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Resumo
Resenha de Vicente Augusto de Carvalho, Maria Helena Pereira Franco, Maria Julia Kovács, Regina Paschoalucci Liberato, Rita de Cássia Macieira, Maria Teresa Veit, Maria Jacinta Benites Gomes, Luciana Holtz de C. Barros (orgs.), Temas em psico-oncologia, São Paulo, Summus, 2008, 645 p.


Autor(es)
Camila Salles Gonçalves
é doutora em filosofia pela fflcusp, psicóloga pela pucsp, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de publicações sobre psicanálise e filosofia.


Notas

1 Freud, S., “De Guerra y muerte. Temas de actualidad”, in Obras Completas, vol. xiv, Buenos Aires, Amorrortu, 1993, p. 297.

2 Aprovado no Brasil, pela Anvisa, em 1998 e, segundo noticiado pela imprensa, no segundo semestre de 2010, seria um dos novos tratamentos incluídos no sus (Sistema Único de Saúde).

3 Síndrome de Burnout (do inglês to burn out, queimar por completo), também chamada síndrome do esgotamento profissional, foi assim denominada pelo psiquiatra nova-iorquino Freudenberger, após constatá- la em si mesmo, no início dos anos 1970. Cf. http:Wikipédia.org/ wiki Burnout (psychology).


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 LEITURA

Primeiro tratado brasileiro de psico-oncologia

The first Brazilian manual of Pshyo-oncology
Camila Salles Gonçalves

Parece difícil alguém discordar quanto a haver interesse, por parte de psicanalistas e psicoterapeutas, em tomar contato com o campo da psico-oncologia, o que, às vezes, torna-se crucial a partir de circunstâncias da clínica. Mas por onde começar?

Do ponto de vista compartilhado por autores da coletânea que compõe este livro, organizada segundo doze temas, a “psico-oncologia constituiu-se em uma área do conhecimento da psicologia da saúde, aplicada aos cuidados com o paciente com câncer, sua família e os profissionais envolvidos no seu tratamento” (p. 15). Foise definindo à medida que se passou a admitir, no decorrer da prática médica, “que aspectos psicossociais estavam envolvidos na incidência, evolução e remissão do câncer” (p. 18). Médicos teriam começado a se preocupar com aspectos psicológicos presentes no adoecimento por câncer. Primeiro, teria sido convocada a psiquiatria, sobretudo para lidar com o impacto dos diagnósticos e de tratamentos, às vezes, aterradores. Aos poucos, também o diálogo com a psicologia, com a psicanálise e com psicoterapias teria ganho aceitação por parte do meio médico. Hoje, com o trabalho interdisciplinar e com a frequente formação de equipes multidisciplinares, também fisioterapeutas, nutricionistas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, como os que assinam artigos neste tratado, têm o reconhecimento de sua participação imprescindível.

Sem dúvida, se lemos as criteriosas definições do campo da psico-oncologia apresentadas por Maria Teresa Veit e Vicente Augusto de Carvalho, da perspectiva de uma história do saber e de dispositivos sociais de poder, inspirada em Foucault, podemos encontrar traços do que já se documentou em relatos de preconceitos e superstições em relação ao câncer, muitas vezes arraigados na visão dos próprios doentes. Do fim do século passado em diante, vêm-se constatando efeitos favoráveis ao tratamento, quando o paciente quer se informar sobre o modo de a doença se instalar e expandir, sobre a finalidade dos procedimentos médicos, sobre o modo de funcionar das medicações. No dizer dos autores, o “segredo a ser ocultado, ao impedir uma comunicação aberta, acabava por comprometer o contato mais amplo com o paciente, deixando-o numa condição de isolamento, além de infantilizá-lo” (p. 16).

A superação de preconceitos e imperativos de não saber e não contar, junto com campanhas de informação, possibilitam que o doente tenha acesso à cura, muitas vezes tida como impossível. Um exemplo, digno de nota, de tumores que podem ter prognóstico favorável, quando tratados no início, é o de certos tipos de câncer ósseo. O tempo é decisivo, como nos faz ver um dos autores, já que, às vezes, por diversas circunstâncias, o diagnóstico pode ser equivocado ou ficar suspenso em dúvidas, por parte dos próprios médicos: “o diagnóstico diferencial com trauma e osteomielite é muitas vezes a causa no retardo da indicação da biópsia” (p. 121).

