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Resumo
No presente trabalho busca-se discutir as variáveis envolvidas na compreensão de uma situação clínica extrema, na qual uma adolescente tem seu bebê em segredo e o deixa no lixo do hospital. Pretende-se, com este fragmento clínico, articular as condições psíquicas de atribuição de humanidade ao bebê por sua mãe, as condições sociais nas quais estas se inserem e o lugar do discurso psicanalítico no trabalho clínico com mães e bebês.


Palavras-chave
infanticídio; aborto; psicanálise com mães e bebês; desamparo; cultura.


Autor(es)
Vera Iaconelli
é psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela usp, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e do Fórum do Campo Lacaniano. É diretora do Instituto Gerar e colunista da Folha de S. Paulo. Autora do livro Mal-estar na Maternidade (Annablume, 2015).


Notas

* Trabalho apresentado no III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, Niterói, set. 2008.

1 M. A. P. Motta, Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção.

2 Caso atendido na Clínica Social do Instituto Gerar de Psicologia Perinatal. A paciente foi encaminhada pela tia, que já ouvira falar do serviço de atendimento psicológico oferecido nessa instituição. A jovem chegou à clínica quatro dias após o parto.

3 Nada indica que houvesse falta de informação sobre o desenvolvimento dos bebês, tendo a paciente acompanhado várias gestações na família. Essa ignorância sobre a formação dos bebês pressupõe o retorno das teorias sexuais infantis.

4 A releitura do livro A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, nos foi recomendada por Mario Eduardo Costa Pereira em supervisão, e se mostrou uma indicação inestimável.

5 Não havia qualquer obrigatoriedade de esta mãe vir a se tornar mãe de fato deste bebê, podendo surgir outras soluções, como a entrega aos avós. Consideramos que o grau de ambivalência de nossa paciente em relação a essa gestação deu margem a que a tentativa de aborto fosse, na realidade, a consecução de um parto. Sua gestação foi uma atuação do desejo, comum nas gravidezes de adolescentes, de buscar reconhecimento de que ela havia acedido à condição de mulher – pela capacidade de procriar – superando assim sua própria mãe. Atuação que não sustenta, pois ela mesma não conseguiu se reconhecer tendo um bebê. No entanto, é dessa profunda ambivalência que surge, a posteriori, seu desejo de tornar-se mãe.

6 P. Aulagnier, A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado, p. 146-154.

7 P. Aulagnier, Um intérprete em busca de sentido II, p. 18.

8 P. Aulagnier, op. cit., p. 14.

9 P. Aulagnier, op. cit., p. 17.

10 S. Mijolla-Mellor, “Monta-se uma criança” (grifo nosso).

11 P. Aulagnier, Um intérprete…, p. 13-14 (grifo nosso).

12 P. Aulagnier, op. cit., p. 14 (grifo nosso).

13 P. Aulagnier, op. cit., p. 17 (grifo nosso).

14 A mãe do psicótico, que tem na gestação a ameaça de ruptura de um frágil dique psíquico, não pode se haver plenamente com esta escolha, por sua própria fragilidade e pela necessidade de usar o filho como depositário da sua loucura latente.

15 M. Foucault, História da sexualidade 1: a vontade de saber, p. 147- 158.

16 E. A. C. Coelho et al., “O planejamento familiar no Brasil no contexto das políticas de saúde: determinantes históricos”.

17 M. A. P. Motta, op. cit.

18 Entendemos, portanto, a função materna como função grupal e referida ao grupo de pertinência simbólica do bebê.



Referências bibliográficas

Aulagnier P. (1979). A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago. p. 146-154.

_____. (1990). Um intérprete em busca de sentido II. São Paulo: Escuta, p. 11-33.

Coelho E. A. C. et al. (2000). O planejamento familiar no Brasil no contexto das políticas de saúde: determinantes históricos. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 34, n. 1, p. 37-44, mar.

Foucault M. (1988). História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. p. 147-158.

Lispector, C. (1998). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco.

Mijolla-Mellor, S. (2004). Monta-se uma criança. Revista Psicanálise e Universidade, n. 21, p. 17-29, set.

Motta, M. A. P. (2001). Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção. São Paulo: Cortez.

Winnicott, D. (2000). A preocupação materna primária. In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. p. 399-405.





Abstract
The text discusses an extreme clinical situation, that of a teenager who secretly gives birth to a child and abandons the baby in the hospital garbage bin. There aspects are selected for examination; the psychic conditions under which a mother attributes humanity to her baby, the social conditions in which this process occurs, and the role of psychoanalytical discourse in the clinical work with mothers and babies. Keywords infanticide; abortion; psychoanalysis with mothers and babies; deprivation; culture.


Keywords
infanticide; abortion; psychoanalysis with mothers and babies; deprivation; culture.

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 TEXTO

Do infanticídio à função materna [*]

From infanticide to the mother-function
Vera Iaconelli

Gravidez e maternidade na espécie humana são fatos, a princípio, dissociáveis. Gravidez entendida como evento biológico e maternidade como a construção psíquica que pode ou não estar ligada ao orgânico. É a partir desta não coincidência exata que podemos ter as adoções, nas quais o desejo de ser mãe supera as impossibilidades biológicas, ou a situação inversa, de alguns tipos de abandono motivados pela absoluta falta de investimento psíquico na maternidade [1]. Basta abrirmos o jornal para constatar que nascem mais filhotes humanos do que mães. Joga-se o fruto da concepção no lixo, na lagoa, debaixo da terra, num banheiro público…

Para além das situações em que tudo acaba bem, temos uma frequência alarmante de casos cujo resultado é catastrófico no que tange à relação mulher e filho, com efeitos sobre o desenvolvimento psicossomático da criança, sobre o psiquismo da mãe e com repercussões sociais. Podemos reconhecer estes casos na clínica perinatal ou lidar com seus efeitos na análise de pacientes adultos, por vezes, revelando o aspecto transgeracional neles implicado.

Um caso clínico

Uma jovem que tomou medicação para abortar no sétimo mês da gestação, que teve seu filho no banheiro do hospital e o deixou no lixo, diz: “Fiz um aborto”.

Ela provocou um parto, mas ao ouvi-la [2] entendemos que aqui ela está se referindo a este momento em que o corpo do bebê é apenas uma parte sua da qual ela pode dar cabo, pois não lhe parece ter existência própria. Ela olha o bebê e se espanta que esteja formado, perfeito, grande. Diz que imaginava que os bebês só se formassem após o sétimo mês [3]. Não acredita que esteja vivo, pois não abre os olhos, não infla o peito, o cordão umbilical ainda ligado à placenta. Olha, observa, examina demoradamente o filhote humano que foi capaz de conceber. Deixa-o no lixo, cobre com papel. Vai embora.

Estamos diante de uma ação complexa por parte da moça. Uma adolescente que não desejava ser mãe, mas que, ao mesmo tempo, desejava se impor perante os pais como adulta, engravida em um país onde a interrupção da gravidez é proibida, mas nem por isso deixa de ser realizada de forma alarmantemente perigosa. Uma jovem cujos pais não podem sequer imaginar que a filha não é mais virgem e que demonstra uma profunda ambivalência quanto a saber se seria capaz de fazer um bebê deixa as providências para o aborto se estenderem até se tornar um parto de um bebê capaz de sobreviver fora do útero.

A intervenção foi imediata: família, maternidade, profissionais de saúde todos foram ágeis diante da comoção que se seguiu à descoberta do bebê. Como num conto de Clarice Lispector [4] somos obrigados a ver, junto com este olhar sem anteparo, as entranhas de uma barata ancestral. Para acompanhá-la em seu olhar mortífero somos obrigados a experimentar da massa branca de que é feito o interior do inseto.

O bebê sobreviveu. Foi recebido na uti neonatal com grande empenho da enfermagem. É essa equipe que irá oferecer uma primeira visão humanizante à criança e é dentro desse grupo que a função materna será exercida inicialmente.

Temem deixar o bebê sozinho com a mãe – ela o visita e coleta leite desde o primeiro dia. Cuidam bem essas mães-enfermeiras em sua função de prótese! Temem pelo bebê diante da violência dessa mãe. Só não sabem que não há ódio, nem depressão, nem loucura como veremos mais adiante. Ainda não há nada. E é isso que é assustador. Faz-se necessário conversar com a enfermeira chefe da equipe da uti neonatal da maternidade, antes da intervenção junto à criança, para que possa desabafar sua indignação e descrever exaustivamente a cena da chegada da criança à uti em condições lastimáveis. Ela conta em detalhes como foi difícil limpar o bebê, com sua pele frágil de prematuro de sete meses, dos resíduos do lixo. Nosso trabalho não será muito diferente do dela ao tentarmos separar este bebê da criança-dejeto-lixo com a qual a mãe depara no nascimento.

É preciso tentar assegurar transferencialmente que a suposta loucura da paciente – diagnóstico que o entorno supõe em resposta à angústia de se lidar com tal cena – está sob nosso cuidado, ou seja, que a loucura da mãe está sob nosso controle, de forma que a equipe possa fazer uma aposta nela [5]. Como boas mães salomônicas, as enfermeiras da equipe preferem um bebê inteiro a disputá-lo com aquela que reivindica a maternidade de direito, sem ainda tê-la provado de fato.

Passam a se ocupar solidariamente de ambos, mãe e bebê.

Vamos juntas à maternidade. Desde o nascimento, há seis dias, é a primeira vez que a jovem encontra a filha de olhos abertos pois, apesar de visitá-la diariamente, a criança nunca estava acordada nestes momentos. Sugiro que contemos a ela o que houve. A mãe pede que eu o faça. Não omito nada, da gravidez ao abandono. O bebê chora e se agita, o oxímetro desencaixa, o som do aparelho completa a cena com grande alarido. Digo que ela nasceu antes que sua mãe pudesse vê-la, que o bebê nasceu antes da mãe, mas que agora ambos podem se ver. O bebê dorme.

A jovem irá a júri popular acusada de tentativa de infanticídio. Pode ser presa, perder o poder familiar, pode talvez ser absolvida. Falamos sobre isso na sessão seguinte. Ela reconhece o medo da situação legal, mas reafirmamos a legitimidade da ação penal, com a qual concorda.

Na próxima visita à maternidade contamos diante do bebê que há uma lei acima de nós que não permite que façamos coisas erradas uns com os outros, que sua mãe lhe fez algo terrível e que responderá por isso. O bebê olha cada vez mais atentamente, tem um progresso espantoso, em vinte e cinco dias já estará fora da incubadora. Em mais uma semana mamará no peito. Recusa o leite industrializado. A mãe me conta que as enfermeiras perceberam que o bebê sentiu sua falta e chorou com a sua saída, só se acalmando quando uma atendente parecida com ela se aproximou. Esta atribuição de reconhecimento, de desejos e caprichos ao bebê, esta torcida pelo enamoramento que surge espontaneamente na equipe é a própria atribuição de função materna feita à jovem pelo entorno. Apoiam-na em seus momentos de fraqueza, cansaço e arrependimento. Elogiam sua dedicação. Contêm as recriminações que expressavam inicialmente ao ato da mãe. Em trinta e cinco dias a criança estará na casa com a mãe e os avós, que têm a guarda provisória da criança.

Trabalhamos, antes de tudo, com o estancamento da ferida que se faz no laço social: instituição que acolhe, familiares, amigos, mídia. Neste sentido, tivemos muita sorte: a equipe da maternidade foi exemplar em sua capacidade de absorver a cena traumática que se abateu sobre todos ao receberem o bebê e a mãe. Também os familiares, em seu desespero, buscaram todas as formas legais de manter a bebê como parte integrante da família, lidando com a justiça e procurando o serviço psicológico imediatamente. Sorte em relação à mídia, que pôde ser afastada pela direção do hospital.

Não sabemos a quem a lei outorgará o poder familiar, mas podemos trabalhar com a esperança de que algum dia mãe e filha se olhem como dois seres humanos, talvez, com sorte, se perdoem. Perdão da filha por ter sido vista em sua condição pré-humana e tratada como tal, perdão da mãe por ter que dar conta do desejo imperioso de viver que a filha lhe impôs. Tema sobre o qual conversamos na presença de ambas.

Quando a chefe da enfermagem propõe um nome para a criança, de forma um tanto autoritária, a paciente o recusa, por ser muito parecido com o da sua irmã recém-nascida e escolhe, ela mesma, o nome para a filha. Assim, afirma um processo de emancipação junto à maternidade, de reivindicação de direito junto à filha e de nomeação.

Desde o nascimento, a paciente fala sobre o pai da criança, um homem casado de quem espera o reconhecimento da paternidade da filha. Os avós são contrários a qualquer aproximação, mas respeitam o direito paterno, desde que feito o exame de dna. Diante da tentação de criar a filha como irmãzinha, a paciente impõe a presença do pai legítimo. Este se mostra receptivo a conhecer a filha a quem pretende dar seu sobrenome. Desta forma, a mãe afasta possíveis indícios de uso onipotente da gestação como sendo autoengendrada, institui o reconhecimento da paternidade, revelando a qualidade do recalque em relação às fantasias edípicas (ter um filho com o próprio pai) e marca o corte que afasta a suspeita de um risco de psicose para a filha. A maior preocupação, em termos de prognóstico, tem sido em relação à possibilidade de construção de um contrato narcisista [6] no qual a criança possa se inserir elaborando a questão da origem para além do estigma da criança do lixo. Até o momento, passado um ano e meio, a ligação entre mãe e filha se revela amorosamente investida, com reconhecimento dos papéis de cada uma.

Relação triangular, relação unilateral e relação primordial

O bebê só existe, a princípio, enquanto sentido atribuído. Sem o olhar do outro, é apenas concepto, massa orgânica, subjetividade potencial, ou seja, um ser com competências para estabelecer contato que, quando não encontram resposta, desaparecem rapidamente. Não havendo outro, no sentido de semelhante humano e humanizante, não há como ele aceder à condição de sujeito. Tema repetido à exaustão nos estudos sobre a constituição do sujeito.

Mas qual o fundo sobre o qual deverá incidir a antecipação de sujeito realizada pela mãe/ ambiente? O que se descortina quando esta ação específica não está presente?

Reconhecemos este fundo como um espaço original do inumano, aquém das atribuições maternas, até mesmo das mais patológicas. Algo que antecede a deposição de atributos. Um olhar que não chega a instituir humanidade no bebê e que é capaz de vê-lo como massa orgânica, como pura estrutura biológica, que de fato ele é. Um olhar que lhe recusa a potencialidade e, com isso, impede sua atualização, pois que esta é fruto de uma alucinação antecipatória. Nem antecipação de sujeito, nem atribuição de parte de si mesmo, apenas um olhar para o orgânico, sem anteparo. Nesta condição o bebê pode ser visto como embrião ou recém-nascido, passível de vingar ou perecer, tecido biológico do qual se pode dispor segundo o desejo do sujeito que o gera.

Como vemos tão bem descrito por Aulagnier sobre o impedimento da mãe do psicótico: “Parece existir um tipo de impossibilidade para qualquer representação imaginária da criança que virá: a relação parece dar-se entre a mãe e essa massa no interior de si mesma, uma espécie de enchimento corporal, de órgão acrescentado que, nela e graças a ela, se desenvolve. Poder-se-ia dizer que, nesta primeira etapa, esse tipo de mulher é a única que tem uma relação com a criança real enquanto embrião” [7].

No entanto, a questão de que tratamos no presente trabalho é justamente a da necessidade de se reconhecer que este olhar não é em si patológico, pois não surge apenas na mãe iatrogênica. O olhar primordial, como aqui o denominaremos, pode prevalecer mesmo fora da patologia. Ele será reconhecido como lícito ou ilícito segundo complexas regras sociais que vão mudando ao longo da história e num mesmo período histórico em diferentes contextos culturais e econômicos. Esta faceta não costuma ser contemplada devido ao tênue limite que apresenta com a patologia.

Esta percepção anterior à projeção de um bebê imaginário sobre o bebê real é que permite que uma mulher, com plena consciência e direito, opte por interromper uma gravidez, visto que para ela, naquela gestação específica, não há bebê, só concepto, não importando em que fase gestacional se encontre. É a situação que legitima o infanticídio em algumas culturas indígenas e algumas manipulações embrionárias realizadas pela tecnologia médica, e que é recalcada quando sobre o concepto ou recém-nascido “se despeja a libido materna” [8].

O que está em jogo na relação da mãe do psicótico com seu filho não é apenas a permanência deste olhar primitivo, mas seu uso a serviço da fantasia onipotente e, principalmente, a necessidade de fazer “do corpo da criança o escudo que acolhe e fixa qualquer erupção de um recalcado mal contido” [9].

Apontamos, então, para dois posicionamentos possíveis diante do embrião: vê-lo em sua condição de embrião ou projetar sobre ele algo do psiquismo da mãe. A projeção sobre o bebê é a condição tanto para a constituição do sujeito, quanto para desenvolvimentos patológicos, pois não há garantia de que essa mulher vá desejar este bebê a quem ela reconhece como igual. Neste caso, o bebê não se identifica suficientemente com o bebê imaginário e permanece postergado em sua realização material, uma vez que para o inconsciente a representação dos bebês-fezes é imorredoura. Como nos diz Sophie de Mijolla-Mellor: “Para o inconsciente, ela (a criança) não é uma pessoa potencial, mas já bem real, herdeira dos desejos que datam da infância e portadora do traço daqueles de quem os próprios pais foram objetos em seu tempo e assim por diante, remontando as gerações. Todavia, este espaço potencial reservado, à espera de realização, sofre também uma mutação quando lhe é enfim permitido abraçar a realidade fisiológica de um embrião iniciante. O desejo por um filho, então, à medida que visa também a uma criança real que vai nascer, contém o obscuro saber de que ela será um outro, imprevisível, talvez decepcionante” [10].

Havendo por parte da mulher um olhar humanizante sobre seu filho, podemos distinguir, grosso modo, duas formas básicas de se lidar com a cria humana, cada qual tendo em si mesma um universo a ser explorado.

Na primeira forma, havendo recalque suficientemente bom, mãe e bebê podem partilhar uma existência que vai se desdobrando no sentido da separação e da autonomia, com as diferentes etapas a serem percorridas até que possam entrar em bom acordo mútuo; poderíamos chamar essa forma de uma relação desde sempre triangular. Haverá, portanto, a mãe, o bebê (percebido a cada etapa do desenvolvimento do papel de mãe como um outro singular) e o espaço necessário entre ambos, ocupado pelo pai, pela cultura…, uma vez que a mãe já tem reconhecido em si o terceiro da relação desde antes da concepção. Esta marca da existência do terceiro permite que a mãe suporte a castração vivida por ter de reconhecer, com o nascimento, que o bebê é um outro sujeito inédito. Aulagnier cunha o termo corpo imaginado, para nos falar desta representação que a gestante deposita no embrião:

[…] o início da gravidez coincide com, ou acentua, a instauração de uma relação imaginária na qual o sujeito criança não é representado pelo que é na realidade, um embrião em vias de desenvolvimento, mas por aquilo que chamei alhures de corpo imaginado, ou seja, um corpo já completo e unificado, dotado de todos os atributos necessários para isso. [11]

Por outro lado, temos a relação unilateral, aquela em que o recalque não consegue conter a projeção maciça dos objetos internos da mãe sobre o bebê. Unilateral, pois o jogo de forças psíquicas pende para o lado da mãe que acaba por soterrar o psiquismo do bebê. Neste grupo temos um leque enorme de configurações patológicas, que não serão aqui discriminadas. Uma delas, porém, merece ser mencionada, o sintoma psicossomático, como recurso do bebê para se fazer ouvir, pois este a mais da mãe não deixa espaço para que reivindique sua diferença. Tratase da prevalência do bebê recalcado sobre o bebê real, da prevalência da fantasia fálica de completude sobre o bebê real, que obriga o bebê a buscar saída nas somatizações.

Uma mãe diz: “O que este ‘cara’ quer de mim? Mamar!!! Chega! Eu não o quero.” Para ela existe “um cara”, um alguém na figura do bebê. Uma carga de ódio se desloca para o bebê, mas ainda se supõe que este bebê encarna um outro digno de ser odiado. Alguém que lhe demanda algo que ela não pode atender. Ódio de um objeto interno projetado no bebê. Tanto na relação unilateral como na relação triangular a mãe vê um a mais. Como Aulagnier bem descreve:

A fecundidade dessa imagem (do corpo imaginado) é tal que, nos primeiros tempos da vida, vêmo-la superpor-se à criança: não há necessidade de lembrarmos o tipo de cegueira com a qual toda mulher se inclina sobre seu recémnascido, as semelhanças que descobre nele imediatamente, os traços de caráter que acredita reconhecer nele. [12]

A reflexão sobre o caso da jovem que deixa o bebê no lixo nos leva a descrever a terceira relação, que entendemos como relação com o inumano ou com o humano potencial não realizável, a qual chamamos de relação primordial, caso sobre o qual nos debruçamos aqui e que pode nos abrir um leque surpreendente de derivações quanto aos aspectos psicopatológicos. Surpreendente porque relacionado com um desde sempre lá, que subjaz às outras formas de relação, da mais saudável à mais patológica.

A situação na qual a parturiente olha o bebê em sua forma original, em sua forma inumana, é aquela da qual partem todas as outras situações, das mais normais às mais patológicas, mas que é imediatamente recalcada. Percepção do que está lá para não ser visto, mas que está lá antes de tudo. Este nos parece ser o desamparo anterior a qualquer reconhecimento de que nascemos biologicamente dependentes e frágeis.

Este primeiríssimo olhar, que a mãe adoecida pela preocupação materna primária capitula e recalca, permanece, nestes casos. Este olhar sobre a nossa inumanidade primeira, original, da qual com sorte emergiremos para nos tornarmos um bebê, é o olhar do absoluto desamparo. Desamparo na nossa condição de seres vivos, antes de, uma vez na condição de bebê, experimentarmos que nossa subsistência depende da boa vontade de um outro. Antes disso existe um limbo do qual só a função materna pode nos salvar. Antes do desamparo diante das próprias necessidades a serem satisfeitas, há o desamparo do não reconhecimento como humano. Olhar cuja legitimação depende das deliberações socioculturais.

Entendemos que a preocupação materna primária tem por função, entre outras, mas primordialmente, a partir da regressão e seu caráter alucinatório, obliterar esta percepção. No entanto, este material pode aparecer, paradoxalmente, fora do âmbito da patologia, quando uma mulher decide legitimamente interromper uma gestação que não deseja. De forma semelhante, a violência da cena de tentativa de infanticídio, vista sob a perspectiva da relação primordial, do olhar sobre o inumano, nos remete ao avesso da constituição do olhar parental sobre a cria humana, ou melhor, para o fundo sobre o qual ele se apoia, e nos obriga a refletir sobre a atribuição de sentido ao bebê, que, como toda função da subjetividade está, necessariamente, referida à cultura e à história.

Mas estas relações não são estanques, são passíveis de mudar no sentido do primordial para o triangular, sendo a pré-condição psíquica necessária para que este deslizamento ocorra, a capacidade da mulher para estabelecer uma relação entre embrião/recém-nascido e corpo imaginado e, no momento oportuno, deixar emergir o bebê real. Há uma dança das cadeiras entres estes bebês, que exige considerável capacidade psíquica da mãe para investir, desinvestir e reinvestir sua libido num objeto ora externo, ora interno, mas que nunca deixará de ter uma conexão com investimentos em objetos inconscientes primitivos.

A face mortífera da relação primordial é reconhecível nas mães de psicóticos. Nestes casos, temos uma permanência de um olhar sobre o embrião e, ao mesmo tempo, uma deposição maciça de conteúdos psicóticos latentes da própria mãe sobre a criança. A relação psicotizante descrita por Aulagnier tem este caráter híbrido, pois se compõe do olhar primordial e da deposição da psicose latente da mãe, simultaneamente:

Além do mais, é possível e provável que o filho seja, nesse caso, ao mesmo tempo fator desencadeante de uma brusca descompensação ao nível das defesas […] e, de outro lado, aquilo que lhes permite colmatar esta mesma brecha. […] É certo que ser mãe representa para qualquer mulher uma experiência na qual ela reviverá, do modo mais surpreendente, aquilo que foi para ela sua relação primeira. Não é de se admirar que para esse tipo de mulher, em que essa relação sempre foi profundamente perturbada, a gravidez possa ser causa de um retorno maciço do recalcado, retorno que, se não acaba numa psicose, torna, todavia, psicógena sua relação com a criança. [13]

O limite entre a patologia e a saúde, entretanto, diz respeito também à possibilidade da mãe de reconhecer e formular seu desejo [14] diante da gestação e de reconhecer e se posicionar diante da norma social que legisla sobre como se deve proceder diante do concepto ou do recém- nascido. Diz também respeito ao consenso cultural diante de uma biopolítica [15] além do que simplesmente à subjetividade materna, como se costuma atribuir, e deve-se levar em conta tais fatores sempre que se quiser discutir as relações materno-filiais. Aborto, parto anônimo, infanticídio, manipulação médica de embriões são ações submetidas à lei, mas não são consenso em absoluto, estando em constante discussão no âmbito social, legal e religioso.

Uma vez que as políticas públicas de planejamento familiar são contraditórias e pouco acessíveis [16], que existe uma ampla expectativa social quanto à mulher exercer o papel de mãe ainda hoje, que a entrega em adoção é moralmente condenada [17] e que o aborto, mesmo quando permitido, é fortemente combatido no âmbito social, fica difícil acreditar que toda mulher que leva a gestação à frente o faz por desejo de ser mãe e que possa verdadeiramente identificar-se com este papel.

O reconhecimento na mulher do desejo de não ser mãe, numa dada ocasião, ou de nunca vir a sê-lo, e as possibilidades de dar consequência a este desejo dependem tanto mais da ordem instituída do que de sua subjetividade individual.

A não explicitação desta categoria de relação possível com a reprodução, a saber, gerar um filho não desejado, sem que isso seja tomado como indicador de uma grave patologia aparece como omissão teórica ideologicamente determinada diante do direito da mulher de dispor de seu corpo e ver reconhecido seu desejo, por um lado, e das inibições histórico-sociais que ela encontra para exercê-lo, por outro.

Conclusão

Acreditamos que, hoje, um olhar psicanalítico excessivamente voltado para uma dita clínica de bebês incorre no risco de pensar o bebê sem entorno, psiquicamente autoengendrado, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, teoriza-se à exaustão o lugar atributivo de subjetividade exercido pelos semelhantes.

Neste aspecto, reproduzimos a fala da medicina que prescinde cada vez mais da gestante para a sobrevivência orgânica do feto, tomando para si a função uterina nas utis, assim como nossa legislação pensa o direito à vida do feto no útero como independente do desejo daquela que o gera, bem como muitas religiões pensam o corpo da mulher como receptáculo compulsório da vida do bebê. Também nos arriscamos, como psicanalistas, a perder o foco sobre a função atributiva de sentido pela mulher à existência do bebê. Se uma mãe opta por ter seu bebê em anonimato, como em alguns países, é porque, na nossa cultura, este tipo de arranjo é possível: o estado assume o poder familiar a partir do momento em que a mulher lhe outorga este poder. Já em outra cultura, porém, a resposta a esta mesma situação pode ser o infanticídio, igualmente aceito. O que buscamos enfocar é que a ideia do estatuto do bebê recémnascido é culturalmente determinada e subjetivamente atribuída, variando ao longo da história e do grupo de referência. Sendo assim, quando a psicanálise apregoa uma clínica de mães e bebê visivelmente focada nos bebês, reproduz em seu discurso a ideologia médica atual que tira a mulher do centro da questão da maternidade.

Muitas são as razões para que o contrato narcisista, que pode fornecer condições de pertencimento de uma gestação, não funcione. Para além da subjetividade da mãe temos o seu contexto. Assim como as bonecas russas que têm dentro de si pequenas bonecas umas dentro das outras, assim também o bebê é o elo final de uma cadeia de sobreposições, das quais a mulher é o penúltimo elo, e, se a relação destas peças finais (mãe-bebê) falha, podemos afirmar que a estrutura da qual faz parte também falhou primariamente. Neste sentido pensamos a função materna como grupal [18].

Por isso, a clínica com mães de bebês tem sempre um mais além da subjetividade e da transgeracionalidade, que aponta para as instituições e para a cultura onde está inserida.

É necessário o reconhecimento do amplo espectro na qual se inserem as relações mãe/bebê, tendo sempre em mente se estamos tratando de mães e bebês ou unicamente de mulheres e conceptos. O bebê da fantasia é imorredouro no inconsciente, no entanto, na clínica nem sempre há relação entre estes conteúdos e a materialidade da gestação e do bebê real. Se por um lado tendemos a pensar este desencontro como algo da patologia a ser tratado em psicanálise, por outro temos de reconhecer que é dele que surge a possibilidade de liberdade de escolha da mulher diante da procriação, cujas mazelas, por vezes decorrentes de seu cerceamento legal ou moral, a clínica nos apresenta diariamente.

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