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Autor(es)
Mário Corso
é psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) e autor e parceiro de Diana Lichtenstein Corso nos livros Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis (2005) e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia (2010), ambos pela editora Artmed. Mário Corso é autor de Monstruário – Inventário de Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiros (2002) pela editora Tomo (Menção Honrosa do prêmio Jabuti). Os artigos, ensaios e crônicas de ambos encontram-se reunidos no site www.marioedianacorso.com.

Diana Lichtenstein Corso
é psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) e autora e parceira de Mário Corso nos livros Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis (2005) e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia (2010), ambos pela editora Artmed. Diana Corso é colunista do jornal Zero Hora e da revista Vida Simples.

Lea B. Nuss de Bigliani
é médica psiquiatra e psicanalista. Professora da Faculdade de Medicina e de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade de Psicologia da PUCSP. Professora/fundadora do curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Membro da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (i.p.a.). Possui textos publicados no país e no exterior.

Guillermo Bigliani
é médico psiquiatra e psicanalista. Professor da Faculdade de Medicina e de Psicologia da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade de Psicologia da PUCSP. Professor/fundador do curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Membro da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (i.p.a.). Possui textos publicados no país e no exterior.

Patricia Vianna Getlinger
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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 DEBATE

O futuro do presente

The future of the present
Mário Corso
Diana Lichtenstein Corso
Lea B. Nuss de Bigliani
Guillermo Bigliani
Patricia Vianna Getlinger

Realização: Gisela Haddad, Vera Zimmermann, Cristiane Curi Abud.

Na Folha de S.Paulo do dia 24 de março último, uma das manchetes anunciava que um grupo de cientistas japoneses seriam os primeiros a cultivar espermatozoides de um mamífero em laboratório desde os estágios iniciais. Na continuação, a ideia seria tratar seres humanos inférteis. As técnicas cada vez mais avançadas de reprodução humana criaram novos e complexos dilemas humanos ao alterar as tradicionais noções de maternidade, de paternidade e de família. Ao mesmo tempo que a utilização destas novas técnicas proporciona infinitas possibilidades de procriação, a tecnologia toma o lugar do ato sexual que deixa de ser o elo entre as gerações. As questões ligadas à filiação tornam-se complexas: uma criança pode ser gerada a partir da doação de esperma e/ou dos óvulos; pode ter herança genética de várias pessoas; pode ser gerada por um parente próximo ou por um desconhecido; pode ser filha de uma mãe solteira ou de um casal homossexual. No imaginário cultural, no entanto, o modelo de referência de procriação ainda é a relação sexual entre um homem e uma mulher, de preferência dentro da “família nuclear heteronormativa” (pai, mãe e filhos), remetendo ao que parece ser a ordem “natural” das coisas. Se por um lado o modelo familiar é tributário da ordem social que o produz – os ideais normativos, os valores e modos de existir, os novos homens e mulheres, os novos pais e mães – por outro, certas mudanças fazem ruir pilares de sistemas e estruturas teóricas que clamam por debates e reflexões. Os novos significados e valores que organizam e sustentam a identidade subjetiva de homens e mulheres, pais e mães suscitam indagações sobre temas caros à psicanálise, como a vontade e o desejo de ter filhos, o lugar do filho para os pais, a origem e a constituição do sujeito, a importância da filiação. Desde Freud o conhecimento ou o encontro com o novo surge pelo processo de procura de algo que responda à interrogação sobre a origem. É a referência a este ponto de origem que permite a distinção entre o apelo do novo, que mantém vivo o desejo, e o retorno para reencontrar-se. A clínica nos impõe constantemente questões sobre aqueles que não podem se indagar sobre suas origens ou que por alguma razão precisam negar seu passado, incluídos aí os casos de filhos adotivos ou gerados artificialmente cuja verdade sobre sua origem pode estar interditada por diversos motivos. Por outro lado cabe questionar qual seria o diferencial na constituição subjetiva de um sujeito gerado adotado daquele gerado por um banco de espermas ou óvulos. É fato que a constituição de um sujeito está intimamente articulada ao lugar simbólico através do qual ele é falado e olhado e que a complexidade de seu processo de historização está relacionada também à sua adoção simbólica, já que ser filho biológico não garante uma adoção psíquica. Mas a curiosidade sobre a origem estende-se a todos e há nuances para cada caso, sejam estes filhos biológicos, adotados ou reproduzidos em laboratórios, com suas origens biológicas às vezes desconhecidas. Entre a visão futura de um ainda desconhecido mundo de “Barbarella” e a nostalgia que nos faz descrever incessantemente o que nos parece fora da norma, a sessão Debates da Revista Percurso convidou alguns casais de psicanalistas para contribuírem com sua experiência, ampliando as trocas e diálogos sobre estas indagações, cuja frequência aumenta na clínica com crianças e famílias.

DIANA LICHTENSTEIN CORSO & MÁRIO CORSO
Com quantos lençóis se faz uma cena primária?

Uma das mais cômicas perguntas que as crianças pequenas fazem refere-se à incompreensível questão de onde estavam antes de existir. É possível pensar que em outros tempos não existíamos? Se sim, qual é nosso ponto de origem? Qual nossa razão de ser? Toda essa filosofia costuma apresentar-se precocemente sob a forma do questionamento que fazem a seus pais quando encontram uma foto do casal anterior ao seu nascimento, particularmente quando se trata da cerimônia de casamento: – “onde eu estava aqui?” ou a variante – “por que eu não apareço aqui?”. Na imaginação dos pequenos, o casal existe unicamente para dar-lhe origem, são eles os pontos de união e razão de ser daquela relação.

Não importa que idade se tenha, é duro acreditar que se é fruto de um acaso. Melhor pensar que o mundo todo, e especialmente nossos pais conspiravam para nos convocar, que nossa ausência foi apenas temporária e muito sentida. Como pensar, afinal, que se nunca tivéssemos nascido, jamais se saberia disso que somos, portanto, ninguém sentiria falta do que nunca conheceu? Por isso, é crível fantasiar que sempre fizemos parte da cena do casal parental, que damos sentido às suas vidas e à relação.

As respostas clássicas dos pais a esse tipo de indagação, de que o filho já vivia em seus corações, desejos ou pensamentos, parece natural aos pequenos, afinal, o pressuposto é que sempre existiram, mesmo que tenham demorado um pouquinho a nascer. Assim nos perpetuamos antecipadamente, como a realização de um sonho premonitório de nossa existência feito à nossa imagem e semelhança, como a encarnação dos ideais parentais, o objeto perfeito de seus anseios. A grande síntese disso é nosso mito de origem, associado à fantasia do ato sexual que lançou a pedra fundamental de cada um de nós. Mas como fica quando não é possível associar esse ato diretamente ao amor de duas pessoas, nossos pais?

Não importa o método usado para uma concepção, até que a clonagem seja possível seremos sempre a combinação de dois para ser um, se não de uma relação sexual, indubitavelmente de duas cargas genéticas. Fazemos o possível para dar um revestimento imaginário que recubra essa incontornável realidade. O fenômeno da herança biológica, ser fisicamente parecido com os pais, filhos, irmãos e parentes, em geral é reconfortante, pois permite sentir-se parte de um grupo, linhagem, história. Mas também é sinistro, como se alguém estivesse usando nosso corpo ou traços para outros fins não determinados por nós mesmos. Entre gêmeos idênticos, urge estabelecer quaisquer detalhes que garantam uma diferenciação. Porém, são também os gêmeos idênticos que nos propiciam compreender o mito de origem como algo muito além do momento factual da cena primária, do ato sexual que lhes deu origem, pois do mesmo evento histórico são produzidas diferentes interpretações.

Biologia não é destino, mas gostaríamos que fosse, porque a extrema variedade de caminhos, escolhas e leituras que deixam nossa história em aberto, não determinada pelas premissas genéticas, é angustiante. Assumir a autoria de nossa vida é um problema, preferimos o papel de personagem do que de autor, de vítimas do que algozes dos males que nos afligem. Por isso, por exemplo, é tão difícil fazer os leigos acreditarem que identidade sexual é uma coisa e escolha de objeto outra, que é possível ser feminino ou masculino sem que isso determine uma forma homo ou hetero afetiva de amar. Da mesma forma, ninguém gosta de saber que a concepção e o mito de origem que associamos a ela não estão necessariamente vinculados aos fatos concretos, quer seja uma relação sexual, as inseminações ou adoções. O modo como nossos futuros pais se organizaram para chegar a nos ter em seus braços é um dado, um fato histórico que vai influenciar os subsequentes, mas a vida é um labirinto com várias saídas.

Se não tivermos preconceito podemos ver que até nas comédias românticas mais previsíveis é possível encontrar novidades que tentam responder a esses impasses. Quanto mais popular for uma ficção, melhor ela vai traduzir sonhos coletivos, desejos e resistências comuns aos homens de sua época. Uma delas é particularmente eloquente quanto a esse tema: trata-se de Minhas mães e meu pai (The kids are all rigth, 2010). O filme é sobre uma nova disposição da família, baseada numa relação homoafetiva, com filhos gerados por inseminação artificial. Jules e Nic usaram o mesmo doador anônimo para terem filhos, cada uma, um. Portanto, os filhos compartilham um anônimo e mesmo genitor e são, através dele, irmãos de sangue.

O casal é previsível e puro clichê: Nic comanda a família por ser médica e ganhar mais, já Jules sacrificou a carreira para cuidar dos filhos, tarefa que está chegando ao fim. No meio da vida, ela já não sabe bem o que vai fazer, tem mais planos que um ponto sólido para começar. Um drama banal de tantos casais heterossexuais onde a mulher enterra-se na cena privada para o homem brilhar na pública.

As crianças chegam à adolescência sem maiores problemas, mas algo inquieta o menino Laser: está um pouco perdido quanto a qual modelo de homem vai ser, tem um amigo idiota e bruto e lhe parece que a masculinidade passa por isso, porém duvida. Nesse momento começa a se perguntar por seu pai biológico e arrasta sua irmã na procura. Ao mesmo tempo, vasculhando no quarto das mães, Laser encontra material erótico que lhe parece estranho, pois elas se excitam com pornografia gay masculina. A preferência delas era ver homens transando e obviamente ele não entende o que isso significa. Essa intromissão dele na intimidade delas as deixa extremamente constrangidas, mas é interessante constatar que, independentemente das condições da concepção, é no leito parental que o filho busca sua “cena primária”.

Secretamente, os irmãos buscam e encontram o doador, querem saber quem é, mas também o que o levou a fazer essa doação. Como sempre, o sujeito busca informações no seu ponto de origem quando quer saber quem deve ser. Paul, o doador, é um bon vivant, nunca terminou os estudos, possui um restaurante natural, vive para seus temperos, plantas e relações sexuais passageiras. É bem sucedido em seu propósito de viver tranquilamente. Entre surpreso e simpático, recebe bem os filhos que nem sabia que tinha. Para surpresa das mães, esse personagem acaba convivendo um pouco com a família e conquista todos.

O doador transformado em pai é atencioso e delicado, ajuda Laser a encontrar-se como homem e escuta Joni quanto a seus impasses adolescentes. Mas nem tudo estava tão tranquilo quanto parecia, pois Nic vê seu lugar de chefe da família ser ameaçado pela suavidade inabalável de Paul e, enciumada, começa a beber. Suas suspeitas de que a ordem da família estava abalada se confirmam: Paul concede o primeiro emprego a Jules, que é paisagista, porém, a proximidade dos dois acaba na cama, como amantes improváveis e fogosos. Quando finalmente Nic estava apaziguada com a existência de Paul, descobre essa traição e o casal entra em crise. Como nas famílias mais conservadoras, a traição é devastadora e um pecado sem perdão. Os filhos se afastam do pai, colocando nele a maior parte da culpa pela eminente separação das mães, como se ele, que foi procurado, fosse o elemento de desagregação que veio de fora para estragar tudo.

O filme termina com a filha mais velha indo para a faculdade, ou seja, saindo de casa, e o casal mais Laser tentando recompor o que sobrou da família. A parte mais sofrida fica com Paul, que tomara afeto por todos e está excluído. Há uma cena em que Nic o expulsa e diz que, se ele quer uma família, que faça uma.

O pequeno drama e o reposicionamento de papéis, aparentemente tão inovador, não trazem nada de novo, pois a família homoafetiva se atém aos padrões clássicos. O que nos parece relevante é o desejo de Jules, que não parece ser bissexual, por Paul e, posteriormente, a rapidez com que ela se desliga dele e volta à esfera de Nic. O que ela foi fazer na cama dele?

Acreditamos que uma resposta possível está nos impasses que a reprodução artificial nos traz. Como crianças que sabem ser filhas graças a um procedimento médico constroem seu mito de origem? Nosso mito de origem sempre foi sexual, em geral somos, querendo ou não, o fruto de um encontro erótico e se possível amoroso. Na busca por saber quem somos e o que esperam de nós vamos espiar a cama paterna para ver se encontramos alguma pista. Era exatamente isso que Laser estava fazendo: por um lado procurava seu pai biológico e ao mesmo tempo investigava a sexualidade das suas mães. Mas quem responde, a seu modo, a essa questão é Jules, que fornece, a posteriori, a cena sexual que faltou no engendramento desses filhos: através da traição ela sexualiza a fertilização artificial. O casal conseguira dispensar um homem para ter sua família, mas não conseguiram evitar a encenação da cena primária heterossexual. É aí que esse filme aparentemente arrojado encontra seus limites.

Um menino criado por mulheres, como Laser, que necessite envolver outros interlocutores na construção de sua identidade, o fará com um avô, um amigo mais velho, um padrinho, professor ou tio. Neste caso o doador cumpriu esse papel e o filme providenciou, no caso da “cena primária” dos amantes, para retroagir essa identificação a um mito de origem. É claro que qualquer sujeito fará suas conexões, unindo elementos colhidos de sua curiosidade sexual com outros de sua história, índice dos ideais que ele supõe que foram investidos nele. Porém, a investigação só tende a priorizar premissas biológicas quando algum dos envolvidos aponta para a insuficiência de seu lugar ou desejo. Por exemplo, pode partir das dúvidas de pais adotivos quanto à sua legitimidade no papel. No caso de famílias monoparentais, pode haver um sentimento da mãe ou do pai que criam sozinhos, em torno da ausência de alguém que tenha querido partilhar com eles essa experiência. Relaciona-se mais com a solidão da missão, sentida pelo pai, ou mãe “solteiros”, e partilhada com o filho.

Jules e Nic não pareciam encarnar algum desses impasses, nem outros que revelassem uma insuficiência da família por elas constituída. É o roteiro desse filme, tolerante de forma apenas superficial, que associa as crises adolescentes daquelas crianças, que, como diz o título original, estavam bem, com a falta de uma cena primária clássica. Faz isso frisando a busca do garoto por um pai homem, que deseje a mãe (a mais identificada com o papel clássico feminino) como amante, para propiciar a identificação masculina. Como se vê, ainda há muita dificuldade para descolar os fantasmas sexuais, a construção da identidade de gênero e a escolha de objeto amoroso, das premissas biológicas. De fato, existe a realidade da diferença dos sexos e da relação sexual, que o sujeito não deixa de levar em conta, de envolver a força real da carne com todo o imaginário que puder, mas elas não induzem a um destino certo e único. Por isso, quando alguém procura rastros nos lençóis parentais, são os traços do desejo que se investiga, daquele que por um belo acaso do destino criou as condições para nos fazer nascer. Nic tem razão, o que faz uma família é a vontade de que ela exista.

LEA B. NUSS DE BIGLIANI & GUILLERMO BIGLIANI
O romance/mito da origem versus a história da origem

… em uma praia de New Jersey o banner de um avião anuncia: “WOMEN EARN $8000// AGE 20-30// 888-968 EGGS”. (Mulheres entre 20 e 30 podem ganhar até 8000 dólares, ligar para 888-968-ovos)

Pensar na temática proposta pela revista Percurso implica ingressar em um território delimitado pela família moderna tradicional, pelas configurações vinculares pós-modernas e sua intersecção com as novas técnicas reprodutivas. Em uma visada por nossa própria rede social deparamos com estas situações: 1) Um de nossos amigos – talvez um dos melhores psiquiatras da Califórnia – e seu companheiro arquiteto acabam de adotar um menino de seis anos. Estão muito felizes. 2) Outro amigo do Canadá tem quatro filhos, dois são gays. Uma delas é presidente da sociedade gay de uma importante cidade desse país e esteve visitando a cidade de São Paulo para entrevistar diferentes líderes sindicais. Ela e sua companheira tiveram várias gravidezes com o auxílio do banco de sêmen de sua cidade. 3) Em um congresso de psicanálise em Berlim, em uma mesa sobre homoparentalidade, duas colegas relatam detalhes de seu encontro e do enamoramento de ambas seguido da separação de seus respectivos maridos e da possibilidade de vivenciar uma relação explorando uma nova dimensão longamente reprimida. Constituíram uma nova família com novos filhos a caminho.

O casal moderno, aquele formado por gêneros distintos que por livre escolha se unem por sexo e amor para a reprodução foi uma “invenção moderna do ocidente” segundo Rougemont e, com exceção de histórias medievais e renascentistas como as de Romeu e Julieta (que não se deram tão bem), sua ampla difusão social não tem mais de 150 anos. Mas temos a sensação de que essa configuração vincular é eterna e única.

No entanto é um novo imaginário social (Castoriades) e uma moral coletiva pós-moderna que alimentam o sistema do ego dos atores das histórias que relatamos acima e facilitam todos esses novos projetos familiares.

Sabemos muito pouco sobre o sofrimento psíquico que pode surgir nestas famílias sob o efeito das fantasias originadas no encontro dos diferentes modelos de procriação assistida com as velhas e as novas configurações vinculares. Mas não temos dúvidas de que é fundamental para a prevenção deste sofrimento a transmissão da verdade entre gerações e para isto são necessárias a elaboração e simbolização dos fatos vinculados às formas de procriação nos pais ou nos sujeitos portadores das funções paterna e materna.

A não produção de filhos pelo método tradicional pode ser algo incorporado e metabolizado pelos pais, ou não. Quando não o é, o procedimento da procriação não explicitado aos filhos (terceirização total do conteúdo genético, uso parcial do próprio conteúdo genético com modificações, uso de portador conhecido ou desconhecido da gravidez com as variações descritas do material genético, adoção pura e simples, etc.), pode transformar-se em segredo de família. Este segredo ocupa o lugar do “indesejado” na transmissão intergeracional.

No nordeste dos EUA, local bastante civilizado para diversos segmentos e em cujas praias passeava o avião com aqueles dizeres, desenvolve- se livremente a concorrência pelos melhores óvulos do mercado. Mas é provável que o piloto não se sentisse tão seguro se seu banner passeasse ao sul do país, local em que poderia ser alvo dos mesmos rapazes que, com seus AR 15, atingiram algumas clínicas de reprodução humana. Sendo o imaginário social diferente para as diferentes regiões, em consequência, o superego que se alimenta dele também o será. É ainda provável que neste momento histórico convivamos com mandatos originados tanto no “nordeste” quanto no “sul”! As condutas que se distanciam da moral familiar ou social reinante (imaginário) geram vergonha e estimulam o secreto (Bigliani).

Para Abraham e Torok, o segredo que não se incorpora, que envergonha, se transmite junto a outros conteúdos da mente e passa a ocupar um lugar topicamente “extraterritorial”, configurando uma cripta na mente dos membros da família na segunda geração e um fantasma inominado na terceira. Este “impensável” que às vezes se manifesta como “existência pressentida” poderia originar patologias que vão desde transtornos de aprendizado até condutas aditivas (vícios), problemas psicossomáticos e ainda delírios (Moguillansky).

Outros exemplos de produções que têm em comum este “privilégio” tópico (mas com um conteúdo moralmente reprovável) são a “consciência” clandestina do colonizador e a dupla consciência do torturador. Os filhos dos desaparecidos das ditaduras latino-americanas que foram incorporados às famílias dos repressores e aos quais não se comunicou a sua origem tinham uma sensação de que alguma coisa estava errada com eles em relação a sua origem e muitos deles apresentaram todo tipo de patologias, remitindo muitas delas após a revelação de sua origem.

Wittgenstein diz no prólogo de Tractatus que seu livro consta de duas partes: a que está ali exposta e uma segunda que não escreveu. Esta última seria a mais importante. Achamos também que o mais importante destas linhas poderia estar nas seguintes perguntas cujas respostas também não escrevemos:

1) Qual será o resultado da proibição de ter mais de um filho na mente de milhões de chineses, cujos pais sofreram a repressão estatal do desejo de procriação por esta proibição? Como pensar essa procriação em que não dá para errar, em que se tem uma só bala na agulha? O que vai acontecer com os filhos que nasceram depois que suas mães abortaram gravidezes do sexo feminino frente a hipervaloração de gênero que imperou e ainda impera nessa região?

2) É de se supor que o médico e especialista em fecundação humana Roger Abdelmassih – que nosso generoso sistema judiciário deixou em liberdade no meio de um processo por estupro de mais de duzentas pacientes – tenha gerado inúmeros filhos com seu próprio esperma em sua sofisticada clínica de fecundação na cidade de São Paulo. Vale dizer que ele não é o único migrante do Olimpo nesta área da medicina. Muitos especialistas em fecundação (sublinhamos um precursor francês, condenado por ter gerado mais de sessenta gravidezes com sua assinatura genética) sucumbiram a essa tentação, ainda que poucos sejam lembrados como autores do ato de fecundar. O que seria comunicado a esses filhos se seus pais se animassem a fazer testes de dna?

3) Existem clínicas que reaproveitam os óvulos congelados? Como esse temor opera na mente dos pais que têm participado destes processos de procriação e na consequente relação com seus filhos?

4) Diante da afirmação de Winnicott de que os processos de simbolização sempre seriam afetados nas crianças adotadas, como se explica o adotado Steve Jobs, gênio da computação e criador da Apple?

Pichon Riviére afirmava ser um importante capítulo da terapia de família transformar os romances familiares em histórias familiares, “limpando” as distorções geradas pelos segredos de família. Até que a fecundação in vitro e a gravidez em incubadora sejam um fato generalizado e a incômoda e desconfortável gravidez uterina seja coisa do passado, pensamos ser cada vez mais importante nos ocupar de transformar os romances de origem em histórias da origem.

PATRICIA VIANNA GETLINGER & NELSON COELHO JUNIOR

Uma primeira constatação: há novas maneiras de se formar uma família e de se conceber filhos. Avanços na genética, nos tratamentos para os vários tipos de infertilidade, mudanças nos valores, nas leis e nas convenções sociais têm permitido uma revolução no âmbito da constituição das famílias e das formas de se criar filhos. Do ponto de vista simbólico, isso gera transformações?

Uma primeira ideia psicanalítica: no mundo contemporâneo, tanto a ciência como as novas formas de organização social e legal têm permitido e alimentado novos níveis de fantasia onipotente. Agora tudo é possível para quem deseja ter um filho e não se enquadra nas condições para gerá-lo “naturalmente”. (E também para aqueles que se enquadram, há uma infinidade de exames que prometem garantir uma gestação sem surpresas e um bebê “perfeito”, com muitas das variáveis da natureza monitoradas ou mesmo controladas). Tem-se atualmente a certeza de que muitas barreiras culturais e biológicas podem ser suplantadas, contrastando com períodos históricos em que predominava a submissão aos limites colocados pela natureza e por modelos e valores sociais (crenças religiosas, costumes morais etc.). Se a parcial superação desses limites amplia as condições de realização de um desejo tão fundamental do ser humano, os modos pelos quais essa superação tem se dado – alimentando fantasias onipotentes de controle de todas as variáveis da natureza – podem chegar a diminuir as condições para lidar com limites em geral, equivalentes simbólicos da finitude e da morte, e suportá-los. Quais são as consequências psíquicas dessas mudanças e como a psicanálise pode ajudar a pensá-las?

Uma segunda constatação: em muitos dos casos em que a gravidez natural não é possível ou não é imediata, há uma perda da onipotência, da confiança e da esperança do casal (“o que desejo não acontece quando quero”). Essa perda da onipotência é muitas vezes vivida como fracasso narcísico (impotência), mas em muitos casos sua elaboração pode ajudar a aumentar os recursos do casal para lidar com essa e outras frustrações da vida. Por outro lado, ela pode gerar um aumento significativo da ansiedade. Em casos em que houve alguma tentativa frustrada nos processos de adoção e de inseminação artificial, mesmo após um posterior sucesso, é muito comum haver um pavor permanente de perder o filho tão desejado, seja durante a gestação, seja após seu nascimento, nas eventualidades comuns da infância (doenças infantis). A dinâmica onipotência/impotência pode ser perpetuada, caso não haja um grau mínimo de elaboração das experiências e das questões simbólicas envolvidas nas dificuldades do processo de engravidar ou de adoção.

Uma terceira constatação: os casais “tradicionais” que podem gerar filhos “naturalmente” têm sido expostos às mesmas doses de crença onipotente na ciência. Isso os leva muitas vezes a retardar a geração dos filhos (com consequências nem sempre positivas) e/ou a confiar que o “milagre” dos exames pré-natais vai garantir uma vida saudável e feliz para a família. A menor exposição às ansiedades e fantasias comuns à gravidez em função do acesso a recursos científicos e à confiança de que a ciência pode resolver/corrigir tudo enfraquece a necessidade de elaborar as intensidades emocionais geradas por essas fantasias – fantasias de onipotência e de impotência frente às limitações e aos limites humanos.

Ao lado destas constatações e ideias, seria possível enumerar mais algumas, para esboçar um cenário um pouco mais amplo do que está em jogo:

a) Sabe-se que muitos casais têm filhos por não conseguirem “brecar” uma ordem “natural”, seja em sua dimensão biológica, seja em seu aspecto social (no sentido daquilo que é esperado pelo meio social). Neste sentido, muitos casais não chegam a constituir o desejo de ter filhos antes de efetivamente tê-los; por outro lado, sempre é tempo de “adotar” o filho simbolicamente, e muitas vezes isso só se dá após o nascimento. b) Outro aspecto importante e recorrente é o desejo de ter um filho para poder transmitir o que se sabe ou o que se possui, seja essa posse herdada ou construída pessoalmente. Ter um filho, afinal, também carrega em si a esperança de poder perpetuar algo de si para além de sua própria vida ou para além da morte, e por esse motivo esse aspecto nos concerne nesse debate. De um modo ou de outro, o desejo consciente de maternidade/paternidade não garante as condições psíquicas para criar uma criança ou para evitar conflitos psicológicos maiores. Mais uma vez, mas por razões diferentes, encontramos o paradoxo da onipotência e da impotência diante da morte e da finitude.

Uma primeira evidência oferecida pela psicanálise: gerar biologicamente um filho não garante que ele tenha sido desejado (em última instância, todo filho precisa ser “adotado”). Ou seja, um filho pode ter sido gerado pelo desejo sexual, mas isso não implica que o desejo de maternidade/paternidade esteja presente. Já no caso de adoções ou inseminações artificiais, predomina o desejo consciente de se ter um filho. Por outro lado, como o processo deixa de ser natural e “fácil”, para se tornar difícil, demorado, dispendioso, dolorido, isso deixa marcas. De um caso a outro, embora haja uma diferença importante quanto ao processo de se gerar um filho, a filiação simbólica nunca está garantida per se. O ponto central aqui é que não há como garantir que um modo ou outro de se gerar um filho e se constituir uma família seja um sucesso e traga felicidade garantida. Dito de outro modo, não há como garantir que os tratamentos para infertilidade, as possibilidades de adoção (incluindo a adoção por casais homossexuais) e também o controle científico de que tem sido cercada qualquer gestação, suplantem os diferentes níveis de impotência psíquica do casal.

Uma contribuição teórica psicanalítica: Ferenczi concebeu uma noção que pode ser útil para a continuidade de nosso debate. Para ele, o desenvolvimento do sentido de realidade envolve um paradoxo: a possibilidade de vivência da onipotência, que permite o surgimento de desejos cada vez mais ousados, é concomitante à necessidade de certa perda de onipotência. É nesse equilíbrio instável que o sujeito se constitui, e a partir dessa experiência ele pode encontrar algum lugar possível entre a onipotência e a impotência.

Embora a ciência e a sociedade, de forma geral, tenham ampliado limites importantes com relação à geração e criação de filhos, tornando os parâmetros dessa discussão cada vez mais amplos e livres, sabe-se que ter e criar filhos gera angústias e inseguranças por si só. Isso é inerente ao processo de gerar e ao processo de criar uma criança (independentemente de como e por quem ela é gerada biologicamente). A própria situação de ter filhos gera conflitos, angústias e ansiedades em qualquer circunstância. As novas formas de geração e criação de filhos colocam questões complexas quanto a essa tarefa e certamente acrescentam dificuldades específicas para quem as vive. Nada garante a superação da tensão entre natureza e cultura, entre impotência e onipotência, entre vida e morte. Criar filhos pode justamente ser uma das experiências que nos coloca frente a frente com essas tensões incontornáveis e os paradoxos que elas geram. E, na melhor das hipóteses, não importa em que categoria o casal parental se encaixe, a criação dos filhos pode estimular o desenvolvimento pessoal e a relativização da onipotência rumo a níveis possíveis de potência. Felizmente, a ciência e a sociedade têm ampliado os limites ditos naturais e assim possibilitado a muitos casais, dos mais diferentes tipos, realizarem o desejo de ter um filho. Mas, por outro lado, isso não garante a superação das tensões e dos conflitos e nem a suplantação dos diferentes níveis de impotência psíquica que existem em todos nós. Ao contrário, nos obriga a estar cada vez mais atentos a essas dimensões.

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