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46
A clínica do trauma
ano XXIII - junho de 2011
180 páginas
capa: Patricia Furlong
  
 

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Resumo
Resenha de Antonio Cezar Peluso e Eliana Riberti Nazareth (coord.), Psicanálise, direito, sociedade, encontros possíveis, São Paulo, Quartier Latin do Brasil, 2006, 256 p.


Autor(es)
Márcio José de Moraes
é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 3a Região, com formação em psicanálise.


Notas

1 A título de exemplo vale citar, na esteira editorial, G. C. Groeninga; R. C. Pereira (coord.), Direito de família e psicanálise – Rumo a uma nova epistemologia, Imago, 2003; M. Caffe, Psicanálise e direito, São Paulo: Quartier Latin, 2003.

2 Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/

3 Lei no 8.078/90 ”Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: i. interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”

4 Lei n. 9.099/95 “Art. 57. O acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial. Parágrafo único. Valerá como título extrajudicial o acordo celebrado pelas partes, por instrumento escrito, referendado pelo órgão competente do Ministério Público.” código de processo civil “Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: […] v. o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente;”


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 LEITURA

Direito e psicanálise, algumas intersecções

Psicanálise, direito, sociedade, encontros possíveis


Law and Psychoanalysis: some intersections
Márcio José de Moraes

O interesse pela intersecção entre psicanálise e direito tem aumentado sobremaneira nos últimos anos. Basta ver o incremento no meio editorial de textos e trabalhos sobre temas que tratam do inter-relacionamento entre tais ramos do saber [1]. O mesmo ocorre nos simpósios, congressos e ciclos de debates em que essas culturas se apresentam.

Curioso que à primeira vista pode soar estranha a intersecção entre o direito, que muitos consideram uma ciência, com a psicanálise, tida pelo seu próprio criador como uma teoria de abordagem terapêutica, em que pese a nítida intenção de Freud, nos primórdios de sua obra, de estabelecê-la na cultura também como uma ciência.

Assim é porque, enquanto o direito edifica um mundo normativo com o fito de, mediante sanção, adequar a conduta humana para o convívio social, a psicanálise trafega em mão oposta. Sua preocupação direta é com o indivíduo, singularmente considerado, tirante quaisquer propostas normativas.

A conhecida Lenda de Procusto constante da mitologia grega sugere essa diferença de trato do humano nessas duas abordagens. Habitante das montanhas da Grécia que se apresentava aos viajantes e os levava ao seu castelo para alojá- los, Procusto os prendia a uma cama de ferro feita às suas medidas. O que sobejava dos viajantes às medidas de Procusto, ele decepava. O que faltava, ele esticava até que se igualassem a elas. Nem Direito, nem Psicanálise têm a ideologia de Procusto, mas ambos diferem pelo método de abordagem; enquanto o primeiro busca a ordem social pela normatização através das medidas da lei, a outra almeja a integração psíquica pelo encontro da singularidade individual na análise.

A despeito de diversos, esses dois mundos culminam por encontrar-se em muitas frentes quando se defrontam com a mais humana das questões do existir: o sofrimento humano. Na psicanálise nem há a dizer: ele é a razão do método terapêutico. No Direito há um sem-número de situações, principalmente aquelas que estão submetidas ao Poder Judiciário, que geram angústia e sofrimento. A questão da demora das soluções das ações judiciais, que se eternizam algumas vezes, é uma das angústias mais atuais entre os que buscam a tutela jurisdicional. No Direito Penal, os temas dos menores infratores, dos encarcerados no nosso sistema prisional, das patologias mentais, relativamente às práticas criminosas e à dosimetria penal e hoje, principalmente, o problema das drogas, geram conflitos não só para as partes, como também para os juízes, advogados e membros do Ministério Público. No Direito de Família, sobretudo, há temas cujo trato é por vezes doloroso: a separação conjugal e a situação dos filhos nessa circunstância, a guarda dos filhos menores, a prestação de alimentos, servem de exemplo.

