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Resumo
Resenha de Decio Gurfinkel, Sonhar, dormir, psicanalisar: viagens ao informe, São Paulo, Escuta Fapesp, 2008, 336 p.


Autor(es)
Mara Caffé
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise desse mesmo Instituto, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, autora dos livros Psicanálise e Direito: a escuta analítica e a função normativa jurídica, e Crítica à normalização da Psicanálise.

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 LEITURA

Sonhar depois de Freud

[Sonhar, dormir, psicanalisar: viagens ao informe]


Dreaming after Freud
Mara Caffé

Resenha de Decio Gurfinkel, Sonhar, dormir, psicanalisar: viagens ao informe, São Paulo, Escuta Fapesp, 2008, 336 p.

No livro Sonhar, dormir, psicanalisar: viagens ao informe, de Decio Gurfinkel, o método psicanalítico é apresentado de forma primorosa. Não há, porém, um capítulo reservado ao assunto, ou mesmo tematizações formais extensas sobre ele. O método psicanalítico é transmitido no modo da escrita. Assim, junto das reflexões teóricas sobre a metapsicologia dos sonhos e as questões clínicas referentes, há outra forma discursiva que atravessa o livro, uma espécie de prosa, um diário de trabalho. Nesse plano, Decio nos remete às suas experiências pessoais, às imagens mobilizadas a partir de obras literárias, mitológicas, filosóficas, bem como ao cinema, aos jogos eletrônicos, à música popular brasileira, às conversas com os filhos e aos próprios sonhos. Todas essas experiências carregam, em parte, o diálogo singular que o autor estabelece com o tema dos sonhos, de onde quer que ele se faça: a partir dos estudos psicanalíticos, do trabalho clínico e da própria vida.

A presença declarada de diversas fontes de pesquisa produz o efeito de um pensamento que se retira e retorna, simultaneamente, ao campo teórico, configurando uma profusão de ideias que, no entanto, não dispersa o tema da função onírica. Em meio a casos e "causos", Decio mantém o rumo. A impressão é de que o livro fala da mesma coisa do começo ao fim, passando por muitas coisas. Eis a presença do método psicanalítico no ato mesmo da escrita, deixando-se compor com pensamentos estruturados mais ao modo dos processos psíquicos primários, servindo-se diretamente da subjetivação que acompanha/engendra os estudos, deixando-se inspirar pelas produções do inconsciente. Pode-se dizer que Decio sonha a escrita do livro e escreve o sonho; escreve um diário de bordo a partir de suas viagens ao informe e às formas conceituais e clínicas, prosseguindo as "conversas de sonhos" entre os psicanalistas. Entro na roda com o meu diário de leitura.

Uma das principais teses do livro diz respeito ao seguinte: a função onírica e a função do analista são homólogas, possuem os mesmos elementos instituintes, ainda que estruturados em condições diferentes. Pode-se dizer que uma (in)forma a outra na construção, sob transferência, de uma experiência do informe, experiência crucial da análise. Esta ideia chega a sua máxima consequência na postulação do suposto-sonhar do analista, condição instrumental indispensável ao ato analítico. Vamos, agora, às origens desse enunciado, percorrendo alguns eixos centrais do pensamento de Decio. No caminho, o que se tece é uma concepção ampliada do sonhar.

Área transicional

O conceito de área transicional, formulado por Winnicott, ocupa uma posição central na compreensão de Decio sobre os sonhos. O autor afirma, com outros psicanalistas, que esse conceito viabiliza uma reinterpretação da tópica psíquica elaborada por Freud, bem como de suas postulações acerca do objeto. Decio desenvolve suas ideias, acompanhado de Winnicott, Green, Abraham, Ferenczi, Fédida, Pontalis, Marty, Kaës, Bollas, entre outros. Abre espaço, também, aos trabalhos de psicanalistas brasileiros como Tales Ab' Sáber, Janete Frochtengarten, Renata Cromberg, Maria Laurinda Souza, Gilberto Safra, Noemi Kon, Renato Mezan, Flávio Ferraz, Luis Carlos Menezes e demais autores. Relacionando suas fontes bibliográficas com originalidade e desenvoltura, em um texto claro e direto, Decio se alinha às concepções teóricas que fazem da noção de área transicional um dispositivo interpretante da obra freudiana. Acompanhemos um fio do seu raciocínio.

