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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
46
A clínica do trauma
ano XXIII - junho de 2011
180 páginas
capa: Patricia Furlong
  
 

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Resumo
Resenha de Tatiana Inglez-Mazzarela, Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações, São Paulo, Escuta, 2006, 176 p.


Autor(es)
Daniele John
é psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela pucsp, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Tavistock Clinic, Londres, especialista em Psicanálise pela UFRGS, psicóloga pela UFRGS, docente do curso de Psicologia da UNIP e do curso de Formação em Psicanálise do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos).


Notas

1 A autora coloca que utilizará o termo apresentação como algo que se dá a ver sem ser simbolizado, em oposição ao conceito de representação (p. 21).

2 Utilizamos aqui o termo estranho no sentido em que trabalha Freud (1919), ou seja, o que é ao mesmo tempo familiar, ideia que é retomada também por Tatiana Inglez-Mazzarella (2006) na obra aqui resenhada (ver p. 43).


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 LEITURA

Herança e apropriação

Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações


Heritage and appropriation
Daniele John

Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações é um livro para ser celebrado. A intensidade das inquietações clínicas que o inspiram marca a dimensão de sua força como valioso instrumento para os que se dedicam à clínica psicanalítica, bem como para os que se propõem a pensar os fenômenos da cultura a partir deste referencial. Sua autora, Tatiana Inglez-Mazzarella, não mediu esforços para tentar dar voz, palavra, contorno, ao que na clínica se apresenta como silêncio, como não dito, como ato, enfim, como o que se recusa a entrar para o campo representacional. Sua dedicação ao tema durante o mestrado permitiu- lhe a produção de uma dissertação instigante, recheada de questões clínicas relevantes que mereciam vir a público também em forma de livro.

A psicanálise tem como premissa que um sujeito se constitui a partir de um outro. Tatiana investigará tal premissa em todas as suas facetas, demonstrando que é de vários outros que se faz um sujeito:

Estamos, todos nós, humanos, atrelados a uma origem que nos diz respeito, embora a ela não tenhamos acesso. Não a criamos, apenas temos notícias, por meio do que será reconstruído a posteriori. Somos o elo em uma cadeia muito anterior a nossa chegada, com a qual temos uma dívida. Há uma origem que nos é concomitantemente inacessível e determinante (p. 59).

Não é apenas das histórias contadas, das palavras repetidas, dos sonhos revelados das gerações anteriores que se faz um sujeito. Não herdamos apenas aquilo que é passado às claras de geração para geração, mas as gerações anteriores podem fazer-se presentes no sujeito até mesmo pela “via negativa”. Ou seja, não basta que levemos em conta o tecido das histórias que se contam no seio familiar como herança para um sujeito, não basta que tomemos a dimensão do que se transmite pela via positiva, mas é preciso que consideremos os não ditos, o que se coloca como proibido de dizer, o que se coloca como indizível:

Na transmissão do negativo, opera aquilo que não pode ser contido, o que não se retém, o que não se lembra; o que não encontra inscrição na vida psíquica dos pais e/ ou das gerações precedentes e que vem depositar-se ou enquistar-se na psique da criança: a falta, a doença, o crime, os objetos desaparecidos sem traço nem memória, pelos quais não se realizou trabalho de luto e, na maioria das vezes, dos quais nem se falou. Assim, o que não se pode pôr em palavras nas situações de excesso, sejam elas pulsionais ou da ordem da realidade, fica aprisionado no retorno da coisa sob a égide da repetição (p. 86-87).

Privilegiando o aspecto da negatividade na transmissão psíquica, a autora pensa a interface entre constituição do sujeito e herança, chamando a atenção do leitor para a possível ampliação da escuta que um analista pode fazer quando está atento às questões geracionais.

Se o tema aparece para Tatiana com especial intensidade na clínica com crianças, não é por acaso. Não só temos como especificidade de tal clínica a presença concreta, seja dentro do consultório, seja na sala de espera, de gerações anteriores, como também sabemos o quanto as crianças se prestam a ser porta-vozes do sintoma familiar, depositárias do não elaborado que permanece de uma geração para a outra. Quantas vezes é justamente o sintoma na infância o último recurso, a última tentativa de dar voz, de revelar algo que vinha sendo mantido em silêncio?

A leitura do livro de Tatiana, aliás, ajudoume bastante a pensar especialmente em um caso de minha própria clínica. Um menino de 5 anos vem para análise por enfrentar uma enorme dificuldade em acatar qualquer regra ou combinado. Eis que em seu brincar surge repetidamente, e de inúmeras formas, a questão da adoção. Um bebê é jogado no lixão, mordido e mal tratado repetidamente enquanto o menino diz a ele: “seus pais não querem você!”. Um E.T., filho adotivo de uma mãe da terra, e que não sabe que é adotado, não pode acatar as leis da terra, pois as leis do seu lugar de origem são outras. Um personagem, encarnado pelo menino, é jogado junto de outras crianças abandonadas, cujos pais as deixaram ali por “não serem aquilo que os pais esperavam”. E assim por diante. Bem, este menino não é adotado; sua mãe, sim. E o mais incrível é que ele nada sabia da história dela. Sua mãe nunca havia lhe contado sobre sua própria história, já que os pais adotivos dela, avós do menino, também nunca haviam falado nada a ela sobre a adoção. Ela descobrira sua origem por conclusões próprias, já adulta. A mãe adotiva, avó do menino, confirmou para a filha a adoção, mas nunca trataram do assunto, que seguiu como assunto proibido, até ressurgir na análise do menino. O que a mãe do menino não esperava é que essa história não contada estaria absolutamente entrelaçada aos sintomas do filho que, em sua última sessão de análise, me diz: “eu pensava que eu era adotado”.

Mas se as crianças têm habilidade especial para portar este retorno do recalcado, se elas tendem a dar a ver, a apresentar [1] o que só pode ser repetido por não ter sido elaborado, isso não é seu privilégio. O estudo ao qual nos referimos de maneira alguma fica restrito ao campo do trabalho com crianças, sendo de fundamental importância para pensar a psicanálise com adultos, uma vez que, como já foi dito, a dimensão intersubjetiva precisa ser levada em conta na constituição de qualquer sujeito. Também um adulto está exposto a sofrer na carne a repetição de algo que vem do outro, algo que lhe é aparentemente alheio, estranho [2], herdado, mesmo sem saber, das gerações anteriores.

Aliás, acredito que um dos méritos de Tatiana nesta obra seja justamente o de fazer um resgate para a psicanálise de um tema que lhe diz respeito diretamente. Como fica claro na excelente revisão teórica que a autora faz sobre o assunto da transmissão psíquica entre gerações, é no âmbito da teoria sistêmica que esta temática se faz mais presente. Tatiana consegue trazer o debate para o campo da psicanálise, articulando a questão da transmissão psíquica com conceitos freudianos fundamentais, tais como recalque, identificação, narcisismo, Édipo, compulsão a repetição e pulsão. Para tanto, não se restringe a uma determinada escola da psicanálise, mas norteia-se pelo tema em questão, circulando bem através de vários autores e de diferentes linhas teóricas.

Assim, trabalha com René Kaës, Granjon, Nicholas Abraham e Maria Torok, trazendo os conceitos de cripta e fantasma para pensar os aspectos patológicos da transmissão. Com Lacan pensa a divisão da repetição em tiquê e autômaton, o que lhe permite diferenciar uma repetição que se dá como encontro com o Real e a repetição que encontra inscrição através do significante. Com Safra pode debater a herança que chega à criança como missão, enigma ou questão, sendo esta última colocada como a posição que mais favorece o sujeito a fazer o trabalho de apropriação daquilo que recebe.

E aqui a palavra apropriação é importante para que não entremos no fácil equívoco de compreender a herança transgeracional como um destino imutável do qual o sujeito não pode escapar. Não se trata de receber passivamente o que vem do outro/Outro. Aliás, é justamente esse o trabalho de análise, implicar o sujeito, fazer com que ele perceba a maneira como se engata na posição subjetiva que lhe é oferecida como destino, que possa mover-se desse lugar criando outras posições possíveis, saindo das amarras da pura repetição do não elaborado.

O último capítulo, intitulado “O não dito e a transmissão”, é, a meu ver, o ponto alto do trabalho. Ali a autora traz um belo caso de Radmila Zygouris, vinhetas de sua própria experiência clínica e um caso de psicose, de Bernard Penot. Enriquecendo ainda mais essa discussão clínica, trabalha a partir da série de documentários criada por Steven Spielberg e pela Survivors of the Shoah Visual History Foundation, “Rompendo com o Silêncio”; bem como com um livro intitulado, Tu carregas meu nome: a herança dos filhos de nazistas notórios, de Norbert e Stephan Lebert. Todo este material revela-se uma seleção feliz no sentido de auxiliar a autora a desbravar seu tema. É através dele que Tatiana dividirá o segredo em pelo menos duas categorias: o proibido de dizer e o inominável:

Um saber inconsciente é capaz de acompanhar gerações subsequentes pelo que não foi dito e ficou proibido de ser dito. Como segredo, segue insistindo até que se possa atribuir a essa insistência algum sentido, até que se possa dizer algo sobre isso, ou seja, colocar palavras e criar história onde só existia a possibilidade de repetição (p. 116).

Assim, mesmo quando diante do inominável, quando diante do horror e do excesso faltam as palavras, a aposta da psicanálise é na ampliação do campo representacional, na busca em dar contorno ao que não tem forma. Em tal busca, o sujeito não é passivo; é convocado a falar e a encontrar um lugar possível para si na cadeia geracional:

Afinal, o que se transmite? Vale a pena insistir na pergunta. Toda a vida psíquica encontra-se no impulso para transmitir algo: afetos, mecanismos de defesa, sintomas, traumas… Como? Pelas mediações verbais e não verbais, conscientes ou não. Mas não é preciso lembrar que a transmissão não é passiva: remanejamentos frequentes e sucessivos permitem sua apropriação por parte dos membros da família (p. 80).

O próprio título já aponta para a saída na qual Tatiana aposta: fazer-se herdeiro, apropriarse da própria história, sair da condição daquele que simplesmente porta algo que não é seu e o repete, para a condição de autor. É isso que, como diz a autora, Freud já dizia ao citar Goethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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