Destaco agora uma definição bem clara dos tumores denotados pelo nome câncer, retirada de outro artigo: “Os tumores constituem um grupo de doenças caracterizado por desarranjo celular, relacionado ao núcleo celular, sobretudo ao dna. Dessa forma, deve-se interpretar o câncer como uma doença molecular” (p. 135).

Prosseguindo, parece-me útil acompanharmos os termos em que outro autor explica a relação entre a descoberta do dna e os avanços na oncologia. Os “complexos problemas de química e biologia apresentados pelo câncer” (p. 159) começaram a ser solucionados quando, em meados do século xx, “os cientistas tiveram em suas mãos os instrumentos necessários” (p. 159), sobretudo, com a “exata estrutura química do dna, o material básico na composição dos genes” (p. 160). Dispondo do código genético que dá origem a todas as células, o dna, os cientistas tornaramse capazes de entender o modo de funcionar dos genes e de estes serem lesados por mudanças em sua estrutura, ou seja, mutações. Assim, à medida que o conhecimento aumentava, “aprendia-se que o dano ao dna por agentes químicos e radiação ou a introdução de novas sequências por vírus, associados a mutações herdadas, estavam envolvidos na formação do câncer” (p. 160).

É claro que os profissionais da área psi não têm que se haver com o estudo sistemático da multiplicidade dos tipos de câncer, como se isto fizesse parte de sua primeira formação profissional, muito menos, tendo-se em vista o que um dos autores desta obra nos diz: “o complexo denominado câncer engloba mais de duas centenas de doenças, com grande variedade” (p. 145). Entretanto, se um paciente nosso depara com o diagnóstico de câncer e é levado a considerar tratamentos e a enfrentar sequelas prováveis, indagações reverberam para além da sessão de análise, onde o abalo da ilusão de imortalidade também se propaga, pois, nas palavras de Freud, “nosso inconsciente não crê na própria morte, conduzse como se fosse imortal” [1].

Podemos ser levados, no que se refere ao conhecimento objetivo, a buscar informação sobre alterações celulares, superação de tratamentos tradicionais, novos recursos farmacológicos, transtornos de humor decorrentes da utilização destes. Isto, não com a pretensão de dominarmos qualquer segmento do vasto assunto, e sim, admitindo que é preciso pesquisar, em caso de necessidade, quando se instaura um novo pano de fundo, para além de nossa escuta dos sentidos e questões que a existência, a vida e a morte vão apresentando para nosso paciente.

Não creio que sempre caiba ao analisando definir, para nós, cada termo, que passa a empregar, do vocabulário, metafórico ou esclarecido, que vai adquirindo com o câncer. Assim, penso que quem, como eu, não tem formação em ciências biológicas, também pode considerar proveitosa a leitura da parte do livro em que predomina a abordagem médica. Outros exemplos de dados que podem nos convir conhecer: listam-se atualmente mais ou menos cinquenta síndromes diferentes de cânceres hereditários, que equivaleriam a cinco por cento do total de casos diagnosticados. Há estratégias de prevenção, levantamento das síndromes mais comuns e, hoje, mais pesquisas em relação a aspectos psicossociais do aconselhamento genético e abordagens dos aspectos psicodinâmicos do aconselhamento genético.

A meu ver, quando a situação de ter paciente com câncer enseja nossa procura por mais conhecimento sobre o organismo e aquilo que o altera, isto também nos confronta com nossas próprias inquietações. Contudo, nos deixa mais à vontade para perguntar a um analisando, diante de certo modo de suas associações se perderem em reticências, sobre aquele momento de seu enfrentamento da doença. Para reconhecer em si e para si o que transcende a doença, julgo que ele vai precisar saber, quando tiver condições psíquicas, o que é esta. E que o psicanalista ou psicoterapeuta também, não para lhe dar aulas ou definições científicas, completar algo de que o paciente sentiria falta, mas para não evitar a pontuação da dúvida ou interrogação que surge.

A respeito de câncer, sempre já ouvimos, lemos, aprendemos algo, até por ouvir dizer. Quando entramos em contato com um diagnóstico, sem dúvida, em nossos dias, podemos nos servir do Google para maiores esclarecimentos. Entretanto, até para não nos perdermos na navegação, temos o que consultar de imediato: o conjunto de artigos de oncologistas que este livro apresenta, seus ensinamentos, dados pesquisados e respectivas bibliografias. A meu ver, trazem-nos ou a elucidação ou o ponto de partida suficiente. Ainda, permitem-nos retomar o que, na época da sua publicação (2008), era de divulgação recente e escassa. Exemplifico com o caso dos anticorpos monoclonais, utilizados em tratamento biológico do câncer e do Mabthera [2], medicamento a respeito do qual procurei me informar, a partir de uma situação na clínica psicanalítica, de paciente com linfoma.

A produção de anticorpos monoclonais tornou- se possível a partir dos anos 1970. Os antígenos, substâncias capazes de criar anticorpos, podem, hoje, ser introduzidos nas próprias células cancerosas. Um dos artigos nos ensina que “com relação ao tratamento, os anticorpos monoclonais têm a capacidade de se unir a um antígeno específico na superfície da célula tumoral, sendo por isso chamado terapêutica de alvos moleculares” (p. 169). Há vários anticorpos monoclonais utilizados atualmente. Pacientes com linfoma avançado “podem ser tratados com quimioterapia, eventualmente com radioterapia para doenças localmente extensas, e com imunoterapia com rituximabe (Mabthera)” (p. 169).

O mesmo estado de coisas, que me fez valorizar as informações acima, levara-me a conversas- supervisão com uma colega especialista em psico-oncologia. Não preciso dizer que esta oportunidade foi essencial para meu trabalho.

Dentre os temas da obra, encontramos comentários sobre supervisão, grupos de apoio de profissionais, grupos de apoio a famílias, grupos de apoio mútuo de pacientes. Não são deixadas de lado as limitações e a atmosfera penosa vivida por cuidadores e pacientes. As autoras do texto “Estresse e Síndrome de Burnout [3] em equipes que cuidam de pacientes com câncer” lembramnos de que os profissionais de saúde, seguindo uma espécie de mandamento da formação médica, muitas vezes, têm arraigada a ideia de que sempre se deve combater a morte. A face desfavorável desta convicção estaria em os cuidadores sentirem a morte do paciente como fracasso próprio, em quaisquer circunstâncias, sem diferenciá- las. Esta é uma questão que merece destaque e, o estudo em que se insere, mais atenção. Cito: “é preciso sensibilizar e conscientizar os cuidadores quanto à importância do autocuidado, de um olhar diferente para a imagem refletida no espelho da alma” (p. 570).

Os mais de oitenta autores deste livro compartilham o reconhecimento da importância de equipes multi e interdisciplinares e a preocupação com a qualidade de vida dos pacientes. Mas o que é isto?

Dois autores assinam o artigo “Qualidade de vida do enfermo oncológico: um panorama sobre o campo e suas formas de avaliação”. Um deles nos conta que, presente ao Congresso Brasileiro de Cancerologia, em 1995, escutou vários finais de exposição em que o participante aduzia: “E isto melhorou a qualidade de vida do paciente” (p. 195). Deteve-se no uso da expressão. Relata que já trabalhava na área havia anos e indagava. “O que era aquilo que muitos diziam obter de seus pacientes, mas na experiência como psico-oncologistas e psicólogos hospitalares com pessoas que passavam por intervenções médicas similares não víamos (nunca se constatava tal grau de satisfação)” (p. 195). Junto com colegas, encontrou uma forma de pesquisa afim com suas indagações.

Um histórico é apresentado, “Produção de medidas clínicas de qualidade de vida (qv) de enfermos oncológicos e não oncológicos” (p. 198). Somos postos a par de métodos de construção de categorias e avaliações a partir destas. Constructos permitem, dentro de delimitações especificadas, medir o que definem como qv ou qualidade de vida. Não podemos, é claro, concluir que um paciente nosso tem condições de tornar proveitosa para si a vida que lhe resta ou que se prolonga indefinidamente, a partir de sua avaliação segundo tabelas, e não é este o propósito dos autores. Estes consideram que são os “estudos de caso que legitimam o conhecimento” (p. 205) ” e que “uma prova viva da potencialidade desse tipo de estudo para a formulação de teorias, conceitos e técnicas de natureza ideográfica é o próprio conhecimento psicanalítico” (p. 205). Ou seja, o que a metodologia de investigação permite observar, medir e generalizar não implica que deva haver “obediência positivista às médias de scores” (p. 205). Os autores fundamentam-se na forma de avançar do método psicanalítico, que, a partir de seu modo de conhecimento da singularidade, formula suas teorias de abrangência universal.

Quero também indicar o estudo do teste tat (Teste de Apercepção Temática) aplicado a adolescentes com câncer. Além da sistematização experimental, suas realizadoras nos põem em contato com as interpretações que os jovens fazem de sua vivência. Elas adotam a perspectiva da psicologia fenomenológico-existencial, assumindo “que é fundamental considerar a singularidade de cada pessoa, buscando sua forma particular de perceber, significar e vivenciar as diferentes situações existenciais a que está exposta” (p. 218). Há um trabalho posterior, “com o objetivo de buscar uma compreensão das convergências e divergências entre os casos individuais” (p. 223), que chega a vinte categorias temáticas. Este procedimento e sua exposição, que não é possível resumir aqui, traz, a meu ver, um panorama estruturado, favorável a quem tem por objetivo começar a adentrar na psico-oncologia. Além disso, entrevejo que a expressão possibilitada aos adolescentes, no próprio procedimento de lhes trazer as figuras do teste projetivo e a disponibilidade das psicólogas para a escuta, pode ter efeito terapêutico, por lhes oferecer a oportunidade de falar de si de forma inaugural, a partir de um estado de consciência inusitado.

O leitor já deve ter constatado que este primeiro tratado de psico-oncologia brasileira, elaborado por um número grande de colaboradores, grande a ponto de não ser possível nomeá-los numa resenha, exigiu uma costura. Maria Margarida de Carvalho (Magui), que assina o prefácio, comenta sua feitura: “o livro focaliza as propostas e os objetivos da psico-oncologia, costurando suas partes para esclarecer o conjunto; divulga a importância da compreensão e do amparo psicológico aos pacientes de câncer, à sua família e aos profissionais de saúde que os têm sob seus cuidados” (p. 9).

Em 1993, realizou-se, no Instituto Sedes Sapientiae, o primeiro curso de expansão cultural em psico-oncologia, com a duração de seis meses, sob a direção da prefaciadora. Com a resposta favorável dos que o frequentaram, no ano seguinte, o curso passou a ter a duração de um ano, já sob a direção de Vicente Augusto de Carvalho. Assim, “mais temas puderam ser abordados e outros foram aprofundados” (p. 622). Em 1998 o Ministério da Saúde publicou portaria da qual consta a exigência de presença de psicólogos clínicos “em todos os centros oncológicos do governo ou prestadores de serviços” (p. 623).

A Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia elaborou, em 2003, “algumas recomendações mínimas para a formação de profissionais nessa especialização” (p. 552). Também encontramos, no livro, os critérios adotados e o conteúdo básico de vários cursos de especialização e de aperfeiçoamento agora existentes.

Espero ter indicado alguns dos modos de os Temas nos trazerem esclarecimentos e atualizações. Minha leitura resultou de um viés, no qual a perspectiva da experiência subjetiva manteve-se presente na escolha de exemplos e na exposição. Esta resenha não pretende constituir uma síntese do tratado, mas apenas sugerir efeitos de percorrê- lo e consultá-lo a partir de questões despertadas pela prática profissional.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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