A área transicional é uma área intermediária entre a realidade interna do sujeito e a realidade externa do mundo, e se constitui no brincar criativo, na linguagem e nas trocas culturais compartilhadas. É nela que realizamos a passagem fundamental da relação inicial fusional com a mãe para a condição de sujeitos desejantes no mundo. Essa área não define propriamente um espaço delimitado, a sua existência se faz na propriedade mesma da transitividade. Portanto, nela afirmam-se tanto a separação como a fusão, tanto a ruptura como a continuidade. Do mesmo modo, os objetos transicionais, ainda que possam assumir formas concretas, são antes de mais nada o próprio transporte entre diferentes experiências do sujeito. Esse trânsito produz um senso de continuidade na e da existência, e é no senso dessa continuidade que se pode viver a variedade e a heterogeneidade das experiências, bem como o sentimento e o reconhecimento de si. Quando a função transitiva se perde, não é mais possível o jogo de ir e vir no campo das vivências, o que determina uma tendência a fragmentação e imobilidade psíquicas.

No que se refere às condições do adormecimento, entre os inúmeros fenômenos transicionais citados por Decio, encontra-se o sobressalto, movimento que marca o despertar do sono. Segundo o autor, os sobressaltos são "exceções à regra" da imobilidade característica desse estado. "O sobressalto marca os ‘umbrais simbólicos' entre estes dois universos da experiência - sono e vigília - que diferem em sua natureza, e cuja heterogeneidade deve ser conservada" (p. 266). Um contraponto negativo do sobressalto, por exemplo, é o sonambulismo, onde falha o processo transicional entre sono e vigília, o que os coloca como estados indiferentes.

Pois bem. Decio reforça a ideia de que os conceitos de área/objeto transicionais oferecem desdobramentos de espaços e tempos à tópica psíquica freudiana, tornando visíveis outras regiões da subjetividade humana, promovendo novos desenhos aos limites inicialmente formulados entre a realidade interior e a realidade exterior, entre os campos do eu e do outro, do psíquico e do somático. Nessa perspectiva, os sonhos não se referem apenas ou dominantemente aos registros representacionais do aparelho psíquico, mantendo relações mais identificáveis com os processos somáticos, ligando-se ao pré­ reflexivo e ao pré­ subjetivo (tendência já esboçada nos textos freudianos de 1920). Com as categorias do intermediário e do negativo, a produção onírica é pensada como produto/produtora do espaço potencial.

Desse modo, Decio acentua o sonho como função e não como objeto acabado que toma a forma de uma narrativa; destaca a importância do sono na constituição da função onírica; dá visibilidade às diversas finalidades do sonho, visto não apenas ou sempre como realização de desejo, mas também como atividade simbolizante que produz transitividade entre as experiências, fonte de criatividade, gestão de novas temporalidades e espacialidades para as experiências, dispositivo de comunicação entre sujeitos. Sonhar é instituir e manter uma terceira área da experiência - um espaço potencial da cultura, onde estabelecemos as trocas compartilhadas.

Uma vez consideradas as positividades acima referidas, é possível indagar os limites dos conceitos de área/objeto/fenômeno transicionais. Parece haver neles o anseio e uma afirmação categórica pelo fio da continuidade na existência do sujeito, de tal modo que o seu negativo poderia constituir uma espécie de "horror" à descontinuidade. Será que, em condições não patológicas, a percepção da diferença e da heterogeneidade das experiências realiza-se sempre sob o fundo de uma continuidade garantida pelos fenômenos transicionais? A crítica de Decio quanto à noção freudiana da pulsão de morte incidiria aí, justamente, no seu aspecto de potência disruptiva que produz "pura" descontinuidade, função que seria também estruturante da vida? Essas questões se dirigem aos limites dos conceitos em pauta, procurando pensá­ los numa região de fronteira. O livro de Decio nos dá ocasião para isso, uma vez que oferece apresentações claras e detalhadas sobre as categorias do intermediário.

