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Resumo
Resenha de Urania Tourinho (org.), O caçador de labirintos, Salvador, Currupio, 2004, 216 p.


Autor(es)
Danielle Schramm
é jornalista e tradutora.

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 LEITURA

Emilio Rodrigué, o psicoargonauta de Ondina

Danielle Schramm


Resenha de Urania Tourinho (org.), O caçador de labirintos, Salvador, Currupio, 2004, 216 p.
Tradução de Larissa Kharkevitch.

Em 2004, lançou-se um livro, o primeiro de uma coleção imaginada pelo Colégio de Psicanálise da Bahia, a coleção “Memorar” das Edições Currupio. Essa primeira obra não podia deixar de ser uma homenagem a Emilio Rodrigué, o mestre – por mais que ele recusasse ocupar esse lugar – de todo um grupo de psicanalistas baianos, fundadores do Colégio de Psicanálise da Bahia.

Assim, Urania Tourinho, discípula dos primeiros tempos, analisada e formada por Ro­drigué, assumiu a coordenação desse trabalho contando com a colaboração de Maria Teresa Dantas Coelho, Regina Sarmento, Griselda Teixeira de Castro Pêpe, Sérgio Augusto Franco Fernandes, Andrea Hollnagel Araújo, cada um abordando facetas diversas do psicanalista, do escritor, do homem diante de si mesmo e dos outros, diante do mundo. O próprio Emilio, afetuosamente lisonjeado por ser o objeto de tal homenagem, escreveu o prefácio do livro.

Hoje, três meses após a morte de Emilio Rodrigué, aos 85 anos, ainda em pleno vigor criativo, o livro de Urania Tourinho é um precioso testemunho. O único – fora os escritos, sempre um pouco autobiográficos, do próprio Rodrigué – sobre o pensamento, a vida, a personalidade desse reconhecido psicanalista e escritor, desse homem de uma originalidade e inteligência pouco comuns. Uma homenagem formulada como uma pergunta : “quem é você, Emilio?”, ecoando com aquela, lancinante, que lhe foi feita durante um seminário em Amsterdã, cem vezes repetida até a exaustão e à qual, naquele momento, ele não tinha resposta. Até que, por fim, décadas mais tarde, o próprio Emilio descobre e afirma: “Eu sou um caçador de labirintos.”

Que caminhos conduziram esse “psicoargonauta” dos tempos modernos a aportar nas praias de Salvador da Bahia e ali permanecer?

Urania fala, na sua apresentação, do pioneiro. “A constituição de um grupo psicanalítico se faz em torno a um pioneiro.” De fato, é como um pioneiro que Rodrigué chega um dia a Salvador, acompanhado por Marta Berlin, sua companheira de então, rompendo as amarras com sua vida anterior, para dirigir os seminários que reuniam jovens psicanalistas baianos.

A dramática situação política na Argentina coincidia com o desejo alimentado por Emilio Rodrigué de romper com a psicanálise institucional. Deixando Buenos Aires, ele deixava também, corajosamente, o conforto de uma prática tradicional e do reconhecimento. Conforto que já estava comprometido por ter deixado, acompanhado de outros trinta analistas, a Associação Psicanalítica Argentina (apa) e por ter criado, com seus amigos Armando Bauleo, Hernán Kesselman e Tato Pavlovsky, o grupo Plataforma, que era, de fato, um grupo dissidente. Desde a criação de Plataforma, Emilio nunca deixou de buscar, de inovar, “mantendo sempre”, como diz Urania Tourinho, “uma luta apaixonada contra a impostura, uma recusa à adaptação empobrecedora, uma fidelidade ao inconsciente”. Mesmo pagando o preço de parecer transgressor ou escandaloso.

Recapitulemos com Urania, desde o início. Tudo começa em 1923, quando Emilio nasce em Buenos Aires, último filho de uma família riquíssima (riqueza essa dilapidada ao longo dos anos e da qual Emilio não ficará com um único centavo), adorado por sua mãe e seus muitos irmãos, o único dos filhos a não tratar o pai de “senhor”. Quando foi crescendo, a criança paparicada se descobre, como Jean-Paul Sartre, feio. Seu irmão Jack, como diz ele, seu segundo pai, o ajuda a se desvencilhar do complexo de feiúra e faz dele um quase campeão de natação. Será que seu amor pelo mar vem dessa época? Faz a faculdade de medicina e descobre Freud através de seu pai. Começa uma psicanálise com Arnaldo Racovsky em 1943, mas rapidamente se desentendem. Sendo impossível continuar una análise na Argentina, Emilio decide partir para a Inglaterra com sua jovem esposa, Beatriz. Penetra a elite da psicanálise austríaca radicada em Londres, faz sua análise didática com Paula Heimann, acompanha de camarote a disputa entre as grandes estrelas da psicanálise, Melanie Klein e Anna Freud, freqüenta, entre outros, Masud Khan, Ernest Jones, Winnicott, Bion (o homem do “para quê?”). A pedido da famosa avó, analisa a neta de Melanie Klein. Num jantar, encontra a Sra. Ernst Freud, nora de Sigmund, que, olhando a jovem e bela esposa de Emilio, diz-lhe:  “O senhor, que tem tão bom gosto na escolha da esposa, seria um ótimo biógrafo do meu sogro.” Premonição?! Enquanto isso, ele freqüenta a National Gallery, vai a concertos e ao teatro. Aprende e se cultiva.