Dentre os livros que tratam da intersecção entre Direito, especialmente o de Família, e Psicanálise, merecem destaque os textos colecionados na obra de que ora nos ocupamos, qual seja, Psicanálise, direito, sociedade, encontros possíveis, editada pela Quartier Latin do Brasil em 2006, coordenada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Antonio Cezar Peluso e pela psicanalista Eliana Riberti Nazareth, do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

De início, a apresentação da coletânea vem subscrita por Paulo Sandler, então Diretor da Divisão de Publicação da Sociedade Brasileira de Psicanálise, que aponta, diante da concepção da unidade do conhecimento, a necessidade de obras transdisciplinares e não apenas interdisciplinares, estas geradoras de isolamentos ainda mais profundos entre os ramos do saber. Convida assim o leitor a adentrar aos textos da obra que intercambiam experiências, no Direito e na psicanálise, acerca das múltiplas formas de vicissitudes da família.

A coletânea sob comento é significativa nessa seara. Ela se distingue sobretudo por ter sido coordenada pelo atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Antonio Cezar Peluso, que é magistrado desde 1968 e foi Juiz Titular de Vara de Família e Sucessões de 1975 a 1982 e desde 1986, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo integrante da 2a Câmara de Direito Privado, até 2003, ano em que foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro Antonio Cezar Peluso e a psicanalista Eliana Riberti Nazareth, no texto introdutório da coletânea, ressaltam a questão que permeia a obra, qual seja, como construir a conexão entre esses dois métodos – direito e psicanálise – que têm visões tão distintas – a normativa e a singular – para as mesmas indagações? “De que maneira se envolvem e entrelaçam esses dois planos do existir, o ser jurídico e o ser psicanalítico que habitam em cada um de nós e que fazem, no rigor da palavra, sujeitos assim da regra, como do inconsciente?”, perguntam-se os autores.

Essas questões, especialmente na medida em que resvalam no campo de Direito de Família, animaram um grupo de interessados que passaram a se reunir para discussões, e acabaram por fundar o Instituto Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de Família – ibeidf. “Sem falsa modéstia” (p. 18), como dizem os coordenadores, esse Instituto inaugurou o pensamento interdisciplinar sistemático entre direito e psicanálise, do qual essa obra, em forma de coletânea, é fruto direto. Outro Instituto com objetivos próximos àquele veio a sucedê-lo, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – ibdfam, que, em cooperação com a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, realizou colóquios e mesas de debate, lançando algumas obras sobre psicanálise e direito de família [2].

Dos textos componentes da obra, alguns tratam diretamente de aspectos da miscigenação entre direito e psicanálise; outros circunscrevemse com mais exclusividade em cada qual das disciplinas, para delas realçar pontos relevantes ao intuito do livro. Dentre os primeiros, a matéria da própria coordenadora, Eliana Riberti Nazareth, juntamente com Paulo Henrique Fernandes Silveira, cuida do tema do amor e alteridade na sociedade contemporânea, sob o título “Configurações psíquicas vinculares do narcisismo à alteridade”. Perpassam observações sobre a subjetividade na sociedade do espetáculo, marcada essencialmente pelos cultos à beleza, à juventude e à celebridade. Nesse “theatrum mundi”, as relações são fugazes e levianas e a cultura que lhes permeia traz a marca do narcisismo. Amor sem reconhecimento da alteridade, escolhas narcísicas de objeto. Ou seja, ama-se a sombra do próprio eu como objeto idealizado, onipotente, que, à medida que frustra, posto que é outro, colhe o ódio.

As observações desse texto, que se circunscrevem à área psicanalítica, mais exatamente a concepções metapsicológicas, mostram-se fundamentais para que a proposta do livro possa ser desenvolvida, qual seja, compreender-se o direito de família no aspecto relacional do inconsciente dos seus integrantes.

Outro artigo da mesma obra complementa o anterior. É o produzido pela psicanalista Ana Maria Andrade de Azevedo, sob o título “Uma nova família?”. Aqui se cuida ainda da concepção da família na contemporaneidade, caracterizada pela cultura do narcisismo. Considera que, efetivamente, a família tradicional, hierárquica, patriarcal, não mais existe, pelo que desapareceu a ordem simbólica específica decorrente do poder do pai. Seus componentes, pois, sem reconhecimento de suas identidades social, sexual, afetiva, não simbolizadas, carecem de sentido para os seus registros subjetivos, daí resultando as patologias denominadas de “borderlines” ou “falso self ”, por exemplo. Aí se encontra o nó górdio da questão, pois se a família é, ao ver da autora, a única instância capaz de assumir os conflitos, as irrupções violentas dessas patologias, como fazêlo nessas circunstâncias intestinas narcísicas do próprio seio familiar contemporâneo?