O estudo do sono


Decio apresenta uma minuciosa investigação sobre o sono, mobilizando uma rica bibliografia, referida não apenas ao campo da Psicanálise. O autor nos mostra que o estudo do sono ilumina particularmente o funcionamento do eu, as disposições da libido nos estados de vigília e de repouso, bem como as ansiedades típicas que marcam essas passagens. Assim, no estado do sono, há um apagamento dos contornos do eu e dos objetos, o que define um estado de não integração, um estado informe. Além disso, a retirada da libido objetal característica do sono implica a experiência de perda do objeto, o que suscita angústias depressivas e, em decorrência, o estabelecimento, pelo eu, de medidas de proteção, que tomam a forma dos rituais de adormecimento. Esses rituais têm a finalidade de elaborar o luto instaurado na situação do sono, e podem variar entre as formas patológicas e as não patológicas.

Sobre isso, gostaria de assinalar uma das originalidades do livro de Decio, a discussão que propõe sobre os mecanismos obsessivos no campo do sono-sonho. A neurose obsessiva oferece um inventário de recursos na lida com as perdas, esclarecendo a formação dos "totens e tabus" nos rituais de passagem. Decio entrevê nos mecanismos obsessivos o engenho de capacidades fundamentais à atividade onírica, esclarecendo, nesse campo, os efeitos de uma obsessividade instrumental - universal e não patológica.

Seguindo o pensamento de Winnicott, o autor afirma que no sono-sonho há, também, a mobilização de uma ilusão, propiciada pelo espaço transicional onde se aloja o sonho, ilusão que confere presença simbólica ao objeto primário, refazendo o holding materno. É no seio dessa ilusão que se realiza a experiência de não integração, a experiência do informe e da "solidão essencial" (estado primário do ser, onde se está só, no máximo da dependência), o que potencializa a criatividade e confere um sentido renovado ao viver.

Com essas considerações, Decio enfatiza a concepção de que o objeto-sonho não é o único elemento da função onírica, e que ele faz parte do contexto ampliado dos processos do sono, onde ganham relevo os temas do narcisismo primário e do corpo. Tal estratégia permite pensar o sonho no contexto integrado do psicossoma. O curioso é que a distinção e a relação mútuas entre sono-sonho também nos permitem apreender a função onírica fora do sono, pensá­ la no estado de vigília, ou no plano das relações sociais, ou ainda no plano transferencial da clínica. O autor reflete sobre cada uma destas situações, com sensibilidade e fundamentação teórica. Uma terceira consequência em se estudar o sono junto do sonho é a abertura estratégica para considerar a gestualidade do sonho em contraste com a imobilidade do sono.

O gesto e a ação


Decio confere grande destaque à noção de gesto, formulada por Winnicott, entendendo que a suspensão do movimento no estado do sono deixaria entrever, justamente, os mecanismos da gestualidade. Retomando a origem desse conceito, o autor esclarece que a motilidade tem uma importância para Winnicott tão grande quanto a noção de pulsão para Freud. No início da vida,

a motilidade logo se torna agressividade primária - ainda não associada à destrutividade ou ao ódio -, mas para tanto necessita de um anteparo, oposição ou obstáculo: a corporeidade de um objeto que contenha a ação motora e não permita que ela caia no vazio, conferindo-lhe ao mesmo tempo o caráter de gesto (p. 224).

Deste modo, o gesto é ação simbólica instituída na corporeidade, na experiência sensório-motora primária vivida com a mãe-ambiente. Decio vê na experiência do sonhar a marca por excelência da gestualidade. "Sonhar é movimento: movimento do desejo, gestualidade do si-mesmo" (p. 233).

O autor constata que a suspensão da motilidade durante o sono não é absoluta, procedendo a uma investigação minuciosa sobre as formas de atos presentes no sono-sonho. Dentre elas, cita, por exemplo, os espasmos motores que indicam a queda no sono e os sobressaltos que são típicos do despertar. Ambos são movimentos que se constituem como fenômenos intermediários entre o sono e a vigília, estando, por isso, na categoria do gesto, e não da ação-descarga, desprovida de qualquer sentido simbólico. Quando falham os recursos transicionais, outros movimentos podem tomar a cena do sono, como, por exemplo, os sonilóquios, o sonambulismo e o terror noturno, onde a gestualidade é substituída por uma passagem ao ato.

