EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
lista das entrevistas

Autor(es)
Paulo Endo

lista das entrevistas
 ENTREVISTA

Violência e delicadeza

Violence and delicacy
Paulo Endo

PERCURSO Gostaríamos que nos contasse de seu percurso de estudo e formação e como se interessou pela psicanálise, especialmente pela articulação entre psicanálise e política, e pelos temas da violência e do traumático.

PAULO ENDO O tema da política, para mim, é muito anterior à minha chegada na psicanálise. Ela remonta a trabalhos que fiz em educação popular quando era adolescente e depois atravessou minha vida universitária. Quando entrei na universidade, na PUC-SP - estamos falando da década de 1980, quando a ditadura civil-militar estava em seus estertores -, criamos um grupo de educação popular que trabalhou vários anos na periferia sul da cidade de São Paulo. Foi um grupo extraordinário! Muitos jovens, de várias universidades, que queriam atuar politicamente com mais liberdade. Durante cinco anos trabalhamos junto à população pobre e miserável do extremo sul. Fiz grandes amigas e amigos, tive aprendizados inesquecíveis. Foram experiências que marcaram profundamente minha formação pessoal e intelectual, e o que eu viria a fazer depois.


PERCURSO Como esse grupo se juntou?

ENDO Eu tinha uma relação com alguns trabalhos feitos em torno da Teologia da Libertação, que realizava muitas ações nas periferias. Uma das pessoas ligadas à Teologia da Libertação era um professor da PUC, Padre Alberto Abib Andery. Alberto nos colocou em contato com uma congregação de irmãs Carmelitas, que eram muito ativistas. Criamos um grupo de jovens vindos da PUC, da USP, da UNIP, de várias universidades diferentes. Estudantes de arquitetura, artes plásticas, música, psicologia... Partimos de um diagnóstico que fizemos, junto com a população local, de problemas e necessidades que existiam ali. Iniciamos esse trabalho e passamos a entender também a presença da ditadura nas periferias. Começamos a formar um clube de mães, algo que ficou muito conhecido nas periferias da cidade. Clube de mães, um nome singelo, para algo que era um pouco como as "Mães da Praça de Maio", de um potencial político extraordinário. Aquilo que parecia uma reunião de mães para fazer costura, bazar, coisas muito ingênuas e politicamente inofensivas, também servia para esconder e proteger perseguidos políticos. Ao longo do trabalho fomos mapeando o quanto as periferias são predadas por todas as formas de interesses social, político e econômico. Desde interesses de partidos e igrejas, até interesses de políticos que têm cadeira cativa ali nos currais eleitorais. Queríamos apoiar as populações locais para fazer frente a isso. Vimos que havia lá um diagrama muito complicado. Aprendi a entender um pouco mais sobre ele, sobre os cuidados que precisam ser tomados e as condições necessárias para se avançar num trabalho como aquele. Então, diria que parte de minha formação intelectual e ativista também se plantou muito ali. Ficamos cinco anos inteiros indo todo final de semana, sábado e domingo. Uma molecada cheia de vida e alegria. E depois fazíamos uma farra nossa. O livro A violência no coração da cidade retoma um pouco dessa experiência. No doutorado, fiz uma pesquisa no Jardim Ângela, zona sul, definido pela ONU, alguns anos antes, como o lugar mais violento do mundo. Várias iniciativas populares existiam ali. Fui pesquisar uma específica, o Fórum em Defesa da Vida.

Em minha trajetória também foi importante uma experiência que vivi em uma instituição total, no interior de São Paulo, durante um ano. Havia, nesse hospital psiquiátrico, uma residência em psicologia e psicopatologia. Hoje não existe mais isso. Eu tinha muita vontade de fazer essa formação. Era um ano inteiro dentro do hospital, com uma promessa de aulas e estágio direto com os pacientes. Logo que me formei, prestei esse concurso e entrei. Eu era psicólogo residente com um contrato de 12 meses. É o momento em que a psicanálise entra em minha vida de maneira radical. Era uma instituição total e replicava, como muitos hospitais, o desenho do Brasil. Havia uma população extremamente pobre que não tinha nem INSS; vamos dizer assim, eram os indigentes do hospital. E havia uma população rica que tinha os almoços acompanhados de música tocada ao piano de cauda. Era uma instituição toda segmentada, oito alas diferentes, obviamente com preços diferentes, com cuidados e qualidade técnica diferentes. Escolhi a ala mais miserável e das mulheres, que não tinha absolutamente nada. As enfermeiras eram de péssima qualidade e não havia clínica. Foi um choque para mim! Não sei como eles tiveram coragem de colocar um residente ali. O que mais me surpreendia era os pacientes serem utilizados como mão de obra barata. Por exemplo, eles escolhiam arroz e feijão para o restaurante do hospital inteiro e chamavam isso de atividade laboral de escolha. Cheguei a ver uma paciente catatônica nessa atividade. Ela não escolhia nada, ficava sentada durante oito horas por dia. Enquanto, nas alas mais ricas, havia grupos operativos, psicoterapia individual, atendimento psiquiátrico semanal, shows, cursos e oficinas com artistas plásticos. Aquilo foi me fritando, criando uma coisa muito forte em mim. Era um hospital conhecido, famoso. Constatar a ausência da clínica era uma decrepitude violenta para mim.


