na capacidade de determinar a vida e a destruição de alguém. Paulo Endo prepara a entrada do pensamento freudiano ao dizer que o desejo de eliminar pretende expulsar o que lhe é intrínseco, ao querer assegurar exterioridade a algo que nasceu em seu próprio seio, que quer matar o que não pode ignorar como sendo, de algum modo, parte de si.

Se o lugar para o corpo é a linguagem, o lugar para a linguagem é a cidade. A linguagem deveria ser o lugar de reconhecimento da diferença, do diferente e do singular. A elisão da linguagem pela violência é um dos aspectos essenciais do fenômeno e do processo violento, pela impossibilidade do psiquismo representar uma força que o atinge de forma excessiva e inesperada e emudece, esteriliza, cala, animaliza. Há um trabalho infinito, permanente e incessante da linguagem, para aquele a quem a violência aturdiu e deixou o seu rastro sempre inacabado. O ataque ao corpo é uma maneira de interromper a linguagem em seu princípio originário de mediação e de imposição de uma distância. Violentar o corpo só atinge pleno êxito quando se alcança a dessubjetivação do sujeito, privando-o dos lugares onde ele se constitui. Ao corpo violentado que se restitui um lugar pela linguagem, é imprescindível que ele seja devolvido aos lugares onde seja possível uma experiência de singularização, uma ocupação e circulação própria e singular pela cidade, para que ele reencontre um acolhimento mínimo onde seja possível a defesa autônoma em face das agressões que a cidade inevitavelmente lhe imporá. As várias entidades de combate à violência no Brasil são peças-chave na tentativa de buscar comunicar a violência através da linguagem, onde o intuito é reconstruir, com o sujeito partido pela violência, uma linguagem capaz de colocar em sua história o fato violento que acabou de atravessá-lo. É só retornando ao público, à cidade, que o acontecimento violento encarcerado na subjetividade privada de quem sofreu a violência pode ser verdadeiramente compreendido e estancado em sua repetição. A dor física é o não-lugar da linguagem, excluindo do jogo os princípios que a sustentam: referência a algo exterior, necessidade de compreender, compreender-se, comunicar e criar.

A violência no coração do sujeito

A pergunta que leva ao pensamento freudiano é: qual o impacto que esse cenário urbano onde se produzem e reproduzem as violências traz para as subjetividades? O itinerário que Paulo Endo propõe liga a evolução do pensamento freudiano à problemática do corpo, do ego e das violências. Cinco partes tratam de maneira minuciosa os desdobramentos conceituais da obra de Freud sobre a violência do corpo, do ego e da guerra, a relação do corpo com a violência, o sadomasoquismo, a pulsão de morte e as violências e as pulsões.

A pulsão de destruição é a expressão de uma força que se caracteriza por ignorar todos os esforços de ligação, representação e linguagem, ao mesmo tempo que se dirige para um além da civilização, um além de Eros, no qual a vida, enquanto laço, associação e sexualidade, terminaria. A neurose traumática é onde se pode demonstrar a crueza do embate egóico ante uma experiência que o ultrapassa por constituir-se previamente como absolutamente estrangeira e alheia (a morte, o acidente, o desastre, a catástrofe). Isso recoloca o ego diante da iminência do fracasso de sua tarefa de mediação e de sua gênese corporal. O corpo estranho do trauma é um excesso que se tornou puramente psíquico, que insiste como coisa enterrada viva, soterrada, a partir de uma realidade extrapsíquica excessiva que atinge o sujeito como exterioridade absoluta, ultrapassando suas possibilidades de metabolizá-la. Num meio excessivamente violento, as intensidades
que atingem o sujeito podem ser de tal monta que dificultem a subsistência de uma atividade egóica, de um corpo erógeno, formas de ligação e vida sexuais, submetendo o aparelho psíquico à repetição estanque e empobrecedora. “Isso faz do ego, após seu fracasso, um vassalo da situação traumatogênica, condenado a repeti-la” (p. 138). A preocupação freudiana é a de compreender os processos que envolvem o psiquismo no ponto em que ele se articula e é ultrapassado por uma realidade que lhe é alheia e adversa, realidade traumática que é uma porção incapturável,

marca de uma insuficiência no ponto de articulação entre ego e corpo, onde operam, também a nível psíquico, as defesas de que o organismo vivo dispõe para salvaguardar a própria sobrevivência e a da espécie (p. 143).

