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Resumo
Resenha de Luciana Pires, Do silêncio ao eco. Autismo e clínica psicanalítica, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2007, 120 p.


Autor(es)
Izelinda Garcia de Barros
é psicanalista. Membro efetivo, analista de crianças e analista didata da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo).


Notas

1 M. Klein, Amor, culpa e reparação, p. 260.

2 A. Alvarez, Companhia viva.

3 M. M. Almeida, “La investidura deseante del analista frente a movimientos de alejamiento y aproximación en el trabajo con los trastornos autísticos: Impasses y matices”. Revista Latinoamericana de Psicanálise 2008; 8:169-84.

4 F. Tustin, Autismo e psicose infantil.

5 British Journal of Psychotherapy, vol.16, n. 4.

6 L. C. Figueiredo, Do silêncio ao eco, Apresentação.

7 a 1976 de uma supervisão por escrito enviada para a resenhista.

8 b 1976 de uma supervisão por escrito enviada para a resenhista.


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 LEITURA

Autismo e psicanálise: uma contradição?

Autism and Psychoanalysis: a contradiction?
Izelinda Garcia de Barros

Se o tratamento psicanalítico se desenvolve dentro da relação entre analista e analisando, será mesmo possível usar seus recursos para o atendimento clínico do autismo, exemplo máximo de evitação de contacto?

É o amadurecimento decorrente da própria longevidade da relação de oitenta anos de convívio ininterrupto dos psicanalistas de crianças com o espectro autístico que nos oferece um caminho para pensar sobre esse paradoxo.

Desde a apresentação do caso Dick, por Melanie Klein, em 1930, repete-se, na sala de análise, uma situação limite entre o reconhecimento, por parte do analista, de demandas sutilíssimas e idiossincrásicas de busca de objeto por parte da criança autista e a insuficiência de equipamento técnico para ir ao encontro desses fiapos de vida psíquica, oferecendo-lhes a hospitalidade de uma outra mente psicanaliticamente instruída para que possam ter uma nova oportunidade de restaurar ou mesmo formar seu tecido psíquico.

No trabalho com Dick, Klein explica que: “Em geral não interpreto o material até ele ter sido expresso em várias representações. Contudo, em um caso em que a capacidade de representação era quase inexistente, fui obrigada a basear minhas interpretações no meu conhecimento geral…” [1].

A partir dessa fonte de inspiração, incorporada e alargada por tantas gerações de talentosos psicanalistas, tratando e investigando o autismo, surgiu um movimento espiral em que ajustes técnicos levam a novas descobertas clínicas, que, por sua vez, vão demandar ampliações da técnica.

Um exemplo dessa expansão nos levará hoje em dia a incluir a acima citada estratégia empregada por Klein na abordagem do pequeno Dick dentro de conceitos como “reclamação” de Alvarez [2] , e “investimento desejante do analista” [3]. Conceitos que “[…] coincidem na atribuição de um lugar de maior presença e robustez ao analista, de uma atitude mais ativa […]. Atribuir sentido, supor um sujeito, antecipar linguagem” (p. 54) como aliás fazemos todos nós diante das manifestações de um bebê.

Foi Tustin [4], outra pioneira na psicanálise do autismo, quem apontou, já em seus primeiros registros, o valor da convergência entre as hipóteses geradas na clínica psicanalítica e os dados obtidos por outras ciências da mente que igualmente investigam os primórdios da delicada tessitura comunicativa que se estabelece na díade mãe-bebê.

Criou-se assim uma corrente de pensamento psicanalítico sobre autismo informada pelos conhecimentos vindos da psicologia do desenvolvimento, da neuroembriologia e da etologia.

Melhor instrumentados teórica e tecnicamente, muitos psicanalistas vêm se dedicando a trabalhar com crianças autistas que, no passado, devido à extrema inacessibilidade, não se enquadravam nas possibilidades de ajuda psicanalítica.

No presente volume, Do silêncio ao eco, Luciana Pires apoia-se na vasta bibliografia disponível para levar adiante a pesquisa sobre a abordagem psicanalítica da criança autista.

Pode-se dizer que a pergunta como se dá o contato com a criança autista? Será o fio condutor de seu discurso. Para esta análise a autora circunscreve seu campo de investigação em torno de dois polos: a clínica da reclamação (com os autistas inacessíveis) e a clínica da ecolalia com aquelas crianças, que, tendo sido autistas, trazem como marca pós-autista o fenômeno da ecolalia, que será examinado aqui a partir do seu sentido médico original, isto é, a repetição mecânica de palavras ou frases recolhidas no ambiente.

A inacessibilidade é a forma extrema de evitação de contacto, da qual decorre a tríade primária que qualifica, na primeira infância, os distúrbios do espectro autístico: dificuldades de desenvolvimento nas áreas de interação social, da comunicação e das atividades simbólicas do brincar. São classificadas como autistas inacessíveis aquelas crianças que, diferentemente de uma oposição ativa a estabelecer relações afetivas, parecem passivamente mergulhadas em profundo estado de alheamento e desconexão social.

Quanto à ecolalia, a autora defende e justifica a tese de que, sendo um dos recursos de autoestimulação que substituem e impedem o contacto com o analista, pode indicar também a presença de uma brecha na carapaça autística autoengendrada, sinalizando movimentos de identificação adesiva, que, compreendidos e acolhidos pelo terapeuta, abrem caminho para a constituição ou reparação da pele psíquica, ponto de partida para trocas projetivas comunicativas que conduzem, em última instância, ao estabelecimento da alteridade e da plena inserção social dessas crianças na comunidade humana.

Assim entendida, a ecolalia passa a ser observada não só como a cristalização de um dano, mas uma porta de entrada para a platitude do mundo autístico.

Na introdução de seu livro, Luciana Pires explicita: “Afirmamos a possibilidade da clínica com crianças autistas. E essa afirmação decorre de nossa implicação nesse campo clínico” (p. 15). Sua trajetória profissional justifica essa escolha categórica.

De fato, abundante ilustração clínica compõe a urdidura que sustentará a trama teórica e técnica que vai sendo tecida ao longo de todo o texto. Sabemos de seu envolvimento progressivo com o assunto ao longo de quase dez anos, desde sua atividade na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, passando pelo exercício de acompanhante terapêutico escolar, psicoterapeuta, orientadora em escola especializada. Dedica-se atualmente ao atendimento em consultório particular.

Como parte de sua formação na Tavistock Clinic em Londres, escreveu a monografia The inevitability of communication – questions raised by the work with pre-verbal autistic and mentally delayed patients, premiada pelo British Journal of Psychotherapy como a melhor monografia do Reino Unido em 1999, na área de psicoterapia clínica [5].

Este trabalho foi o ponto de partida para sua tese de mestrado, que recebeu “a mais entusiasmada aprovação da banca examinadora” [6] na Universidade de São Paulo em 2007 e deu origem ao presente volume.

Como já enfatizado, nesta obra, a clínica ancora e conduz discussões teóricas e técnicas entre diferentes escolas atuais do pensamento psicanalítico sobre autismo. A este diálogo intrapsicanalítico soma-se também a contribuição de hipóteses geradas pelos recursos investigativos próprios da psicologia do desenvolvimento, da neuroembriologia e da etologia.

No primeiro capítulo, baseado na monografia acima citada, tece um diálogo entre as pesquisas realizadas nessas outras áreas de competência com os conhecimentos psicanalíticos em torno da existência de um aparato comunicativo inato nos bebês, aparato que depende da presença de um objeto que atribui sentido às suas manifestações, modula estímulos internos e externos e também convoca o bebê à interação.

Em outras palavras, já em 1976, Tustin, uma das mais criativas pensadoras psicanalíticas sobre o autismo, ilustrava em supervisões seu ponto de vista de que uma trágica disjunção entre o bebê e seus objetos primários está no cerne da síndrome autista. Dizia: “estas crianças não fizeram a transferência primária para seus pais; cabe ao analista oferecer-se como objeto adequado para esta experiência inaugural, e então transferi-la para os pais” [7].

Nesta linha de pensamento, Luciana Pires concorda que as crianças autistas inacessíveis sofreram graves interferências no desenvolvimento da relação com esses objetos estimulantes no decurso do seu crescimento, mas que, ainda que de modo muito peculiar, mantêm algum interesse pelo ambiente humano que as cerca. Valendo-se de raciocínios provenientes da leitura de vários autores, constroi um modelo da microscopia das interações na sala de análise, quando o analista pode “oferecer-se como objeto adequado para esta experiência inaugural” [8].

Já no segundo capítulo, “Acerca da inacessibilidade”, relembra o fracasso da aplicação da técnica do jogo, referida por Klein na descrição de seu trabalho com Dick, primeiro atendimento psicanalítico a uma criança com o quadro de autismo infantil precoce.

Ao longo de anos o exercício clínico mostrou que, de fato, os extratos da mente ativos na constelação autística pertencem a uma área de experiência aquém daquelas equacionadas pela teoria psicanalítica clássica e demandam recursos técnicos sob medida, por assim dizer, para reconhecer e reforçar os frágeis intentos comunicativos das crianças autistas e reclamá-los com firme delicadeza quando são substituídos pelo afastamento. Entre um extremo e outro, é preciso levar em conta também a necessidade natural da alternância sadia entre “estar em contato” e “recuperar-se do contacto”, movimento reconhecido como característica natural dos turnos dialógicos.

O sucesso em atender essa exigência depende da capacidade do analista para proceder ao exame minucioso de suas intensas reações afetivas face à ausência, no autismo, da “atmosfera de comunicabilidade dos primeiros tempos” e o contínuo confronto com a irredutibilidade das manobras de evitação de contacto.

Para os que vivenciam ou vivenciaram essa experiência na sala de análise, a leitura desse capítulo atualiza memórias de grande sofrimento, seja pela experiência de sentir negada sua existência, seja pela identificação com o desamparo superlativo do seu pequeno paciente.

E no seu último capítulo, “Diálogos com o campo psicanalítico”, a autora preocupa-se em apresentar a clínica específica do autismo aos colegas que praticam a clínica psicanalítica em sua maior amplitude. Conclui que “o autismo pede a construção de novos paradigmas e tem um efeito renovador da clínica e da prática psicanalítica. A clínica do autismo trabalha não apenas com o que é da ordem dos fenômenos narcísicos, pré-edípicos, pré-triangulares, como também com o que é ainda anterior, o que é bidimensional” (p. 109).

Ao terminar enfatizo, ao lado do valor científico do texto, suas qualidades literárias, que o levaram a ser finalista do prêmio Jabuti de 2008 na categoria de Melhor Livro de Educação, Psicologia e Psicanálise.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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