Há na coletânea um trabalho que, como diz o próprio nome, tenta, a exemplo de outros, uma proximidade entre os saberes: “Família, psicanálise e direito”, de Alysson Leandro Mascaro. Principia por uma proposta de visão filosófica da família, apartada da perspectiva religiosa e jurídica da família burguesa. Hoje, considera o autor, o vínculo familiar reside no afeto que se põe além do direito, na ordem política de uma sociedade que busque uma aliança revolucionária socialista na distribuição das riquezas e na circulação dos afetos.

Na mesma seara trafega o artigo de Ceneide Maria de Oliveira Cerveny, terapeuta de casal e família. Propõe que o homem guarda duas funções básicas: o ser alguém em sua individualidade e o pertencer a uma família, grupo, sociedade, de modo que nessa dança do ser e do pertencer se põe a dialética da união familiar. Centra-se nas ideias de M. Bowen (Perda, tristeza e depressão, São Paulo, Martins Fontes, 1985) e Nagy Borzomeniy (Lealtades invisibles, Buenos Aires, Amorrortu, 1983), para concluir que os principais fatores de união familiar são a confiança e a lealdade.

Outros artigos da coletânea são mais específicos ao campo do direito. Escritos por professores dessa área e advogados militantes no direito de família, esclarecem o leitor quanto a questões técnico-jurídicas e instigam sua curiosidade ao resvalarem nos aspectos psicológicos que cada tema suscita.

É o que ocorre com os textos “A dor e o dinheiro no dano moral”, de Ademir Buttoni, e com “Questionando dois sagrados: o direito de visitas e a obrigatoriedade sucessória”, de Marcial Barreto Casabona e de Maria Carolina Bermond.

O primeiro artigo propõe a inconveniência da condenação da indenização em dinheiro, por dano moral. A jurisprudência nessa matéria é pacífica em indenizar o dano moral em pecúnia por não encontrar, na maioria dos casos concretos, outra forma de repará-lo. Em casos específicos, como, por exemplo, relacionados aos interesses ou direitos difusos ou transindividuais [3], são possíveis outras formas de reparação, critérios também utilizados nos processos criminais para substituição das penas privativas da liberdade, como, por exemplo, prestação de serviços à comunidade nos casos em que a lei permite. O que está ínsito ao artigo, segundo nos parece, é uma sugestão deveras interessante, qual seja, dimensionar- se o dano moral, em casos específicos, não por critérios judiciais empíricos, mas por perícia psicológica ou psicanalítica, sempre que a quantificação do dano se mostre dependente da estrutura psíquica singular de determinada vítima.

O outro artigo mencionado diz com questões familiares das mais conturbadas, o direito de visitas e a obrigatoriedade sucessória. Citando Zigmunt Baumann (“A sociedade líquida”, Folha de S. Paulo, 19.out.2003) e Christopher Lash (A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio, Ed. Imago, 1983, p. 64), aponta duas causas para o esfacelamento das relações duradouras: o narcisismo e o hedonismo impostos ao imaginário coletivo pela sociedade de consumo. Pois a família assim constituída, incapaz de reconhecer em si a causa das dificuldades e de superá-las, como, exemplificativamente, com a guarda compartilhada dos filhos, escolhe um outro para se lhe atribuir a solução, que nunca se apresentará satisfatória para todos os envolvidos e para assumir a culpa daí decorrente: o Poder Judiciário.

A análise da família contemporânea como pressuposto das implicações subjetivas que daí decorrem é a tônica comum dos artigos dessa coletânea. Assim também o texto bastante instigante de Jassanan Amoroso Dias Pastore, então editora da revista Ide da sbpsp, denominado “A família contemporânea: ludicidade, educação e subjetividade”, trilha esse caminho. Preocupa-se em esquadrinhar os modos pelos quais os conhecimentos psicanalíticos podem contribuir para o processo educacional que ocorre no seio familiar e seus desdobramentos na comunidade e na cultura. Cita Freud (“Psicologia de grupo e a análise do ego”, de 1921, “O futuro de uma ilusão”, de 1927, “O malestar na civilização”, de 1929), dentre outros, para considerar que o destino individual traz a marca do social e que a Lei é elaborada em tese para integrá- lo ao convívio social, conforme Helio Pellegrino (“Pacto edípico e pacto social”, in L.A. Py (org.), Grupo sobre grupo, Rio de Janeiro, Rocco, p. 195-205). Ora, sendo a lei o elemento cultural que determina a conexão ética entre o individual e o social, propõe a autora que a sustentação da constituição do sujeito se agregue num “pacto lúdico”, isto é, “na produção de formas criativas de sustentação da Lei – a lei que rege a modulação das pulsões, a lei que rege a formação dos laços afetivos e familiares, a lei da alteridade”.

Há vários artigos da coletânea que valorizam a mediação como forma de solução dos conflitos familiares, em vez de ações judiciais, mais conflituosas, maniqueístas, e plenas de ressentimentos, posto que instituem sempre um ganhador e um perdedor. São eles: “Mediação – Uma pequena cartografia do conflito”, de Ana Lúcia Pereira Cardoso; “Psicanálise e mediação familiar”, de Lia Rachel Colussi Cypel; “Em nome de quem”, e “Família: o litígio vale a pena?”, de Sandra Helena Alves Lazzarini Carola.

Todos são muito ilustrativos das vantagens do sistema de mediação nos conflitos familiares. Os mediadores, geralmente dois profissionais, um da área jurídica, outro da área de saúde mental, procuram conduzir os envolvidos a retomarem o diálogo e a assumirem o papel principal na solução dos embates. A eventual solução não vem imposta por um terceiro, ainda que seja pelo Estado- Juiz através do processo judicial. Pelo contrário, é resultante da escolha dos envolvidos, sob a condução sigilosa e quanto possível neutra dos mediadores. Nem por isso o acordo daí resultante relega a jurisdição, já que poderá ser submetida à homologação do juiz competente, caso em que valerá tanto quanto uma sentença judicial transitada em julgado [4].

A experiência de economistas adensa a obra com o artigo “Trabalho e exclusão social no Brasil e a experiência de São Paulo”, de Márcio Pochmann (professor livre-docente do Instituto de Economia da unicamp e então secretário do desenvolvimento, trabalho e solidariedade da prefeitura municipal de São Paulo) e Alexandre de Freitas Barbosa (doutor em economia pela unicamp). Os autores trazem relevantes levantamentos estatísticos para demonstrar a estratégia de inclusão social paulistana então em andamento para redução da violência, a evasão escolar, maior dinamismo econômico e a redistribuição de emprego em direção à periferia.

A coletânea traz, também, um artigo do Frei Beto, Carlos Alberto Libânio Christo, com o título de “O amor como critério moral”. Sua conclusão é de índole ético-religiosa, pela qual “na doutrina evangélica, o eixo da vida moral gira em torno do amor” e fora dele não há salvação. Baldados seriam todos os esforços fora da via evangélica do amor, à medida que a estrutura econômica da sociedade, sobre a qual se ergue o ordenamento jurídico e político, visa apenas, segundo o autor, assegurar a ideologia da minoria dominante.

Por fim, a coletânea traz matéria de autoria do então Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e hoje Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Sidnei Agostinho Beneti, sob o título “Personalidade e opções psicológicas de julgamento”. A proposta do texto é inovadora porque, à parte suas considerações psicanalíticas sobre as instâncias psíquicas (“id”, “ego” e “superego”) e seu inter-relacionamento, à moda freudiana, propõe a produção do inconsciente na motivação das decisões judiciais.

Sob nosso ponto de vista, as decisões judiciais podem se apresentar cartesianamente silogísticas, como de há muito se acreditou. Mas esse aspecto nos parece meramente mecânico, formal, pois que, materialmente, as decisões judiciais são muito mais. São produtos da intelectualidade do juiz, da sua formação ética, de sua cultura jurídica e humanista. São também produto da arte do juiz, no sentido criativo da expressão, pois que se trata de um processo de criação singular do direito previsto em tese no ordenamento jurídico para o caso concreto submetido pelas partes à jurisdição.

Sobretudo – e aqui existe um universo a desvendar – as decisões judiciais são também emanadas daquele estranho em nós – o Inconsciente – e assim jurisdição e psicanálise coexistem. O livro vale, pois, pelo que instiga.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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