Paulo Endo apresenta sua originalíssima leitura ao dizer que, após a surpresa que golpeia o aparelho psíquico, um novo ordenamento e uma nova tarefa se impõem a ele, pois uma nova dualidade passa a vigorar: um princípio de sobrevivência e um princípio de realidade. O que está sob risco é o corpo vivo e não o corpo sexual.

Os sonhos traumáticos, a compulsão à repetição, a mutilação do corpo físico, a pulsão de dominação
e de destruição terminam por ocupar o lugar de defesas egóicas, diante das perturbações que passam a agir de dentro e de perto, tendo se originado fora e longe (p. 146).

Como abordar psicanaliticamente os processos da agressividade, crueldade, dominação e violência humana? Na mutualidade, na implicação intrínseca, imbricação radical entre o agressor e a vítima.

As diferenças entre sadomasoquismo que associa radicalmente Eros e dor física e psíquica e a neurose traumática, impelindo-a incessantemente ao desprazer intenso através da compulsão repetitiva, permitem compreender formas subjetivamente diferenciadas de perpetuar a violência ou de superá-las (p. 148).

No sadomasoquismo, a própria dor seria uma meta e um objetivo psíquico, acompanhado de intenso prazer do submetimento infligido ao outro, e não a dor física como sinal de algo que deve ser evitado, minorado, estancado. Assim, Endo não considera a pulsão sadomasoquista como exclusiva na compreensão das violências, mas a vertente privilegiada do pensamento psicanalítico que esclarece e permite avançar na compreensão das violências intersubjetivas. Na sua leitura, no itinerário freudiano, os fenômenos da agressividade e destrutividade orbitam em torno de dois eixos fundamentais: a pulsão sadomasoquista e a pulsão de morte. A neurose traumática e o sadomasoquismo são dois caminhos fundamentais para a compreensão psicanalítica das violências que se estruturam orientados, desde o princípio, segundo forças e necessidades psíquicas diferentes.

O sadomasoquismo representaria então um exemplo do triunfo do ego-prazer sobre o ego-realidade, no sentido em que desabilitaria, a partir de uma relação fusional, o outro como objeto e como realidade (p. 189).

A violência no coração do sujeito se inscreve no desejo superegóico de cruelizar e destruir o ego e a violência com que este é capaz de desejar e impor a outrem, articulação entre masoquismo e sadomasoquismo morais. O que evidencia a profunda implicação do sujeito tanto na violência sofrida como na violência infligida, já que processos sadomasoquistas exigem mutualidade, pacto erógeno e reversibilidade. Endo é cuidadoso ao tentar mostrar sua intenção de evitar um coroamento de quaisquer posições e explicações sobre a violência, com o intuito claro de dispor de todo arsenal psicanalítico diante dos fenômenos analisados, mas é a introdução do conceito de superego que define a violência como constitutiva da própria interioridade do homem, versão interiorizada da destrutividade, do autoritarismo e da crueldade que, entretanto, retirou todos os seus ensinamentos de sua relação com seus primeiros objetos de amor, prazer, horror e ódio. “O aparelho psíquico se constitui tendo a violência como percalço e como estrutura, assimilando-a a fim de aplacar os seus perigos” (p. 194).