Com essas considerações, Decio trabalha o que poderíamos chamar de uma "tópica motora", identificando campos distintos do agir. Tal estudo revela-se de grande utilidade clínica, ampliando os recursos de observação às situações em que a pulsão se expressa nas formas da repetição compulsiva.

Por outro lado, podemos levantar uma questão quanto à constante oposição, pelo autor, entre o ato de pura descarga - referido à compulsão a repetição e identificado, dominantemente, às patologias do agir - e o gesto espontâneo, visto como ação "... a um só tempo motora, corporal e simbólica... " (p. 225). Considerando o texto "Totem e tabu", de Freud, podemos pensar uma outra categoria, a dos atos instituintes que não se qualificam como gestos, propriamente. Postulando o assassinato do pai da horda como um ato fundador da cultura, Freud encerra o texto com a máxima - "no princípio foi Ato". Em sua anterioridade radical, o ato originário se acha fora do sentido simbólico, dando-lhe justamente o ensejo, instituindo-se, então, o registro temporal do a posteriori. Entretanto, com sua máxima, Freud destaca: é o assassinato que funda os desejos incestuosos e parricidas como tais, e não o contrário. Ao tomarmos toda força instituinte na qualidade de gesto, não estaríamos procedendo a uma "colonização simbólica" irrestrita dessas forças? O que nos leva, novamente, a indagar a posição de Decio quanto à noção freudiana da pulsão de morte...

O colapso do sonhar


Decio propõe o termo "colapso do sonhar" para os casos de falhas da função onírica, conforme as descrições de vários psicanalistas que operam com as patologias do agir e do negativo. Propõe, também, a categoria de sono branco (lembrando o conceito de psicose branca, de André Green), que se refere a um sono sem sonhos, em oposição à categoria de sono pleno, onde a função onírica se acha preservada. Decio sugere o modelo da depressão para entender o sono branco e o sono pleno.

No polo do branco, incluo a " ‘depressão essencial' (Marty), as ‘depressões esquizoides' "(Winnicott), os "estados deprimidos" (Fédida) e o "complexo da mãe morta" (Green) (p. 207).

No caso da depressão essencial, por exemplo:

Trata-se de uma depressão sem objeto ou, em uma perspectiva mais ampla, de uma "crise sem ruído" [...] Nela, encontramos [...] um desaparecimento da libido, tanto objetal quanto narcísica - sem qualquer contrapartida: não se observam sintomas "positivos" expressivos de conflitos psíquicos de tipo neurótico ou psicótico, não há queixas, não há emoção (p. 207).

Outro exemplo refere-se à depressão esquizoide, descrita por Winnicott, que consiste em

uma falha estrutural na organização do Eu [...] (marcada por) [...] ameaças de desintegração, cisões, despersonalização, sentimentos de irrealidade e de falta de contato com a realidade interna, e pela presença de defesas psicóticas (p. 208).

De outro lado, para abordar o sono pleno, Decio considera a noção de depressividade, apoiado no conceito de posição depressiva, de Melanie Klein, e nos estudos de Pierre Fédida. A depressividade, como recurso psíquico essencial, possibilita um modo de viver as intensas ambivalências afetivas sem romper o espaço psíquico que as contém. Constitui, assim, um elemento fundamental à produção onírica, permitindo o trabalho de luto e a construção do espaço potencial do sonho.

No relato de suas experiências clínicas, Decio articula o modo pelo qual uma teoria ampliada do sonhar se coloca, ao mesmo tempo, como referência metapsicológica, instrumento diagnóstico e guia para o trabalho da análise. Dentre os exemplos, temos o caso de S., que apresentava sonambulismo e adicção de álcool. Descrevendo a evolução da transferência, Decio mostra como o sonambulismo passou a ser recriado em ato nas sessões, inclusive no modo de a paciente ocupar o divã: sentada, ela ficava a meio caminho da análise, como nas situações do sonambulismo noturno, em que se abria

[...] uma possibilidade absolutamente sinistra e terrorífica: um dormir que não é bem um dormir, um estar acordado que não é bem estar acordado, um sonho que não é um sonho - o pseudo-sonho de um agir sem gesto (p. 278).

Do mesmo modo, a paciente relatava um apagamento drástico da memória relativa aos momentos em que estava alcoolizada. Tanto nesse estado como no sonambulismo, havia a

...persistência de uma inconsciência [...] evitando tanto a atividade perceptiva da vigília quanto a do sonho. A perceptividade que é então ativada é absolutamente operatória, sendo a sua finalidade a pura ação motora [...] (p. 273).

Decio conclui que a recusa de S. em deitar no divã era o sinal de uma privação psíquica importante, e não um fenômeno clássico da resistência neurótica. Nesse sentido, não havia gestualidade, mesmo que sintomática, no agir de S., mas a execução de uma ação operatória, indicativa de um colapso na função onírica. Vale acompanhar o desenvolvimento do caso, onde vemos o aparecimento embrionário de um sonhar verdadeiro!

O suposto-sonhar


Nessa perspectiva, o trabalho analítico tem como uma finalidade a construção ou a reconstrução da função onírica, o que possibilita a transformação do sono branco em sono pleno, do fantasiar (como posição defensiva empobrecedora, conforme Winnicott) em sonhar, capacitando o sujeito para uma viagem ao informe. Para isso, o analisando deve contar com o apoio do sonhar do analista. Em uma contribuição teórica bastante original, Decio propõe dar a esse "apoio" o estatuto de um conceito, introduzindo, assim, o que denomina o suposto-sonhar do analista. Tal conceito designa a função que cumpre o próprio sonhar do analista na construção de um espaço transferencial onde se faça possível uma experimentação do informe, um espaço potencial de abertura e experimentação do verdadeiro self, viabilizando a função onírica no terreno da própria análise, operando com o sonhar sob transferência.

O que se objetiva não é apenas o acesso às mensagens e sentidos que um sonho comporta, à sua função semântica, mas fundamentalmente o reconhecimento de sua função estética. Decio considera que, em todo sonhar verdadeiro,

A lógica espaço-temporal (da consciência) é quebrada e reconfigurada segundo uma intenção puramente expressiva, e não por uma necessidade de "localização" do Eu no mundo. O rompimento com a ordem das "coisas práticas" é comum ao gesto e ao sonho: não se pode avaliá­ los por sua eficácia, e sim por seu alcance" (p. 305).

Entender o sonho é tão importante quanto reconhecê­ lo na sua dimensão poética, expressiva, gestual. Com isso, o autor enfatiza uma concepção do trabalho analítico em que a função estética se acha no mesmo patamar de importância que a produção de um saber de si. Em decorrência, Decio concebe a análise como "[...] espaço de teatralização expressiva do desejo, de representação do pulsional e de gestualidade do si-mesmo" (p. 159).

Dentre os vários recursos do analista à apreciação estética do sonhar, o autor apresenta o seu próprio caminho na contemplação das produções coletivas da cultura, formulando belíssimas considerações a respeito dos mitos, dos contos de fada, da música, das artes visuais - em especial do cinema. Aí, os processos psíquicos secundários se conectam permanentemente com as formas do pensamento primitivo, com a magia, a onipotência e a ilusão, no âmbito das atividades partilhadas socialmente. No decorrer do livro, vemos que o contato estreito com essas áreas constitui fonte de sensibilidade à escuta do analista.

Por fim, Decio considera que a dificuldade para o estabelecimento da função onírica pode se colocar do lado do analista. Em um dos seus atendimentos clínicos (p. 317), referido inicialmente ao colapso do sonhar, o autor apresenta as situações que lhe possibilitaram uma nova percepção sobre a analisanda, o que abriu caminho à função onírica no campo da transferência. O autor indaga:

Não será um "diagnóstico" sobre a incapacidade de sonhar do outro, em certos casos, um preconceito, uma visão estreita ou - pior - uma falta de imaginação daquele que olha? (p. 321).

E prossegue, tecendo considerações interessantes sobre as relações entre psicanalisar e imaginar.

Em seu modo singular de apresentar a posição do analista, Decio traduz, no campo da Psicanálise, as palavras do escritor japonês Haruki Murakami (em "Kafka à beira mar"): "Nossa responsabilidade começa no âmbito da imaginação...".


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