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Resumo
Resenha de Maria Cecília Pereira da Silva, A herança psíquica na clínica psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003, 184 p.


Autor(es)
Leda Maria Codeço Barone
é psicanalista, membro associado da sbpsp e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário Fieo – UNIFIEO.


Notas

1 M. C. P. da Silva, A herança psíquica na clínica psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003, p. 44.

2 M. C. P. da Silva, op. cit., 83.

3 M. C. P. da Silva, op. cit., p. 163.

4 S. Ferenczi, “Princípio de relaxamento e neocatarse”, in S. Ferenczi, Obras completas, São Paulo, Martins Fontes, 1992, vol. iv, p. 64.

5 S. Ferenczi, “Análise de crianças com adultos”, in S. Ferenczi, op. cit., p. 71.

6 M. Schneider, “Trauma e filiação em Freud e em Ferenczi”, Percurso, n. 10, São Paulo, 1993.

7 M. Schneider, op. cit., p. 34.


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 LEITURA

O novo no velho: ruptura ou continuidade?

A herança psíquica na clínica psicanalítica


The new in the old: break or continuity?
Leda Maria Codeço Barone

O livro A herança psíquica na clínica psicanalítica, de Maria Cecília Pereira da Silva, em linguagem clara e elegante, trata de questões da transmissão transgeracional e intergeracional com base em três contextos diferentes: a intervenção precoce com um bebê e seus pais, por meio de consultas terapêuticas; a análise individual de três pacientes em consultório privado e o atendimento familiar de uma adolescente em uma instituição. Em que pese a diversidade dos trabalhos apresentados, um eixo comum os articula – a questão da transmissão – , e outro dá a identidade – o método utilizado, o psicanalítico –, marcando com isso dois pontos importantes do trabalho: a relevância do problema estudado e a unidade do método utilizado.

No primeiro estudo, a autora nos conta o atendimento de Maria Clara, um bebê de apenas um ano, encaminhada para consultas terapêuticas por seu pediatra devido a sua grande dificuldade em dormir. Foi possível à analista, durante as consultas terapêuticas, relacionar a dificuldade de dormir da pequena a angústias da mãe em lidar com separações violentas e com o intenso medo de morte vivenciado pelo pai, medo esse presente na linhagem parental desde os avós. A analista observa ainda que fantasias edípicas e incestuosas dos pais dificultavam à dupla se constituir como casal.

As consultas terapêuticas tiveram como resultado esclarecer o lugar de receptáculo – das identificações inconscientes dos pais e avós – ocupado pela menina enquanto submetida ao mandato transgeracional de clarear (Clara = luz) o que ficou obscuro na história dos pais. Ao mesmo tempo, ao fim das consultas, a menina pôde deslocar-se do lugar de “depositária dos fantasmas ancestrais”, o que permitiu que ocupasse “seu lugar na família deixando de ser um self sem ‘berço’” [1].

No segundo estudo a autora narra o trabalho analítico com três pacientes adultos: Beatriz, Ana e Lia. A partir da história clínica dessas pacientes, e utilizando vinhetas de sessões, a autora discute questões técnicas específicas desses atendimentos nos quais a relação transferencial é perpassada por identificações com um objeto materno indeterminado ou deprimido e com um objeto paterno cruel. O trabalho analítico revela que “a intrusividade dos objetos parentais e as identificações mórbidas decorrentes dessas relações, que habitam o self dessas pacientes, as impedem de construir um psiquismo próprio, entravando o processo de subjetivação” [2].

E finalmente, o terceiro estudo trata de uma paciente adolescente e sua família, em que a análise chega à descoberta de um mandato, que se explicita desde o bisavô, passando pela avó e pela mãe da adolescente, que a impede de ser mulher. Trata-se de uma adolescente de quinze anos, com graves transtornos emocionais, que procura a instituição.

O livro chama a atenção do leitor ainda para questões referentes à formação do analista. A autora destaca na formação do analista “a necessidade de reconhecimento do caráter efetivo do fenômeno transgeracional: do contrário, o conluio entre o nível do que é fantasia e do que é o real acontecido, na escuta, enlouquece o outro” [3].
Nesse sentido,

o reconhecimento, ou a discriminação do que é fantasia e o que é o real acontecido deve orientar o analista em sua intervenção técnica bem como na assunção de uma ética diante dos fenômenos transgeracionais.