Assim, a análise das relações problemáticas entre indivíduo e cultura num de seus aspectos mais limitantes, a violência, remonta à gênese do aparelho psíquico numa de suas instâncias, o superego, que se radica e coincide com a cultura. Se ser civilizado é renunciar às pulsões e, ao mesmo tempo, satisfazer o superego que exige esta renúncia contínua,

a vida, psicanaliticamente falando, só pode ser concebida sob uma única modalidade: conflitual, ambivalente e paradoxal. O mal-estar como condição do estar na civilização e na cultura indica que a própria cultura é sempre um lugar inacabado, um lugar impossível, incapaz de sustentar a humanidade do homem no que ela tem de mais radical: o desejo de morte intricado ao de vida (p. 205).

As formas multifacetadas e plurais com que Freud apresenta as violências, como um dos núcleos de sua obra, apontam para a impossibilidade de capturar o fenômeno da violência num conceito geral. Ao optar por nomeá-lo como pulsão de morte, a violência é inscrita num movimento vital paradoxal, visível sob formas infinitamente variáveis que remete-nos à tarefa de

uma reflexão contínua que deve se exercer sobre a experiência excessiva. É o que indica para a psicanálise o caráter incapturável das violências, a tarefa de compreendê-las continuamente como forma de não sucumbir a elas (p. 217).

A partilha solidária no coração da paz

Na última parte do livro, o corpo está de volta à cidade. Endo trabalha primeiramente a degradação do corpo vivida e testemunhada no espaço público da cidade e a exposição das violências dos mesmos corpos, pelas mídias, transformadas então em espetáculo, reino das aparências, da banalização e glamurização da violência. Em seguida, será o papel da partilha e do testemunho da violência na comunidade, através da sua participação e escuta dos depoimentos no Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência e na Caminhada pela Paz e pela Vida que finalizará a pesquisa.

A solidariedade e o papel da escuta surgem como fundamentos prioritários neste momento de participação no cotidiano de um movimento social. Agir solidariamente, importar-se com um outro, interpelando a ação do agressor, reconhecendo também nesse outro uma face humana prestes a ser borrada, modificar com a própria ação, palavra ou presença na vida de alguém que pede auxílio humano, suscita, põe novamente em circulação o prazer erógeno. Ser solidário passa a ser uma necessidade vital do ego, que encontraria neste reconhecimento uma prova de autonomia e de vitalidade psíquica, um sinal evidente de que ainda se vive, na medida em que tal ação restitui, ainda que provisoriamente, uma imagem narcísica investível, perdida nos escombros das experiências violentas. O gesto solidário mostra o caráter transformador que se impõe a quem se coloca à escuta diante do excessivo. A partilha que se coloca é de uma exigência absoluta onde se estabelece um compromisso, uma forma de cumplicidade que nos coloca rente a uma dor que, após ser ouvida, não podemos deixar, de algum modo, de sentir. Torna-se um patrimônio comum de quem fala e quem escuta, algo partilhável entre iguais que, nesse momento, exercem e constatam suas diferenças, fazendo disso o esteio onde algo novo se inaugura e inspira a prosseguir falando. A experiência testemunhal tem um caráter radical e inédito através do ato de fala em que se realiza por meio de uma narrativa que mesmo que seja a descrição de um universo de morte é comunicada por uma pessoa que rememora, pensa, chora e leva adiante.

Quando Paulo Endo traz os testemunhos, inclusive o seu, revela-os como o principal apoio de suas reflexões por onde se escoa um dos objetivos centrais de todo seu trabalho: “poder repercutir e ser de algum modo instrumentado por aqueles que vivem e reconhecem a dimensão da violência na cidade com crueza, constância e sem atenuantes” (p. 266). O Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência é um exemplo de que é possível se opor às violências restaurando o sentido profundo que só a participação intrínseca e verdadeira da população atingida e envolvida por estes abusos pode alcançar; que a dor e o medo não devem ser assunto apenas para especialistas; que os testemunhos são parte do conhecimento imprescindível nesse processo de reconhecimento e compreensão das violências.

Já na Caminhada pela Paz e pela Vida, realizada uma vez por ano, pessoas serpenteiam como um cordão pelas ruas do Jardim Ângela e Jardim São Luís e realizam de uma só vez a conquista do direito de viver ocupando a cidade e o reconhecimento de si mesmos como sujeitos singulares e cidadãos de direitos. Um cordão policial protege, durante a caminhada, o direito à dor, ao sofrimento e ao luto. Nela, a dor pode ser partilhada e exposta de forma diferente da espetacularização. Os mortos anônimos podem ser ali, naquela coletividade, singularizados, e podem passar, por instantes, a existir, adquirindo importância e rosto. Refaz-se desse modo, todos os anos, o ritual dos lutos impossíveis, onde cada um dos participantes reivindica para si os entes queridos que, arrebatados por “mortes matadas, não puderam ser celebrados, homenageados, velados. Articula-se na caminhada seu caráter político intrinsecamente ligado à experiência singular da dor” (p. 281).

Mas Endo nos oferece um final inquietante, que relança a questão do fundamento da violência numa nova direção, reunindo o pensamento de Freud e Agamben. Na minha leitura, ele nos fala que segundo o mito psicanalítico da origem da civilização, na casa do pai, reinava a matança dos filhos e dos irmãos, até que estes mataram o pai e depois, arrependidos, renunciaram à repetição do crime. Freud colocará nesta renúncia, que põe a problemática paterna no centro, o fundamento da política e o paradigma do exercício da soberania. Ora, mas indo mais aquém, é a matança dos filhos e a realizada pelos filhos, o fundamento primeiro do poder político: vida absolutamente matável, que se politiza através da sua própria matabilidade. Os seres matáveis são o ponto zero da política, sua estrutura originária. O elemento político originário é a vida nua, vida exposta à morte. A vida nua que persevera como elemento concreto e reiterado do assassinato primordial infinitamente repetido pelos mesmos filhos que também o atualizam psiquicamente como sentimento de culpa, como pulsão de morte e como instância superegóica. O fundamento da finitude é substituído pelo da matabilidade.

Assim, a figura do bom pai do começo do livro se modificou ao final. Agora ele é a figura de um pai justo e amoroso, representante da atenuação da destruição interna e externa que protegeria os filhos da sua própria capacidade de destruírem a si mesmos e aos outros. A civilização torna-se a passagem de uma renúncia às pulsões a uma renúncia a agredir este que faz renunciar às pulsões, o pai. Mas paradoxalmente há que renunciar a satisfazer o superego, desobedecendo-o e burlando-o para sobreviver a ele.

O jabuti sai do labirinto da violência pela sua principal característica: ser gregário para poder sobreviver. No final, ele encontra a flor da solidariedade e da paz. É difícil essa flor extraordinária vicejar, suportar a atmosfera da civilização. Mas, às vezes, ela abre as pétalas uma a uma, tal como a flor de lótus e depois rapidamente fenece. Segundo a lenda, esta flor foi criada a partir de fragmentos do poder criador do fogo, do ar, da água e da terra, para expressar sua combinação harmônica, mas também suas diferenças e sua independência para que servisse de símbolo e exemplo para o homem de sua própria possibilidade de pureza e perfeição. Desde épocas remotas o dia oito de maio foi fixado como o dia de sua comemoração. Em 1948, esse dia tornou-se também em todo planeta o “Dia da Paz”.

“Pai, da próxima vez eu queria ouvir a menina cantar”. Esse sábio apelo da filha, que serve de epígrafe à última parte do livro, ao ver uma criança no semáforo que pedia para cantar em troca de algum dinheiro, foi escutado pelo pai. O que ela pede é para ter um duplo prazer erógeno: de escutar a canção e de ter o prazer de ver o prazer se instaurar na criança que canta, que não é só o de receber o dinheiro, mas de ter seu canto compartilhado. O que a menina pede ao pai é que ele, na sua posição de guardião das pulsões, tenha mobilidade de manter a abertura da janela; que o jabuti possa, às vezes, retirar sua casca e habitar prazerosamente o lugar do corpo, sem temer a morte. Que o pai possibilite corpos erógenos circulantes, compartilhando a cidade. É esse o difícil e principal feito do pai.

topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados