EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
lista de debates

Autor(es)
Ana Gebrim Gebrim
é socióloga; mestre em Sociologia Clínica e Psicossociologia pela Université Paris Diderot – Paris 7; doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo; em formação no curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Edson Luiz André de Sousa
é psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS. Professor do PPG Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS.

Jean-Pierre Pinel Pinel
Jean-Pierre Pinel é psicanalista, analista de grupos e de instituições e professor emérito de Psicopatologia Social Clínica na Universidade Sorbonne Paris Nord||- UTRPP, UR 4403. É presidente da Association Européenne Transition.

Luciana Lafraia Lafraia
Luciana Lafraia é psicanalista, doutoranda no Laboratório de Psicologia da Universidade Franche-Comté e no Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP. Membro do LiPSiC (Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea, IPUSP/PUC-SP) e do Cligiap (Grupo de Trabalho Clínica Psicanalítica de Grupos e Instituições, CNPq/LiPSiC).

lista de debates
 DEBATE

Vamos falar de fascismo

Let's talk about fascism?
Ana Gebrim Gebrim
Edson Luiz André de Sousa
Jean-Pierre Pinel Pinel
Luciana Lafraia Lafraia

A invasão bélica de Putin sobre o território soberano da Ucrânia, aventado como um movimento legítimo de restauração de uma antiga identidade russa há muito perdida, reanimou fantasmas que, de fato, jamais nos deixaram. As identidades nacionais e o sentimento nacionalista, corporificados com horror no nazifascismo do século XX, retornam agora sob novas bandeiras de regimes autoritários, totalitários, autocratas e de ditaduras farsescas. Já o alvo não é novo. Atacada, à esquerda e à direita, por destruir culturas locais, a globalização e suas questões mundiais são o centro da mira de governantes que tentam, à força e desespero, recuperar prestígio e ideários moribundos.

As guerras ocidentais que eclodiram no século XX e as que voltam ou continuam no século XXI são em sua maioria emolduradas por uma espécie de linguagem comum, que podemos chamar, de modo genérico, de cultura fascista. Se os Estados Modernos que se estabeleceram nos séculos anteriores geraram nacionalismos e totalitarismos em nome de raças e identidades unívocas, quase sem margem para as alteridades, as trocas entre Estados e instituições mundiais no pós-Segunda Guerra produziram um movimento de globalização que abalou esses Estados-Nações. Assistimos a um mundo que vai se abrindo globalmente, suas populações mudando de configuração, ameaçando os contornos identitários nacionais e trazendo, com isso, um retorno dos nacionalismos fascistas.

A população da Europa, dentre a de outros países, vem envelhecendo irremediavelmente. Cálculos demográficos apontam que certos países não teriam como regenerar sua população a não ser com a presença de jovens imigrantes. Com isso, sua cultura começa a ser abalada pela presença desses estrangeiros, que possivelmente a dominarão ao longo desse século. Como contraponto a esse movimento, o modo fascista de ser||- uma farsa identitária espalhafatosa e retrógrada||- tende a reaparecer, talvez motivado por medos infundados, seja pelas transformações das culturas e identidades ou pelo receio, inerente a todos e a toda cultura, em desaparecer ou se modificar. Mas o que é o fascismo atual, como ele tem se reproduzido em nossos hábitos individuais e costumes comuns?

A seção Debate da Revista Percurso convida nossos autores a pensar sobre essa cultura fascista, em como ela se alimenta da atual conjuntura e reintrojeta suas ideologias num modo de ser, pensar e estar no mundo.

Ana Gebrim
Fragmentos de um diário ou notas sobre as políticas de inviabilização da vida em solo europeu

Paris, em um final de outono. Hoje conheci Camará, um jovem vindo da Guiné que permaneceu por três dias no Centro de acolhida para migrantes recém-chegados, no norte de Paris. Conversamos no contexto de um translado1 para outra cidade, bem cedo em uma manhã muito fria já de quase inverno. Camará estava há três meses em Paris e em todo esse tempo ele havia ficado na rua, nos acampamentos improvisados e permanentemente desmobilizados nas calçadas parisienses. Na Guiné, seu apelido era Rivaldo, como o jogador de futebol brasileiro dos anos 1990; achando graça de eu ser brasileira, ele se aproximou para contar mais de si. Camará só tinha uma jaqueta e uma pequena mochila com todos seus pertences e, nas mãos, uma pasta com todos seus papéis. Sempre os sem-papéis com suas pilhas de papéis. Ali, de onde falávamos, ele estava esperando um ônibus junto a outras dezenas de pessoas sem ter a menor ideia de para qual lugar da França estava sendo levado. Até subir no ônibus, depois de ter seu nome chamado, Camará não sabia para onde iria. Recebia as orientações humanitárias como ordens. Seguia as instruções, essas mesmas que tendem a tornar o provisório, permanente. Depois que o ônibus saiu, perguntei a um funcionário local e descobri que o ônibus levava Camará para Marseille. Ele está sendo levado em direção de onde veio, pensei. Provavelmente nunca mais terei nenhuma notícia dele. Penso também no périplo de ida, e depois a volta para o mesmo lugar, um Sísifo exausto. A razão humanitária exaure as vidas em esperas intermináveis, filas, recusas, contêineres e, assim, as inviabiliza convertendo a exceção em regra.

Depois de três meses nas ruas de Paris, Camará só havia podido passar três dias no centro||- ou seria no Campo? Antes de viver na rua||- onde conta ter sido agredido por moradores de rua que tentavam roubá-lo||- ele esteve um ano no Marrocos, lugar em que viveu condições de trabalho análogas à escravidão até conseguir juntar algum dinheiro para pagar a travessia. Desde uma praia do Marrocos, às 4h da manhã, Camará embarcou em um pequeno bote com capacidade para cinquenta pessoas, mas onde viajaram mais de noventa. Superlotado e sem um piloto que conhecesse de navegação, o barco se perdeu no Mediterrâneo e ficou mais de dois dias perdido e à deriva em alto mar. Camará conta que algumas pessoas se desesperaram e pensaram em se jogar, até que uma grande embarcação de alguma organização humanitária os encontrou e foram todos resgatados. Foi daí que ele chegou à Espanha e, de lá, veio de ônibus até Paris. Como essa história tenho ouvido muitas outras. Relatos de solidão e desamparo. Figuras do trauma e desespero. Relatos das travessias nos mares e no deserto, relatos dos abusos e explorações na Líbia e no Marrocos, na Hungria, na Itália, na Grécia, na França. Percursos de muita violência.

Em Paris, vejo centenas, ou seriam milhares, dessas pessoas que chegam com suas mochilas nas costas, também os sacos de dormir (objeto de valor nesse contexto) e seus smartphones||- os telefones parecem ser tanto o meio de registro, compartilhamento e testemunho da experiência, como a possibilidade de fazer contato com os que ficaram e se referenciar nos novos espaços, item indispensável, e que, no entanto, causam certa confusão às populações locais insatisfeitas com as presenças que julgam indesejáveis, e vem aí um objeto de luxo que não deveria pertencer àqueles reduzidos só à condição de necessidade. Smartphones nesse contexto parecem figurar na complexa confluência entre objeto de necessidade e de desejo que incide como os próprios deslocamentos.

Em uma noite fria, também nas calçadas parisienses, desta vez em uma fila para receber uma bebida quente de alguma organização humanitária, uma jovem eritreia me disse algo como: "não consigo nem contar o que se passou comigo na Líbia tamanho o absurdo que se passa por lá, depois disso nunca mais voltarei a ser a mesma". Os sudaneses e eritreus relatam com frequência seu percurso de deslocamento passando por esse trajeto. É extremamente árduo e muito longo. De seus países, as pessoas contam viajar em caminhões superlotados que atravessam todo o deserto do Saara. Hoje o deserto é considerado o maior cemitério a céu aberto, mais até que o Mediterrâneo. No cálculo do transporte de caminhão já se estima quantos morrerão. Os que sobrevivem||- por sorte ou pelo quê? (pergunta que sempre vai insistir, como culpa e como enigma) - veem seus companheiros morrendo, de sede, de fome, e sendo deixados no deserto.

Após a travessia de semanas, chega-se principalmente à Líbia. Um novo capítulo. Pessoas escravizadas, violadas, extirpadas, gente convertida em coisa. Dos que conseguem sobreviver e insistir com seu projeto revolucionário da pulsão anarquista, uma nova travessia: a de barco pelo Mediterrâneo. Pequenas embarcações precárias, o mesmo cálculo dos que devem ficar pelo caminho. Há que se contar com a sorte? Contar com o resgate humanitário incerto? Na melhor das hipóteses, aporta-se em uma praia grega ou italiana. De lá, encarceramento, controle, digitais tomadas, violência policial.

Com sorte, mais uma vez, alguns saem depois de dias ou semanas ou meses. Uma nova travessia: as fronteiras físicas. Leste europeu. Violência policial, frio, fome, barreiras, muros, cercas elétricas, interdições de circulação. Alguns logram chegar a Paris, depois de muito caminhar. Algumas vezes, o destino sonhado, o grande El Dorado: Londres. Nova travessia: Calais e o Canal da Mancha. Nas grandes capitais europeias, os recém-chegados encontram um novo tipo de violência: a da ostentação da riqueza, das noites passadas nas barracas em acampamentos urbanos, da polícia que rouba seus pertences a cada noite, os jatos de água no inverno, a hostilização dos residentes europeus, o frio, a instrumentalização humanitária, a espera sem fim, a impossibilidade de voltar. E Camará, recém-chegado a Paris, depois de três dias dormindo sob um teto, é forçado a voltar pelo trajeto de onde veio, e sem saber, parte rumo a Marseille. Essas, sim, me parecem ser as migrações forçadas.

A natureza com que essas políticas migratórias europeias estão se constituindo tem marcado profundamente toda a trajetória dos exilados que conseguem se deslocar. Tudo isso me faz pensar nos exilados como sujeitos que, através de seus corpos, e reduzidos a seus corpos, desafiam sua própria sorte, e que diante da solidão e do desamparo se arriscam no limite da morte para não morrer no destino que lhes foi previamente oferecido. Insistem com suas presenças furando uma lógica que sistematicamente emprega recursos para que desapareçam. Insistem tal como um sintoma. Insistem com seus corpos que se fazem notar pelas lógicas invisibilizantes, com suas mochilas nas costas e seus smartphones. Nesse sentido, os percursos de deslocamento e a chegada aos países de acolhimento vêm marcar um segundo tempo de violência no significado de ser exilado na Europa: de um lado os fatores que impeliram à migração de seus países de origem, de outro os longos percursos e a chegada aos países europeus.

Discursos marcados pelo intricamento das políticas do muro, da indiferença e da necropolítica, os relatos e encontros com os exilados nas ruas de Paris trazem rostos, nomes e histórias das trajetórias vividas amplamente pelas populações que tentam chegar aos países mais ricos do globo. A miséria humana cruzou as fronteiras marítimas e veio desvelar nas capitais ricas e desenvolvidas o avesso de seu próprio funcionamento. A situação catastrófica dos exilados nas ruas de Paris parece funcionar como uma fotografia do fenômeno pós-colonial, da exploração dos países mais pobres e do racismo. A partir do relato de profundo desamparo e desespero dos exilados recém-chegados, vemos a política sobre os corpos que não têm valor e são tratados não só na lógica do deixar morrer, mas deliberadamente||- através das externalizações das fronteiras, das barreiras que não findam e de outras políticas de exceção||- do fazer morrer desses mesmos corpos-restos. No entanto, na mesma medida em que essa presença tem efeito de denúncia de um funcionamento político da Europa com os outros países, também é prova da insistência e resistência de vidas que se fazem existir para além da exploração e das políticas de aniquilamento.

Edson Luiz André de Sousa
Quebrar os espelhos do fascismo

A identidade é um constructo psicopolítico que em geral mantém coeso um corpo
social que perdeu seu senso de solida­riedade. A identidade afirma a si mesma pela exclusão e agressão.

[Franco Berardi]


Serhiy Zhadan é um poeta e tradutor ucraniano e anota em alguns poemas imagens das feridas de uma guerra cruel que abala, mais uma vez, os princípios mais elementares do direito de comunidades poderem viver pacificamente com suas diferenças. Escreve ele em um de seus poemas:


A bomba caiu entre eles||-

naquela margem do rio

mais perto de casa.

A lua apareceu entre nuvens,

ouviu a melodia dos insetos.

Um médico calmo e sonolento

carregou os corpos em um caminhão militar.


Vemos nestas guerras o regurgitar de discursos nacionalistas e identitários que buscam afirmar um lugar de existência na eliminação dos diferentes, na intolerância e no ódio. Nesta lógica do um como marca de um traço compartilhado à força, a vida parece estar congelada em formas estáticas muitas vezes nostálgicas de um lugar ideal que já não existe mais. Vivem, portanto, de uma imagem de "bafo do porão", como nomeou Ernst Bloch. São esses nacionalismos extremos que deram lugar ao fascismo, construído sempre dentro do espectro de uma necropolítica. Penso aqui em necropolítica pois esta mantém como princípio eliminar todo o desigual, um desprezo pela democracia, elogio à violência e adesão inflamada ao conservadorismo e a paralisia do mundo congelado em formas estáticas. É evidente que dentro desse espectro os bacilos do racismo proliferam de forma assustadora.

Sabemos bem que vida é movimento, e é essa metamorfose infinita que redesenha espaços, tempos, memórias, passados e futuros. Lembro-me de um trabalho da Bienal de São Paulo de 2015 que trazia uma imagem preciosa para esta reflexão. O artista e arquiteto japonês Yukinori Yanagi concebeu a "Bandeira Mundial da Fazenda das Formigas", um trabalho composto de inúmeras bandeiras nacionais construídas com grãos coloridos e ligadas por um circuito de tubos plásticos que abriam caminho para um movimento incessante de formigas. As formigas iam, pouco a pouco, transportando esses grãos de um lado para outro, diluindo a forma das bandeiras e assim redesenhando metaforicamente as identidades nacionais. O que aparentemente poderia parecer só uma destruição, na verdade, era a força de vida das migrações e o lugar do estrangeiro como alimento fundamental no espírito de determinada comunidade. As políticas de identidade tendem a se afirmar pela exclusão de tudo aquilo que venha fazer sombra a sua imagem. É por essa razão que confrontar os fascismos implica abrir espaços para uma política de desidentificação. A psicanalista eslovena Jelica Sumic desenvolve amplamente esse tema em um ensaio propondo que "uma política de ‘desidentificação' só pode encontrar seu lugar a partir de uma falha, de uma incompletude do para todos"2. Franco Berardi desenvolve seu pensamento nessa mesma via lembrando que "somente pela desidentificação é que uma comunidade não agressiva poderá surgir. Uma sociedade não autoritária não pode ter como sustentação uma comunidade do ser, apenas uma comunidade do vir a ser..."3.

Nunca foi tão crucial começar a quebrar espelhos e assim restaurar outros olhares para o mundo que não sejam mera reprodução da imagem dos iguais. Esse desafio é crucial nas micropolíticas, pois é nelas que vemos surgir algumas possibilidades de rompimento com as lógicas de poder que buscam o ar das totalidades e dos absolutos. Michelangelo Pistoleto, artista da arte povera, quebrava em suas performances grandes espelhos, mostrando que as opacidades criadas nos buracos dos vidros quebrados podiam abrir espaços de novas imagens. São essas opacidades que podem possibilitar novas respirações nos monolitos identitários, os quais vociferam sempre o mesmo slogan celebrando servilmente seus mitos.

Os fascismos, como sabemos, se alimentam de uma paralisia da linguagem que perde sua função de equivocidade quando a comunicação se institui na repetição vazia de clichês e slogans. Vemos ali uma lógica de poder que ao enunciar algo determina exatamente o que deve ser entendido em seu enunciado. Abole assim a função da leitura e sua liberdade de interpretação. O combate ao fascismo se inicia sempre no plano da linguagem, pois é desmontando os circuitos dos absolutos e das totalidades que abriremos espaços para novos significantes. Como lembrou Glauber Rocha, sem linguagem nova, não há realidade nova.

Jean-Pierre Pinel e Luciana Lafraia
Fascismo: a realização coletiva de um fantasma unário ou a tentação da exclusão do negativo

Umberto Eco (2017) definiu o que ele designou como fascismo eterno ou Ur-Fascismo identificando quatorze critérios que regem a organização desse sistema ideológico. Atemo-nos a sete deles, que constituem seus atributos essenciais:


culto à tradição e rejeição do progresso proveniente do espírito das Luzes e da ciência;

culto da ação pela ação e rejeição da cultura e do espírito crítico;

culto do consenso e rejeição da diversidade e da diferença;

culto à massa e rejeição das elites, tidas como corrompidas e ilegítimas (de acordo com a região e o momento histórico, as elites variam: elite intelectual, classe política etc.);

culto à unidade nacional e rejeição dos estrangeiros, das minorias, dos vulneráveis, sempre suspeitos de complôs ou parasitismos, inimigos da população, dos "cidadãos";

culto à potência em seus variados registros, em especial no sexual, e desprezo pelas mulheres e pelas condutas não heterossexuais;

enfim, edificação de uma Novilíngua (Orwell, 1949), caracterizada por pobreza sintáxica e lexical, e direcionada à rejeição da complexidade e de todo pensamento crítico.


Tal conjunto forma uma ideologia radical (Kaës, 2016)4, com aparente lógica interna e organizada pelo extremismo, pelo sistematismo e pela recusa absoluta da alteridade e da nuança. Cada atributo do Ur-fascismo é associado a um negativo, totalmente recusado, que justifica mentiras, manipulações, violência e aterrorização dos indivíduos, grupos e instituições.

O conceito de negativo tem conhecido um considerável desenvolvimento na teoria psicanalítica contemporânea. Já em 1989, J. Guillaumin identificou três de seus aspectos: a ausência de representação ou de representabilidade; o destino infeliz ou nocivo do funcionamento psíquico (como as depressões ou as destrutividades); e enfim a falha e a falta, em seus sentidos ontológico e lógico. Embora esses três aspectos sejam pertinentes para pensarmos o fascismo, esperamos abordar aqui o negativo que tende a ser eliminado pelo fascismo: o negativo em sua condição de avesso silencioso necessariamente presente na constituição e na sustentação de todo tipo de vínculo e de conjunto plurissubjetivo, como também do pensamento.

Assim, são atacadas pelo fascismo as formações de fundo, silenciosas, invisíveis (os espaços deixados vagos pelos andaimes não mais necessários), como os pactos denegativos (alianças inconscientes descritas por Kaës, 2014) e o que podemos pensar como estruturas enquadrantes (Green, 1974) dos diferentes espaços psíquicos (dos sujeitos, dos vínculos e dos conjuntos). Parece-nos objeto de um ódio feroz tudo o que sustenta a brecha, o silêncio e o intermediário, tudo o que permite a circulação dos afetos e do pensamento, tudo o que autoriza a mobilidade e os espaços de repouso, as zonas de sombra e de segredo. Tudo aquilo, enfim, que possibilita a criatividade e permite sonhar5.

Outros tipos de alianças inconscientes, produtoras de outras modalidades de negativo, apoiam a cultura fascista. Longe de sustentarem espaços de brecha, elas produzem uma recusa em comum [un déni en commune], pactos narcísicos, alianças inconscientes alienantes (Kaës, 2014) que operam com a clivagem, a recusa [déni], a fetichização, a idealização, a repetição e o encerramento. Nessas configurações, trata-se, ao contrário, de apagar toda brecha, todo espaço livre, de produzir uma sutura cerrada. A Novilíngua e o terror são destinados a suturar cada um ao conjunto, a destituir o terceiro interno que constitui a linguagem, a destruir a alteridade inerente à possibilidade de "nos falarmos". A montagem fascista visa a interditar toda intimidade, todo espaço interno privado, isto é, a destruir o espaço do negativo. Nesses mundos, nenhum espaço, nenhum segredo: reinam a sutura e a transparência total. Nada do silêncio disponível ao novo, ao desconhecido, ao informe, ao que vier (ou não). Em seu lugar, um silêncio que cala, satura, encerra. Percebemos aqui a afinidade entre o fascismo e aquilo que um de nós designou como ideologia da transparência (Pinel, 2008), cujo Ideal é a extinção do que constitui a substância do sujeito: sua capacidade de preservar um espaço para o íntimo e o secreto de sua verdade.

Mas... e os aspectos subjetivos mobilizados por essa ideologia? Como podemos compreender as fontes de sua difusão e seu domínio sobre os sujeitos e os conjuntos intersubjetivos (famílias, coletivos, instituições...)?

Sugerimos a hipótese de que a retórica fascista resulta de uma atadura entre os três registros da subjetividade (do sujeito singular, intersubjetivo e sociocultural) constituída a partir de um fantasma unário e onipotente, que opera sobre os três umbigos do inconsciente: o corpo, o grupo e a linguagem. Fantasma que porta a promessa de restabelecer uma continuidade narcísica perdida, de garantir uma coerência total entre o sujeito, o grupo e a cultura, de preencher todas as lacunas entre eles.

Simultaneamente, ele permite projetar as angústias esquizoparanoides e depressivas, designando o outro, o estrangeiro, o diferente como causa dos conflitos de cada um, das perturbações do mundo e das crises institucionais, políticas e culturais. A atadura entre os diferentes registros permite ainda inverter a nostalgia melancólica (Pinel, 2015)6, acenando com o retorno às origens míticas, com o reencontro de uma Idade de Ouro que o líder fascista se encarregará de reconstituir. Enfim, o fantasma unário veicula um Ideal arcaico de pureza que une de forma cerrada os três registros mencionados acima: o eu-prazer purificado, os ideais coletivos de pureza do povo e, enfim, a produção de um revisionismo que desembaraça a história de todo traço negativo, suscetível de mobilizar culpa ou vergonha pessoais, institucionais ou culturais.

Embora essa montagem possa seduzir cada um de nós, e especialmente os sujeitos e conjuntos confrontados cronicamente à ausência de respondedor (Kaës, 2012) institucional ou social, ela tende a capturar os sujeitos cuja economia psíquica é regida pelo tudo-junto-agora [le tout tout de suite, tout le temps, tous ensemble], de sujeitos dotados de um Supereu arcaico que, longe de conter e de transformar as pulsões, ao contrário, os impele ao ato, à ação, ao agir.

A conjunção desses diferentes elementos forma agrupamentos que se assemelham a clãs, bandos, quiçá gangues. Os coletivos assim constituídos se formam a partir de um tipo de vínculo que pode ser qualificado de incestuoso mafioso [incestuel mafieux] (Pinel, 2014). Cada membro é diretamente ligado e identificado ao líder, à sua potência, a seu gozo e à sua ausência de limites. O líder encarna a promessa de onipotência e de continuidade narcísica, e conforta assim os fantasmas inconscientes que mobilizaram cada um à crença e à adesão ao fascismo. Uma tripla adesividade pessoal||- ao chefe, ao grupo e à ideologia||- permite que cada adepto possa ser conduzido a cometer o pior sem experimentar responsabilidade, culpa ou vergonha.

1Translado é o nome dos deslocamentos diários de migran

2J. Sumic, Política e a psicanálise||- do não todo ao para todos,

33FBerardi, Asfixia||- capitalismo financeiro e a insurreição da

4René Kaës distingue dois tipos de ideologia: de

5Deve-se mencionar aqui o papel essencial desse negativo, de

6A nostalgia melancólica foi definida por J.-P. Pi



topovoltar ao topolista de debatestopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados