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Resumo
Este artigo procura refletir sobre algumas questões inerentes ao foco presente nas primeiras sessões com crianças vítimas de abuso sexual, quando o objetivo é averiguar a veracidade da situação de violência que traz a criança à psicoterapia. Partindo da clínica com pacientes que passaram por traumas sexuais, o autor discute a posição do psicanalista frente à comunicação da criança e às reações da família ao que é dito.


Palavras-chave
abuso sexual; primeiras sessões; posição do analista.


Autor(es)
Eugênio Canesin Dal Molin
é especialista em Teoria Psicanalítica pelo COGEAE-PUCSP e em Psicoterapia Psicanalítica pela usp, mestrando no IPUSP e aluno do curso Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Trabalha no Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS-III) em Londrina/PR, onde são atendidas crianças e adolescentes vítimas de violência.


Notas

1 W. Gombrowicz, Cosmos, p. 20.

2 Ministério da Previdência e Assistência Social, Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – Diretrizes Gerais: Programa “Sentinela”, p. 4-6.

3 Em 2008 o Programa Sentinela mudou de nome, em Londrina tornouse creas-III (Centro de Referência Especializado da Assistência Social- III), e o público atendido aumentou, passando a abranger crianças e adolescentes vítimas de violência em sentido amplo. O modo de trabalho, porém, ainda segue o descrito na sequência.

4 Artigo 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

5 Uma discussão mais ampla sobre a teoria da sedução e seu abandono pode ser encontrada em E. Canesin Dal Molin, Discussões sobre o trauma entre Freud e Ferenczi: um exercício clínico-teórico, monografia apresentada no curso de especialização em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica no cogeae da pucsp; disponível na biblioteca do cogeae.

6 S. Freud, Heredity and the Aetiology of the Neuroses, p.152.

7 J. M. Masson (ed.), The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1887-1904, p. 264-266.

8 A tradução da carta 69 foi feita aqui seguindo, em primeiro lugar, a tradução do original em alemão realizada por Masson (op. cit., p. 264-265); ainda foram utilizadas as traduções de Monzani (Freud: o movimento de um pensamento, p. 40), a partir do alemão e do inglês; e de Mezan (Freud: a trama dos conceitos…, p. 66), a partir do inglês. Preferi, ainda, cortar o mínimo possível o trecho da carta referente aos motivos do abandono porque acredito que, mantida a integridade dessa passagem, o leitor pode, com mais liberdade, fazer o seu próprio juízo sobre a qualidade desses motivos.

9 L. R. Monzani, op. cit., p. 42

10 S. Freud apud L. R Monzani, op. cit., p. 43. Cito a passagem a partir do texto de Monzani porque suas referências para a utilização da obra foram a Standard Brasileira modificada quando necessário pela sua leitura na Gesammelte Werke, somada à observação da tradução de James Strachey para a Standard Edition.

11 R. Mezan, op. cit., p. 66.

12 S. Freud, The Aetiology of Hysteria, p. 202-203.

13 S. Freud, op. cit., p. 207.

14 J. M. Masson, The Complete Letters…, p. 219.

15 Estes últimos três termos foram traduzidos para o inglês como “capers, somersaults and grimaces”. O primeiro diz respeito a algo perigoso e ilegal, daí a escolha de “ilegalidades”; o segundo, mais complicado, significa um movimento feito no ar em que o sujeito fica com a cabeça na altura dos pés – “piruetas”, por mais estranho que soe, ainda pareceu o termo em português mais apropriado; e o terceiro indica algo que gera nojo – “nojeiras”, por seu caráter mais coloquial, foi o equivalente escolhido em português (A. S. Hornby; S. Wehmeier, Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English).

16 J. M. Masson, op. cit., p. 218.

17 L. R. Mozani, op. cit., p. 43.

18 R. Mezan, op. cit., p. 67.

19 R. Mezan, op. cit., p. 67.

20 Remeto novamente o leitor a E. Canesin Dal Molin, Discussões sobre o trauma…, para maiores informações sobre como Ferenczi chegou às ideias contidas nesta conferência e sobre como ela repercutiu no meio psicanalítico.

21 S. Ferenczi, Confusion of Tongues Between Adults and the Child, p. 156-167.

22 E. Brabant; E. Falzeder (ed.), The Correspondence of Sigmund Freud and Sándor Ferenczi, vol. 3, 1920-1933, p. 442.

23 I. Meyer-Palmedo (org.), Correspondência 1904-1938/Sigmund Freud, Anna Freud, p. 398.

24 S. Ferenczi, op. cit., p. 161.

25 R. U. Cromberg, Cena incestuosa, p. 178.

26 S. Ferenczi, op. cit., p. 157-158.

27 S. Ferenczi, op. cit. p. 163.

28 S. Freud, Beyond the Pleasure Principle, p. 29.

29 S. Freud, Studies in Hysteria, p. 123-124 e p. 133-134.

30 T. Furniss, The Multiprofessional Handbook of Child Sexual Abuse, p. 342-344.

31 T. Furniss, op. cit., p. 344-348, discute aspectos do trabalho terapêutico quando a genitora foi abusada em sua infância. Embora procurem auxílio para seus filhos, na psicoterapia, invariavelmente, seus próprios traumas sexuais entrarão em jogo, o que conduziria à ambivalência em relação ao tratamento da criança.

32 Como o assunto não será tratado aqui, gostaria de remeter o leitor ao texto de Lucía B. Fuks, “Abuso sexual de crianças na família: reflexões psicanalíticas”, em que, dentre outros pontos, é abordada a questão do segredo e das dificuldades na revelação do abuso quanto mais próxima a criança é do agressor.

33 W. R. Bion, Second Thoughts, p. 163.

34 S. Freud, Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy, p. 22-23.

35 Este conceito foi-me apresentado por Renata Udler Cromberg.



Referências bibliográficas

Bion W. R. (2007). Second Thoughts. London: Karnac. Canesin

Dal Molin E. (2009). Discussões sobre o trauma entre Freud e Ferenczi: um exercício clínico-teórico. Monografia de conclusão do curso de Especialização em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica, cogeae – pucsp.

Cromberg R. U. (2004). Cena Incestuosa: Abuso e Violência Sexual. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Ferenczi S. (1932-1933/2000). Confusion of Tongues Between Adults and the Child. In Final Contributions to the Problems and Methods of Psycho-Analysis. London: Karnac.

Freud S.; Breuer J. (1895/2001). Studies in Hysteria. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. London: Vintage Books – The Hogarth Press, vol. ii.

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_____. (1896/2001). Heredity and the Aetiology of the Neuroses. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. London: Vintage Books – The Hogarth Press, vol. iii.

_____. (1909/2001). Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. London: Vintage Books – The Hogarth Press, vol. x.

_____. (1920/2001). Beyond the Pleasure Principle. In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. London: Vintage Books – The Hogarth Press, vol. xviii.

Fuks L. B. (1998). Abuso sexual de crianças na família: reflexões psicanalíticas. Percurso, n. 20. São Paulo, ano x, 1. sem., p. 120-126.

Furniss T. (1995). The Multiprofessional Handbook of Child Sexual Abuse. London: Routledge.

Gombrowicz W. (2007). Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras. Hornby A. S.; Wehmeier S. (ed) (2002). Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English.

Masson J. M. (ed.) (1985). The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1887-1904. Cambridge: Harvard University Press.

Mezan R. (2006). Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva.

Ministério da Previdência e Assistência Social (2001). Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – Diretrizes Gerais: Programa “Sentinela”. Brasília.

Monzani L. R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da unicamp.





Abstract
This paper concentrates on the focus in the first sessions with sexually abused children. The aim of these encounters is to ascertain the reality (or not) of the alleged violence against the child. Taking as a basis his experience in these sitauations, the author discusses the peculiar position of the analyst concerning the patient’s communications and his/her family’s reactions to what is told.


Keywords
sexual abuse; first sessions; position of the analyst.

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 TEXTO

O problema do foco nas primeiras sessões com crianças vítimas de abuso sexual

The problem of focus in the first sessions with sexually abused children
Eugênio Canesin Dal Molin

À guisa de introdução a um termo corrente

“Foco” significa, para a física, qualquer ponto para o qual converge, ou do qual diverge, um feixe de ondas ou de raios. Atentemos ao sentido duplo, que põe ênfase no ponto, mas também traz à baila o movimento. Seu uso corrente também traz a ideia de um ponto para o qual converge algo – a atenção, o olhar –, ou de um ponto do qual esse algo diverge.

O conceito de foco pode parecer estranho à psicanálise, envolver algo avesso a ela: ter um ponto para onde converge a atenção antes de o paciente começar a falar. Mas seria irreal crer que numa sessão analítica a atenção flutue livre de focos, de pontos de fixação, de nós cegos para onde convergem, ou do qual divergem, não só as associações do paciente, mas também a atenção e as associações despertadas no analista.

Procurarei neste texto tratar do problema do foco num tipo particular de trabalho e de sessão, sem me limitar a discutir somente dentro dos limites dessa prática. O problema se coloca porque, aqui e ali, existem pontos para onde converge, ou do qual diverge, a atenção de quem ouve. O escritor polonês Witold Gombrowicz, ao tratar de tema diverso deste a que me dispus a discutir, elabora um problema similar de maneira interessante. Escreve que não é “de espantar: uma exagerada concentração num objeto leva à distração; aquele único objeto encobre todo o resto, ao fixarmos o olhar em um ponto num mapa, sabemos que nos escapam todos os demais pontos” [1].

No entanto, alguns enquadramentos clínicos pedem que deixemos escapar quase todos os demais pontos de um mapa. A ideia de mapa é particularmente feliz para a questão que exemplificarei. Via de regra, as sessões iniciais de uma análise nos apresentam um primeiro esboço do caso, servem como um espaço que dá contornos ao sujeito que chega à clínica. Um primeiro esboço – salientemos – porque ao longo do trabalho o mapa apresentará mais detalhes, ganhará particularidades: ao norte há um rio, a leste uma colina. Por vezes, o trabalho pode focar-se, nesse primeiro momento, em encontrar o ponto mais alto de um dado espaço geográfico. Se formos montanhistas, esse poderá ser o nosso intuito: queremos conhecer o terreno, mas nos interessa, num primeiro estudo, saber se existem ou não montanhas que valem a pena a continuidade do estudo e, posteriormente, da escalada.

Se a imagem cartográfica foi minimamente útil, posso trazê-la às primeiras sessões (ou entrevistas, ou triagem, ou como quer que o leitor prefira chamar esse momento inicial) realizadas em instituições. O trabalho terapêutico institucional que discutiremos aqui é o feito com crianças vítimas de abuso sexual. Vale então uma breve apresentação dos instrumentos – o compasso e a régua – com os quais se realiza e onde se realiza esse trabalho.

Réguas e compassos

No I Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado em 1996, em Estocolmo, o Brasil assumiu o compromisso de construir políticas públicas que garantiriam os direitos de crianças e adolescentes em situações de risco pessoal e social. Entre outras medidas, foi elaborado o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil, em 2000. No ano seguinte, no âmbito da Política de Assistência Social, implantou- se o Programa Sentinela, com o objetivo de prestar atendimento especializado às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, bem como às suas famílias e a adolescentes autores desse tipo de violência [2].

Em Londrina, Paraná, o Programa Sentinela foi implantado em 2002 e naquele mesmo ano recebeu 124 casos de denúncia de abuso sexual. Ou seja, 124 crianças e suas famílias foram à instituição após uma denúncia de que a criança ou o adolescente fora ou estava sendo abusado sexualmente. Isso, obviamente, não significa que os 124 casos realmente apresentavam episódios de abuso sexual. Em vários deles, a denúncia, por vários motivos, estava equivocada. E, em um programa voltado ao atendimento de crianças vítimas de abuso sexual, as que não o foram de fato receberam outros encaminhamentos.

Da mesma maneira, podemos imaginar uma instituição que atenda um tipo específico de pacientes e que por isso precisa, inicialmente, distinguir, entre aqueles que a procuram, os que realmente podem ser atendidos por ela – como um Caps-i(nfantil), por exemplo, que não atenderá adultos. Tem-se, portanto, um primeiro motivo para o ajuste do foco: a atenção converge para o elemento que pode incluir o sujeito na população atendida pela instituição.

No Programa Sentinela de Londrina [3], as intervenções compreendem ações de caráter: a) investigativo (quando há suspeita de abuso deve-se procurar identificar sua veracidade); b) de proteção (sempre que necessário, a criança deve ser encaminhada aos serviços de proteção, de acordo com o art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente [4]); c) preventivo (a fim de que a criança não se exponha a situações onde há risco de abuso); e d) o tratamento psicoterápico propriamente dito. “Propriamente dito” porque nada impede que as outras ações tenham efeito terapêutico. Basta que se pense em uma criança que tem afastado de si o agressor – uma medida de proteção – mas que pode ser em si mesma bastante terapêutica porque traz o fim da situação abusiva. Mesmo quando o agressor é o pai, o fim da situação confusional, que trataremos mais abaixo, permite uma possibilidade de reorganização psíquica para a criança.

O atendimento é gratuito e envolve instâncias legais – que podem realizar as ações de proteção – como o Conselho Tutelar, as delegacias e a Vara da Infância e Juventude. Isso posto, é claro que há uma implicação legal nos casos que o Programa atende, e que se deve comunicar às autoridades responsáveis situações em que a criança encontra-se em risco.

Este é o segundo motivo para o ajuste do foco. Podemos chamá-los, os motivos, de institucionais básicos e sintetizá-los da seguinte forma: o foco nas primeiras sessões é necessário para 1) triar a população que se apresenta para atendimento; e 2) distinguir, naqueles onde a experiência sexual abusiva for descrita ou sinalizada, o que pode ter acontecido, e se existe a necessidade de a criança ser protegida.

Voltemos por um momento à metáfora cartográfica. O foco é necessário porque nos mostra se existem montanhas no terreno, mas também traz consigo alguns problemas. O maior deles é o descrito por Gombrowicz, e posso acrescentarlhe outro, não de menor envergadura. O montanhista, em sua ânsia por montanhas, pode tomar colinas por possibilidades de escalada; ou, no seu receio de uma escalada ruim, tomar um pico por uma elevação sem atrativos. Noutras palavras, e quando o olhar “converge para” ou “diverge do” elemento que deveria ser buscado? E quando o foco, por necessário, é em si mesmo um problema?

Um ponto para onde convergem todos os pacientes [5]

Uma das cartas mais famosas de Freud diz respeito não a uma de suas extraordinárias percepções clínico-teóricas, mas ao abandono de uma delas. Em 21 de setembro de 1897, Freud escreve a Fliess que não acredita mais em sua neurotica, sua teoria das neuroses. Até ali Freud acreditava, com base em suas observações clínicas, suas inferências e sua autoanálise, que todos os neuróticos haviam sido seduzidos na infância. As histéricas haviam tido uma “experiência sexual passiva antes da puberdade” [6], ou seja, haviam sido abusadas por um adulto (o pai, o irmão, o professor, a governanta, etc.) antes da puberdade. E os obsessivos haviam também tido uma experiência de sedução na infância, mas, depois de terem sido abusados, assumiram o papel ativo e repetiram a sedução com outra criança. É essa neurótica, essa teoria da sedução, que Freud abandona na famosa carta a Fliess. Cito a carta de 21/09/1897 no que ela toca os motivos para o abandono da neurótica:

Então vou começar historicamente e dizer-lhe de onde vieram as razões de descrença. Os contínuos desapontamentos em minhas tentativas de trazer uma única análise à conclusão real; a debandada de pessoas que por algum tempo estiveram muito tomadas (pela análise); a ausência do sucesso completo com o qual eu contara; a possibilidade de explicar a mim mesmo os sucessos parciais de outras maneiras, da maneira usual – este foi o primeiro grupo [de motivos]. Depois a surpresa de que, em todos os casos, o pai, sem excluir o meu próprio, deveria ser acusado de perversão – a percepção da inesperada frequência da histeria, com precisamente as mesmas condições prevalecendo em cada, quando, certamente, essa frequência de perversões contra crianças não é muito provável. A (incidência) teria de ser incomensuravelmente mais frequente do que a histeria (resultante) porque a doença, de qualquer forma, acontece somente onde houve uma acumulação de eventos e há um fator contribuinte que enfraquece a defesa. Depois, em terceiro lugar, a compreensão certa de que não há indicações de realidade no inconsciente, de forma que não é possível a distinção entre realidade e ficção investida de afeto (Consequentemente, permaneceria a solução de que a fantasia sexual invariavelmente toma o tema dos pais). Quarto, a consideração de que na mais profunda psicose a memória inconsciente não irrompe, de forma que o segredo das experiências infantis não se mostra nem no mais confuso delírio. […] Me ocorre uma pequena história de minha coleção: “Rebeca, tire seu vestido; você não é mais a noiva” [7]. [8]

Neurotica abandonada. Rebeca nua. Freud estava certo em mudar de ideia, mas alguns de seus motivos me parecem equivocados. Como nos lembra Monzani, “a sedução não é ‘sumariamente despejada’, mas ainda conserva um certo papel etiológico” [9]; e a prova que nos oferece dessa afirmação está na Autobiografia, de 1924:

Eu tinha de fato tropeçado pela primeira vez no complexo de Édipo, que depois iria assumir importância tão esmagadora, mas que eu ainda não reconhecia sob seu disfarce de fantasia. Além disso, a sedução durante a infância retinha certa parcela, embora mais humilde, na etiologia das neuroses. Mas os sedutores vieram a ser, em geral, crianças mais velhas. [10]

Se nos ativermos diretamente aos motivos para o abandono, temos que concordar com Renato Mezan, quando afirma que os argumentos não têm todos o mesmo valor. Para ele, alguns são claramente contraditórios ou se contrapõem a afirmações que o próprio Freud utilizou para defender a teoria da sedução de seus críticos; é o caso do primeiro e do segundo motivos [11]. O desapontamento em trazer as análises a uma conclusão satisfatória implicava, em 1897, a remoção dos sintomas. Como isso não acontecia, a direção do trabalho terapêutico, que Freud estabelecera em 1896 [12], de dirigir a atenção do paciente até o evento traumático anterior à puberdade, poderia ter falhado. E essa falha – que envolveria a permanência dos sintomas – decorreria de um equívoco teórico nada sofisticado: o trauma sexual não estava onde se gostaria que ele estivesse. Ou, nos termos que me propus a discutir, o foco de Freud era um ponto para onde convergiam episódios de sedução.

O segundo argumento, que Freud colocara na boca de seus críticos quando escreveu A Etiologia da Histeria [13], trata de uma questão numérica. Dada a frequência da histeria, existiria uma frequência equivalente de pais ou cuidadores perversos (na correspondência a referência é maior aos pais, nos textos publicados essa referência está mais diluída entre outras pessoas que cuidam da criança). Em primeiro lugar é importante notar o que Freud considera “perverso” nos idos de 1897. Da correspondência com Fliess surgem duas conceituações correlatas: a) perversão no sentido descrito por Krafft-Ebin [14]; e b) “a perversão dos sedutores que, devido à compulsão de repetir o que fizeram em sua juventude, obviamente procuram sua satisfação realizando as mais selvagens ilegalidades, piruetas e nojeiras [15]” [16]. A equação que subjaz a esse argumento é “filha histérica = pai perverso”. Se a equação é tomada como correta, toda a parte da teoria que liga histeria com abuso sexual deve, sem sombra de dúvida, sucumbir; a equivalência não existe. Mas, e aqui reside um ponto sobre o qual infelizmente não nos deteremos, Freud, até onde sabemos, não atendeu os sedutores – o pai de Katharina ou o vendedor referido por Emma, por exemplo – de modo que sua ligação entre abuso sexual de crianças e perversão dos abusadores é deduzida e ignora, entre outros aspectos, a natureza do abuso ou o funcionamento mental observável nos sedutores. Noutras palavras, a perversão do sedutor é inferida do que relata o paciente ou pelo que o próprio Freud pensa acerca desse tipo de comportamento. Um último ponto presente nesse segundo argumento e que implica outro equívoco lógico: se o número de pais perversos não corresponde ao número de histéricas, que opção resta à neurótica? Uma das respostas escolhidas por Freud posteriormente foi a da fantasia histérica de sedução, mas esta não é a única possível e não foi a única considerada. Como defende Monzani, outra, clinicamente coerente, é a do abandono da equação sedução na infância igual a neurose na vida adulta, que Freud também passa a considerar e que envolve uma mudança na fórmula etiológica que se expressa da seguinte forma: “Freud abandona a teoria da sedução, minimiza mas não nega o fato da sedução e aceita o papel preponderante da fantasia na explicação da etiologia dos sintomas” [17].

O terceiro e o quarto argumentos estão estritamente ligados à forma e ao peso dos elementos nesse novo modelo etiológico. Se não podemos distinguir entre o que é verdade e o que é ficção carregada de afeto no inconsciente do paciente, e se as experiências infantis escondidas no inconsciente não se mostram nem nos delírios psicóticos, temos um problema teórico que parecia intransponível.

O contra-argumento inevitável ao quarto motivo que Freud expressa para o abandono da sedução seria que ele implica o próprio abandono da psicanálise, “dado que esta se propunha precisamente a desfazer as resistências para trazer à luz os núcleos patogênicos” [18], “o segredo das experiências infantis”. Mas se o quarto motivo do abandono traz esse contrassenso – como não se “mostra” o núcleo patogênico se é exatamente ele o que se está procurando e o que por vezes se encontra? –, a alternativa é que as cenas não aconteceram ou, melhor dizendo, algumas não aconteceram, foram fantasiadas. O que se prende diretamente ao terceiro motivo apresentado por Freud para o abandono da neurótica: a falta de diferenciação, no inconsciente, entre realidade e ficção investida de afeto. É no “psicológico”, no Projeto, e na ideia de “signo de realidade” (ou “indicação de realidade”, como expresso na carta), que uma possível alternativa poderia ser encontrada:

Sendo função do sistema secundário, encarregado de inibir os processos primários que conduziam à alucinação e ao desprazer, seria radicalmente impossível sua presença no sistema primário, aqui chamado “inconsciente”. Portanto, uma formação inconsciente poderia ser tomada como pertencente à realidade exterior […]. Se o mesmo ocorresse nesse caso, a cena de sedução poderia ter sido produzida pelo paciente e confundida com um evento real. [19]

Fantasia e realidade teriam, no inconsciente, o mesmo peso. É nessa constatação que a teoria da sedução perde seu status. Mais: é a partir desse ponto que a psicanálise pôde desenvolver-se na direção que as ideias de Freud tomaram. É importante salientar, porém, um outro aspecto. As pacientes de Freud eram, em sua maioria, do sexo feminino – como o gênero do artigo expressa – e, entre essas, até onde sabemos, não havia crianças. Podemos imaginar que existam diferenças entre um relato de sedução na infância expresso por uma paciente de vinte anos, que já atravessou a puberdade, e um relato de sedução expresso por uma criança de cinco anos. Nossa imaginação, se nos dermos essa liberdade, não estará longe do que é clinicamente observável.

Noutras palavras, uma coisa é uma paciente adulta relatar ter sido abusada sexualmente, outra coisa é uma criança contar que teve uma experiência sexual e mostrar um conhecimento sexual incomum para crianças de sua idade. Lembremos que, da mesma forma que o foco de Freud, antes de setembro de 1897, estava torcido e procurava episódios de sedução avant le mot, a fecunda ideia da fantasia (de sedução) pôde retorcer em outra direção o ponto, mas mantê-lo “foco”; agora, de onde divergem os episódios reais de sedução, mesmo os relatados por pacientes adultas.

Um texto do qual divergiram analistas [20]

Trinta e cinco anos após a carta a Fliess, um dos seguidores de Freud, Sándor Ferenczi, apresentou, contra a vontade de Freud, um trabalho no décimo segundo Congresso Internacional de Psicanálise intitulado “Confusão de Línguas entre Adultos e a Criança – A linguagem da ternura e a da paixão” [21]. A conferência fora lida para Freud antes de sua apresentação no congresso, no dia dois de setembro de 1932 [22]. A leitura rendeu uma ampla troca de telegramas e ao menos uma carta, a Anna, onde Freud escreve que Ferenczi “fez uma regressão total no que se refere a termos etiológicos nos quais eu acreditava há 35 anos e que abandonei, […] e ele expressou tudo isso quase com as mesmas palavras que eu então” [23]. Caso tenha lido a carta de seu pai antes de ouvir a conferência, Anna deve ter pensado, no mínimo, de que forma Ferenczi reproduziria o que seu pai escrevera há tanto tempo.

Um dos trechos que talvez chamasse a atenção de Anna era:

o trauma, especialmente o trauma sexual, não pode ser valorado alto o suficiente (sic). Mesmo crianças de muito respeitáveis, sinceramente puritanas famílias, são vítimas de real violência ou estupro com muito mais frequência do que alguém ousaria supor. Ou são os pais que tentam encontrar uma gratificação substituta a suas frustrações desse jeito patológico, ou são pessoas que se acreditava confiáveis como parentes (tios, tias, avós), governantas e serviçais, que fazem mau uso da ignorância e da inocência da criança. A explicação imediata – que essas são só fantasias sexuais da criança, um tipo de mentira histérica – infelizmente é invalidada pela quantidade de tais confissões, compreenda-se, de investidas contra crianças cometidas por pacientes atualmente em análise. [24]

Pois bem, observemos o sentido do que acabou de ser dito. Não se trata de uma hipótese e não se trata ainda de qualquer teorização sobre esses abusos, o que temos é uma constatação: crianças são abusadas com mais frequência do que se imagina e isso é confirmado não só pelo que dizem os pacientes que foram abusados, mas também pelos pacientes que relatam em análise os abusos. Para Renata Cromberg, “Poder-se-ia pensar que Ferenczi esqueceu as fantasias sexuais infantis”, mas as confissões em análise que ele cita mostram que não é disso que se trata; “Ou seja, um dos argumentos de Freud para fazer cair sua teoria da sedução, a não quantidade de pais perversos, é derrubado aqui por Ferenczi” [25]. Poderíamos acrescentar que não se trata somente de uma derrubada da equivalência que nunca existiu, mas que Freud citou como um dos motivos para despir Rebeca, e sim da constatação de que seja ou não o pai aquele que abusa, as crianças passam por essas experiências com muito mais frequência do que nós, Freud, ou os analistas que ouviam a conferência gostariam de imaginar.

Tentarei explicar a situação de trauma sexual tal como discutida por Ferenczi com um caso clínico que serve de modelo para inúmeros casos de abuso sexual. Uma menina de quatro anos sempre foi extremamente carinhosa com todos, com seu pai inclusive (essa é a linguagem da ternura). Esse pai, alcoolista e consideravelmente violento, tinha relações sexuais com a esposa a largos intervalos de tempo. Um dia, enquanto a mãe trabalhava, o pai estava desempregado, ele abusa sexualmente da filha. Não a penetra, mas a toca e faz sexo oral nela, e faz com que a filha faça o mesmo com ele (essa é a linguagem da paixão). A situação se repete algumas vezes; depois, por motivos que não cabe tratar aqui, para. O pai assume, então, uma atitude autoritária e moralista com a filha. A criança, agora aos sete ou oito anos, diz à mãe o que papai fez. Conta a seu modo, “deu beijo”, “mexeu”, “fez brincadeiras com o pipi”. A mãe não acredita. Esse momento da mãe não acreditando é, para Ferenczi, a reedição do traumático. Quando, em psicoterapia, não se dá crédito ao que a criança ou o adulto relata sobre suas experiências traumáticas, reedita-se mais uma vez o traumático.

Cito Ferenczi:

os pacientes têm uma refinada sensibilidade aos desejos, tendências, humores, simpatias e antipatias do analista. Ao invés de contradizerem o analista ou acusaremno de erro ou cegueira [surdez, poderíamos dizer], os pacientes identificam-se com ele [analista]. Somente em momentos de excitação histérica […] é que os doentes podem reunir coragem para fazer um protesto. [26]

Ferenczi falará de reação ao abuso não pela defesa – nos moldes em que esta era compreendida – mas pela “ansiosa (sic) identificação e pela introjeção da pessoa que ameaça ou agride” [27]. No caso que utilizamos como exemplo, é o pai que é introjetado. Mas, se atentarmos ao que escreveu o psicanalista húngaro sobre a sensibilidade do paciente a aspectos do analista, a questão ganha complexidade e atravessa os conceitos de transferência e identificação.

Sabemos que a transferência é um modelo de relação não circunscrito à situação psicoterápica. A criança também pode identificar-se com a mãe, que não lhe deu crédito, e, mais tarde, também com o analista. Este último corre o risco de exercer ambas as funções traumáticas: a de agressor (não sexual – espera-se – mas autoritário) e a daquele que não reconhece como real a experiência vivida pela criança. Ou seja, os pacientes que sofreram traumas sexuais identificam-se com aquele que é surdo à sua experiência traumática. Tornam-se, eles mesmos, também surdos e cegos ao que vivenciaram. O que quero dizer é que uma criança pode desacreditar-se vítima de abuso sexual se ninguém nela acreditar. O que, obviamente, pode gerar angústia e confusão profundas, uma nova situação traumática. E fique claro que o sentido de trauma aqui é o psicanalítico e, nesse caso, abarca uma dupla natureza: trauma como “qualquer excitação vinda de fora que é capaz de abrir caminho no escudo protetor” e provocar distúrbio no psiquismo [28]; e trauma como tendo dois momentos, um primeiro, do evento em si, e um posterior, no qual aquele primeiro é significado [29].

Como garantir que a criança será escutada, pelos familiares e pelo psicoterapeuta?

Os limites da convergência e da divergência

Antes, devemos observar dois extremos quanto ao posicionamento da família. O primeiro – de foco para onde converge algo – inclui casos, nos quais gostaríamos de encontrar o caractere da raridade, em que um dos genitores, normalmente a mãe, traz a criança ao atendimento dizendo que sua filha ou seu filho foi abusado quando na verdade não foi. Vários fatores costumam acarretar essa situação. Cabe citá-los: divórcios litigiosos ou não, onde um dos genitores sente-se traído, magoado e/ou com raiva do ex-parceiro (que, então, teria abusado); quando um filho mais velho da família foi vítima real de abuso sexual (o que, é claro, não implicaria que todos seus irmãos também o foram); quando uma criança apresenta comportamento sexualizado dentro de uma família com padrões morais rígidos; quando há muita curiosidade sexual na criança; o efeito da mídia (que, em geral, traz benefícios muito grandes apresentando as situações e aumentando a atenção dos pais); quando um dos genitores foi vítima de abuso; etc. Gostaria de me deter neste último fator, o de quando um dos genitores foi vítima de abuso. Tilman Furniss identificou o que ele chama de “Síndrome de Munchausen por procuração de mães que foram abusadas sexualmente”. Na síndrome de Munchausen, o sujeito simula doenças a fim de receber atendimento, cuidado. Na variante discutida por Furniss, mães que foram abusadas sexualmente na infância trazem seus filhos para cuidado afirmando que eles foram vítimas de abuso quando não foram. É bastante claro, na perspectiva psicanalítica, que essas mães estariam buscando cuidado e reconhecimento para o abuso que elas sofreram. Podemos inferir daí que, em suas infâncias, a situação traumática não foi reconhecida. Estaríamos tratando de uma repetição por projeção ou repetição deslocada [30]. Minha clínica corrobora essa ideia, o que torna duplamente importante saber qual a dinâmica familiar e a história dessa família quanto à sexualidade e à violência. Devemos apontar então que, quando se torna mãe, ou pai, uma criança que foi desacreditada quanto ao seu traumatismo sexual pode tender a repeti-lo, senão colocando o filho em situação de risco, projetando sobre ele suas próprias experiências traumáticas. Embora não existam pesquisas amplas sobre a incidência de abuso sexual em famílias onde um dos genitores foi, ele mesmo, abusado, clinicamente pode-se observar um grande número de famílias em que, após a revelação da experiência sexual da criança, seguem-se narrativas de experiências sexuais abusivas vividas pelos genitores [31].

O segundo extremo – de foco do qual diverge algo – diz respeito à reação da família ao comunicado da criança [32]. A crença de que “as crianças esquecem”, por exemplo, responde por diversas falas de mães que afirmam querer continuar com o parceiro quando este é o agressor; trata-se de um motivo declarado e, é claro, defensivo. A dificuldade clínica é que a estas mães não se pode confirmar ou desacreditar – muitas crianças, é verdade, esquecem o abuso sofrido. Fatores como idade, frequência do abuso e a própria forma de acolhimento da revelação influem no esquecimento ou não, obviamente consciente, da criança. Da mesma forma, é largamente utilizado o argumento de que a criança está fantasiando a situação abusiva. Este tende a ser o ponto de apoio preferencial das famílias que não acolhem comme il fault a comunicação feita pela criança. Não se trata da alternativa mais fácil, longe disso; mas é a que, via de regra, atenua o problema consciente e moral que a família está enfrentando. A questão para o psicoterapeuta é que grande parte dos dados que a criança lhe fornece pode ser também utilizada para a família desacreditá-la na denúncia da violência sexual. Um exemplo: uma criança afirma que fez sexo oral no pai, que este assistia filmes pornográficos em sua presença e que mantinha relações sexuais com a mãe sem muita discrição. A primeira afirmação, tomada em conjunto com as duas seguintes, leva-nos imediatamente a duas suposições: 1) trata-se de uma família com funcionamento incestuoso, e as situações traumáticas por que passou a criança seriam variadas quanto à forma; ou 2) a criança, exposta à sexualidade adulta de forma constante dentro da família, incluiu-se na cena primária embora, de fato, não tenha participado de nenhum ato sexual; imiscuiu-se nele nas suas identificações e na compreensão do que presenciava.

Embora a segunda suposição também envolva o trauma, a indicação da realidade do evento é questionada e a criança é desacreditada. Esse costuma ser o mecanismo defensivo utilizado por grande parte das famílias e implica, na verdade, uma economia de desprazer bastante simples: dos males, os menores. Devemos compreender que a alternativa não é nada agradável, mas costuma manter a duras penas o funcionamento familiar e retirar boa parte da culpa que pesa sobre os ombros dos membros envolvidos, à custa, é claro, de uma melhor resolução para a criança.

A primeira situação tratada envolve uma comunicação por procuração sem a realidade do fato; a segunda, o não acolhimento da comunicação pelo questionamento dessa mesma realidade. Para o esclarecimento de ambas é necessário, além de ouvir a criança, manter a atenção também voltada à família.

Ajustando o foco

Agora podemos voltar à pergunta anterior e reformulá- la: como garantir minimamente que a criança será escutada, pelos familiares e pelo psicoterapeuta, de forma correta, no que a denúncia que a envolve tem de verdadeiro?

Uma tentativa de resposta é que devemos escutar a fala da criança aceitando o postulado de Bion ao tratar do analista: sem memória ou desejo [33]; uma primeira chave para essa escuta. E ainda, somando ao postulado as palavras escritas por Freud já nas primeiras páginas de seu Pequeno Hans, “No momento suspenderemos nosso julgamento e daremos atenção imparcial a tudo que há para ser observado” [34], com uma pequena adaptação, por acréscimo, na segunda oração: “e daremos atenção imparcial a quase tudo que há para ser observado”. Porque, se a máxima, na verdade de Demóstenes, de que “estamos sempre inclinados a acreditar no que desejamos”, for verdadeira, o melhor na situação psicoterápica é que o psicoterapeuta não tenha desejo. E conheça suas próprias inclinações para que não caia em erro ao creditar real uma denúncia descabida, ou desacreditar a priori uma denúncia descabida que seja real. Da mesma maneira, deve, ao ter um foco necessário, ser capaz de discriminar o elemento que poderá incluir ou não a criança na população atendida. Ou seja, ter o foco do montanhista com o mapa na mão, e dar atenção imparcial a quase tudo que há para ser observado, atendo-se aqui e ali às elevações mais promissoras do terreno. Aquilo que reprimimos, social ou pessoalmente, tem nessa escuta um valor inestimável. Abuso sexual contra crianças é mais frequente do que gostaríamos de imaginar e acontece em todas as classes socioeconômicas, no que faço eco a Ferenczi e sua conferência de 1932. É preciso, e aqui está a segunda chave para essa escuta, ter um lugar psíquico que permita a formação de uma fantasia clínica [35] coerente, independente de qual linha psicanalítica se segue. Em outras palavras, quem escuta a denúncia ou quem escuta a criança deve ser capaz de imaginar que aquela criança tenha estado naquela situação. Não necessariamente de uma forma gráfica, mas numa ordem de eventos que estabeleça em primeiro lugar uma aceitação da possibilidade do fato; e, em segundo lugar, uma narrativa que dê nome e lugar aos eventos.

Assim podemos entender por que o traumatismo facilmente é reeditado quando a criança fala à mãe ou a outras pessoas, ou quando apresenta sinais, no caso de crianças muito pequenas, de sua angústia. Ali, onde estão os olhos e os ouvidos, não há lugar para o que fala aquela criança. Da mesma maneira podemos entender o outro extremo, onde quase tudo é percebido como abusivo (como nas mães com Munchausen). Ali o lugar psíquico está grande demais, está atraindo coisas que não lhe correspondem. Seria o mesmo dizer: quando, através de seus óculos, tudo o que você vê é histeria, ou todos são obsessivos, talvez tenha chegado a hora de limpar as lentes. Isso significa que quem lida com pacientes que podem ter passado por situações traumáticas deve ter um lugar em seu psiquismo para a possibilidade daquilo que lhe dizem, e deve procurar, com alguma disposição, entender por que não é capaz de criá-los. Aqui, na terminologia psicanalítica, os nós cegos de quem escuta podem reeditar o trauma. O jogo presente na escuta, que é desencadeado pelo foco inerente a essas primeiras sessões, envolve uma necessária honestidade quanto à fala da criança, que deve passar pela disposição de desenvolver em si um lugar psíquico em que o abuso pode ter acontecido, não com todas as crianças, obviamente, mas com aquelas que o acusam – através da fala, ou através de sinais; e desse lugar assegurar a comunicação ou não do evento traumático inclusive, quando necessário, à família.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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