Tomando em consideração o eixo que articula o livro: a transmissão psíquica, cabe ressaltar que ela é prenhe de interesse para o psicanalista, tanto na clínica quanto nas reflexões técnico- teóricas, porque coloca novamente em cena duas questões antigas e entrelaçadas: a do traumático e a da realidade para a psicanálise. E se este é um ponto alto do texto, ele pode enganar o leitor fazendo-o crer que a questão está resolvida. Pelo mesmo motivo – por colocar em cena a questão da realidade do trauma –, a leitura provoca no leitor inquietações que se espraiam para além do texto.

Para esta leitora em especial, a questão que tocou de forma contundente (entre muitas outras) foi pensar sobre o novo no velho; quer dizer, procurar a ancoragem do conceito de transmissão psíquica transgeracional, tão bem abordada pela autora no livro, na célebre disputa entre Freud e Ferenczi sobre a realidade do trauma e o manejo da técnica, no alvorecer da psicanálise. O conceito de transmissão psíquica, tal como tratado no livro, é herança ou algo novo? Está numa relação de continuidade ou de ruptura com o pensamento de nossos ancestrais? Refletir sobre transmissão psíquica pareceu-me importante porque é uma forma de levantar o véu de esquecimento estendido sobre o passado de nossa disciplina e evitar a onipotência de sustentar a fantasia de engendramento no vácuo, dos conceitos novos, ou mesmo evitar a negação das produções das gerações anteriores. Importante também porque o conceito nos ajuda a construir pontes que possam articular o presente ao passado de nossa disciplina de modo que, ao acolher a herança recebida, possamos transformá-la, projetando- a no futuro.

À célebre frase de Freud na carta 51 a Fliess na qual assevera não acreditar mais em sua Neurótica, destinada a marcar a passagem da consideração da realidade do trauma da sedução para a da fantasia de sedução, Ferenczi responde com: “As fantasias histéricas não mentem, elas nos contam como pais e adultos podem, de fato, ir muito longe em sua paixão erótica pelas crianças” [4], de maneira a marcar o valor que atribui ao caráter de realidade do trauma na transmissão da herança psíquica.

Ao ceticismo de Freud sobre a adequação da psicanálise a neuroses narcísicas, Ferenczi contrapunha: “Uma espécie de fé fanática nas possibilidades de êxito da psicologia da profundidade fez-me considerar os eventuais fracassos menos como conseqüência de uma ‘incurabilidade’ do que da nossa própria inépcia […]. Fórmulas tais como ‘a resistência do paciente é insuperável’ ou o ‘narcisismo não permite aprofundar mais este caso’, ou mesmo a resignação fatalista em face do chamado estancamento de um caso, eram e continuam sendo inadmissíveis” [5], dando início a importantes mudanças na técnica de maneira a atender demandas diferentes de seus pacientes.

Sobre a questão da transmissão entre gerações, Schneider [6] aponta diferenças marcantes entre os pontos de vista de Freud e de Ferenczi. Enquanto se pode apreender nos escritos de Freud uma concepção de filiação que sustenta a crença de que o ancestral entrega incólume a herança a seus filhos, nos escritos de Ferenczi, a questão é outra: há uma relação estreita para este último entre a teoria do trauma e a questão da filiação. Para esse autor, o trauma está na essência do encontro entre uma geração e outra. Schneider, reconhecendo que o ponto central da problemática da filiação para Ferenczi é o encontro da criança com o adulto, e na tentativa de compreender o jogo intersubjetivo desse encontro, reitera que ele está mais próximo “do choque do que da passagem ritualizada de um bem ou de um objeto: a cena é de um impacto violento entre o adulto e a criança, não a de uma entrega tranquila em que o primeiro oferece ao segundo uma terceira coisa, justamente a herança. Em poucas palavras, este encontro é da ordem do trauma” [7], conclui Schneider.

A concepção de herança psíquica defendida por Maria Cecília transita pelo campo da discussão Freud/Ferenczi e deixa entrever que a questão não está resolvida mas continua aberta a novas investigações. Reconhecendo que os fenômenos transgeracionais estão presentes em todos uma vez que participam da constituição subjetiva – não sendo, portanto específico a nenhuma entidade nosológica em especial –, a autora sugere que eles se sobressaem naqueles pacientes psicóticos ou com funcionamento psicótico, quando, muitas vezes, paralisam o processo de constituição subjetiva.

A leitura do livro de Maria Cecília é instigante de diferentes vias de reflexão. A preocupação com o tema surge dos impasses da clínica, o que reforça a ideia de ser ela – a clínica – o que move o analista, levando-o a teorizar, a modificar sua técnica e a repensar a sua formação.

Para mim foi importante refletir sobre a ancoragem do denso trabalho clínico da autora no solo das produções das gerações anteriores. A leitura do livro poderá servir como exercício do que nos ensinou Goethe: “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para possuí-lo”. Fica o meu convite à leitura.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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