Ao cabo desses fecundos quatro anos, o “menino de ouro do kleinismo” retorna a Buenos Aires. Chega em plena efervescência psicanalítica. Participa da apa, escreve seu primeiro livro, Psicoterapia de grupo, vive problemas sentimentais. Fascinado pela leitura de Filosofia em nova chave, de Susanne Langer, parte, com mulher e filhos, para os Estados Unidos para conhecer a filósofa. Instala-se bem próximo a Stockbridge, onde exerce a função de psicoterapeuta na famosa clínica de Austen Riggs dirigida por Robert Knight, Erik Erikson e David Rappaport. Aos 35 anos, este é um novo período de sua vida que começa, enriquecida pelos encontros semanais com Suzanne Langer, que com freqüência afirma ser “uma de minhas quatro mestras”, aquela que lhe ensinou a “dúvida”, o “será isso mesmo?”

Mas Emilio é um grande apaixonado. E, inteirando-se da morte do psicanalista argentino Racker, marido de Noune, por quem ele foi loucamente apaixonado antes de sua partida para os Estados Unidos, volta para Buenos Aires, deixa Beatriz (a primeira das grandes “separações necessárias” que pontuarão sua vida), os filhos e casa-se com Noune, psicanalista como ele, bela e rica. Emilio fala de uma “operacão cirúrgica, sem anestesia […] como um raio num lago sereno.” Cruel Emilio … Mas Noune morre cedo demais.

É nesse momento que Emilio se revela como romancista. Em 1969, publica Heroína, seu primeiro e único romance, um sucesso transformado em filme em 1972. Nessa época, ele está com 42 anos e Urania Tourinho afirma que é aí que aparece um segundo Emilio, o Emilio escritor. Inclusive, Emilio Rodrigué se define como “um analista de alma literária”. Como lembra Griselda Teixeira de Castro Pêpe na epígrafe do capítulo dedicado à sua obra literária, ele mesmo declara : “Minha roseira é bífida, como a estrela do aikido. Um pé é psicanalítico. O outro é literário.” Ainda segundo Urania, foi em Salvador, na paz que encontrou vivendo nessa cidade de magia e onde conheceu sua quarta mulher, Graça, que se revelou mais claramente sua vocação de escritor. Não esquecendo os livros importantes escritos anteriormente na Argentina, como Biografia de una comunidad terapéutica (1966), El anti-yoyo, o excelente El paciente de las 50.000 horas, entre outros.

Mas é verdade que foi mesmo em Salvador que nasceram a maioria dos seus grandes textos, período próspero inaugurado com A lição de Ondina (1983). Ondina, praia mágica, lugar de meditação, de reflexão e de criatividade e onde Emilio viverá até o fim dos seus dias. E é ainda em Salvador onde nasce a fantástica biografia de Freud, Sigmund Freud, o século da Psicanálise (1995), resultado de cinco anos de trabalho, escrito em português. E suas memórias, alegremente narcisistas, terminando no momento do rompimento com Graça, Separações necessárias (2000).

Em 2004, para O caçador de labirintos, Urania lhe propõe uma conversa, uma troca inteligente, amistosa e calorosa. Ali Emilio se expõe com simplicidade, sem complexo, seguindo uma citação de Oscar Wilde : “se você quer privacidade, conte tudo”. Nesse momento, ele está com 81 anos e testemunha a felicidade de envelhecer. Ele, que conseguiu cuidar bem do seu corpo (que comparava com um cão fiel e amigo que se tem que cuidar), sendo assíduo freqüentador da Academia do Ondina Apart Hotel, fala de uma sexualidade apaziguada, “sexo velho decantado em tonéis de mirra e carvalho…” Mas fala também da proximidade com a morte: “Na idade avançada que tenho, faço parte de um grupo de alto risco […]. A morte é para mim um tema de maior atualidade.” E quem diz morte, talvez diga eternidade…

“E Deus, Emilio?”, pergunta Urania. “Tudo é possível, até mesmo Deus.” A espiritualidade (ou a magia), ele a encontrou, primeiro com sua mãe, a muito católica e amada Marita Schuchard Rodrigué. Depois, durante uma experiência onírica comendo cogumelos no México com uma bruxa e, enfim, com o candomblé através de Graça, sua esposa, filha-de-santo do terreiro Axé Opô Afonjá. Tudo é possível, mesmo os orixás…

Sérgio Augusto Franco Fernandes lembra o percurso político de Emilio, sua simpatia pelo peronismo e recorda o episódio da carteira de membro ao Partido Comunista que lhe foi empurrada numa viagem a Moscou, e que Emilio conservou por somente três horas! Mais seriamente, o movimento Plataforma foi um engajamento político, vindo daí a descoberta de que “o analista também podia ser um animal político”.

Não falaremos aqui do aspecto puramente psicanalítico desenvolvido em O caçador de labirintos, outros teriam mais condições de fazê-lo. Ao se ler o livro, fica evidente que cada autor trata de uma aspecto diferente de sua prática psicanalítica: Emilio e o Kleinismo; Emilio e Pichon-Rivière; Emilio e a psicanálise infantil (com Raul, seu pequeno paciente autista); Emilio, Oscar Masotta e Lacan; Emilio e o retorno ao divã; Emilio e suas próprias pesquisas e idéias – como a invenção da terapia de 90 minutos ou lius…

E, para concluir, nada melhor que uma citação de Emilio Rodrigué, o velho sábio de Ondina: “A sabedoria é polimorfa, aceita múltiplas definições. Para Montaigne é um sentimento; para Susanne Langer, um estado de consciência; para Rieff, euforia sublimada. Mas todos a ligam com a arte de bem morrer. O sábio faz aquilo que está fazendo, como se fosse um poema – preocupa-se com o estilo, inventa uma nova maneira de fazer qualquer coisa, desde o amarrar o sapato até o fazer amor. Sim, o sábio inventa e, nisso, possui uma semelhança surpreendente com as crianças.”

Ondina…

Emilio Rodrigué morre em 21 de fevereiro de 2008.

Acabava de terminar seu último livro.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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