PERCURSO Você era o único residente nessa ala?

ENDO Na feminina era só eu. E o que aconteceu? Pensei que precisava criar um projeto clínico para essa ala, fiquei meses nisso. Tive apoio de alguns psiquiatras que estavam por ali pela cidade, que estudavam psicanálise e faziam inclusive formação na Sociedade. Em nossas conversas, eles falaram: "toma cuidado. Você é um residente e esse hospital existe assim há séculos, você não tem muito o que fazer. Termina a sua residência, aproveita e vai embora". Montei um projeto clínico que envolvia grupos operativos e atendimentos individuais. A coisa eclodiu mesmo quando uma paciente catatônica iria receber aplicação de eletrochoques. Houve uma reunião clínica gigantesca com 40 médicos psiquiatras e eu estava muito revoltado com aquilo. Disse que o fato merecia uma denúncia, como pensar em um tratamento condenado em muitos países, antes de oferecer alguma clínica para esses pacientes?! Eles olharam aquele moleque metido a besta e falaram: "Está bem. Então faz aí o projeto. Vê lá o que você consegue". Fizeram a linha do impedimento: "Deixa esse babaca, vamos ver o que acontece". E o que eu tinha? Muito incipientemente, eu tinha a psicanálise. Eu levei muito a sério.


PERCURSO Que autores eram referência para você nesse momento?

ENDO Piera Aulagnier foi fundamental para mim no trabalho com a psicose. E por intermédio de Piera tomei contato com a obra de Cornelius Castoriadis, que fazia articulações brilhantes em muitos aspectos. No livro Instituição imaginária da sociedade ele vai abandonando o marxismo e se convertendo à psicanálise. Castoriadis é o primeiro autor que vejo fazendo uma boa metapsicologia sobre essas questões de natureza psíquica, subjetiva, política e social. Foi o autor que me ajudou a alavancar esse projeto e implementá-lo. Tratava-se basicamente de um tratamento clínico para uma paciente catatônica como projeto piloto, em psicanálise. Há vários detalhes nesse projeto, mas o que acontece é que eles já estavam dando de barato que isso ia dar em nada. Em três meses, essa paciente saiu da catatonia, e a psiquiatra, que depois também se tornou uma parceira, suspendeu totalmente a medicação dela. Ela ficou 30 dias sem medicação no hospital e recebeu alta.

Durante um mês eu a atendi duas vezes por dia. Depois, uma vez. Minha equipe permitiu isso. Tínhamos outras atribuições, mas fizemos um bem bolado. Também criamos dispositivos. Coloquei, por exemplo, como acompanhante terapêutico nas horas em que eu não estava, uma paciente muito comunicativa e solidária. A partir desse projeto piloto, defendi o argumento de que tínhamos que ampliar a clínica e precisávamos de recursos. Isso criou um pampeiro, um confrontamento enorme com a diretoria clínica e administrativa do hospital. Tudo isso aconteceu em 10 meses. Então fui chamado e minha residência foi interrompida.


PERCURSO Essa bagagem psicanalítica com a qual você chega ao hospital, você tinha a partir de onde?

ENDO Durante a graduação, fiz vários grupos de estudos de psicanálise. Também tinha feito vários estágios sobre a psicose, que me interessava particularmente, e iniciei minha análise e supervisão, com pessoas ligadas à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Estava começando tudo, mas era o que eu tinha. Também estudava sobre grupos operativos e, no hospital, havia uma pessoa que trabalhava com isso. Ingressei na obra de Pichon-Rivière para saber como poderia utilizar isso como instrumental. Com esse pouco fragmentado que juntei, fiz um projeto clínico com resultados extraordinários, para mim pelo menos, um jovem recém-formado. E eclodiu com essa ruptura.

No hospital, o louco não pode ser louco. Essa é a grande questão. O que Nise da Silveira cria na Casa das Palmeiras é justamente esta permissão: que a loucura possa ser loucura e possa aparecer enquanto tal. No hospital psiquiátrico, o que vemos é o oposto. A coação. A violência na tentativa de impedir que a loucura possa ser loucura.


PERCURSO É impressionante a força institucional que vai acontecendo para expelir a loucura. São muitos os exemplos da resistência aos trabalhos grupais nos hospitais psiquiátricos.

ENDO Minha adesão à psicanálise foi visceral, até porque me aproximo dela pela filosofia fenomenológica, a partir de fenomenólogos que começavam a ler a psicanálise com interesse e com extraordinária criatividade. Caso de Merleau-Ponty, por exemplo, e Binswanger, um amigo de Freud até o final. O único amigo que tinha posição diferente e nunca brigou com Freud. E depois, temos Fédida, que propõe uma psicanálise que incorpora a fenomenologia em uma leitura muito original e criativa. Autor que também foi importante em meu percurso na psicanálise. Mas minha aproximação com a psicanálise parte de uma postura que é, sobretudo, crítica, epistemologicamente.


PERCURSO A experiência no hospital foi fundante como experiência clínica?

ENDO É quando a psicanálise, para mim, sai completamente da abstração. Eu tinha alguma noção do que era a psicanálise e ali recorro a ela para dar uma resposta que só podia ser clínica. E teve um resultado extraordinário. A dimensão política da psicanálise começa a aparecer aí também.


PERCURSO Como se articula essa experiência no hospital com os estudos sobre a violência na cidade que geraram seu livro?

ENDO O que eu constatava ali no hospital? Existe alguma coisa que se opõe à violência, sem ser antípoda dela, que é a delicadeza. Um trabalho que vim a fazer muitos anos depois, e até hoje não concluí, é sobre violência e delicadeza. A delicadeza é, na verdade, até indiferente à violência. A delicadeza não aparece para mitigar ou se opor à violência. E, talvez, justamente por isso é delicadeza. Ela pode ser destruída pela violência. O contrário nunca pode acontecer. Naquela estrutura corrompida, violenta, a clínica aparecia como um vértice delicado. Eu pensava que era preciso um modo de pensamento, de trabalho, delicado, no meio daquele solapamento, da violência de todos os lados que envolvia também interesses econômicos. Os pacientes que entravam em camisa de força, por exemplo, eram os pobres. Nunca um paciente das alas mais ricas. E a gente tinha que ir lá e brigar com o auxiliar de enfermagem e fazer todo um trabalho quase de corpo a corpo. Mas isso não seria suficiente. O que eu achava que poderia mudar as balizas do hospital era a apresentação, execução e consolidação de um trabalho clínico. Foi ali que compreendi boa parte de como funcionam os hospitais e os interesses em jogo. Violências muito profundas são praticadas contra a população psicótica, e eu diria quase sem exceção. Uma instituição total tem esse desenho. Ela é feita para produzir, tanto quanto possível, lucro sobre essas pessoas que estão padecendo psiquicamente.


PERCURSO Dessa violência institucional, você foi para a questão da violência na cidade, nas relações sociais...

ENDO Na verdade, meu trabalho, em minha vida inteira, acabou sendo esse. Tem um lado de provocar a psicanálise com assuntos que, a princípio, não seriam de sua seara. Um trecho desse trabalho vivi junto de Dodora [Maria Auxiliadora Arantes]. Fui do comitê nacional do combate à tortura, na época da gestão de Dodora na secretaria especial de direitos humanos, depois fui do grupo interdisciplinar de combate à tortura. Mas, antes disso, em A violência no coração da cidade, eu estava muito envolvido com o trabalho que fiz na periferia, do qual falo muito no livro.

Naquela época, década de 1980, víamos a preocupação das mães e dos pais com os filhos nas ruas, tanto que uma parte de nosso trabalho foi fazer atividades no período em que as crianças não estavam na escola. As mães ficavam muito aflitas, pois se as crianças ficassem na rua meio período, elas seriam aliciadas pelo tráfico. Já estavam antecipando visionariamente esse problema, como, em geral, muitas vezes as mães fazem. Elas sabiam que, se isso continuasse a acontecer, iria gerar um grave problema social nas periferias, que já eram coalhadas de problemas sociais. E foi o que aconteceu: o domínio do tráfico em todas as grandes regiões periféricas do Brasil, e o aliciamento de jovens e crianças. Uma coisa que lamentamos é que não conseguimos criar indicadores para alçar esse trabalho à política pública. No doutorado, decidi pensar nessa experiência. Fiz uma pesquisa longa, colhi vários depoimentos pelo Brasil, de mães pobres que tinham perdido seus filhos em ataque letal da polícia. A Argentina, naquela época, foi minha grande inspiradora. Eu já tinha pistas de como tentar abordar esse trabalho, a partir das madres, depois das abuelas, dos hijos e agora dos nietos.

Mas, aconteceu uma coisa interessante em relação à psicanálise. Naquele momento de gestão do livro, fui dar uma pesquisada se existia alguém que havia estudado a violência no pensamento de Freud. Fiquei meses procurando. Autores franceses, ingleses, brasileiros e não achava nada. Havia algumas pessoas falando algumas coisas, mas não como um exame cabal do pensamento freudiano em relação à violência. O que poderia ser aproximativo entre os conceitos de Freud de pulsão morte, de sadomasoquismo, da própria neurose relativamente a um conceito de violência que partiria do senso comum, mas também do campo das ciências sociais, da antropologia urbana. Não achei nada! Estava no meio da tese e, então, me propus a fazer essa pesquisa. A segunda parte do livro, dedicada ao tema da violência no pensamento de Freud, na verdade tenta fazer a filtragem de tudo aquilo que falo na primeira parte. Todas as questões colocadas pela antropologia urbana, pelos estudiosos de segurança pública receberão acolhida da psicanálise. Não há outra possibilidade de avançar senão pensar com a psicanálise.


PERCURSO Quais conceitos na metapsicologia psicanalítica são fundamentais para pensar a questão da violência?

ENDO No trabalho que fiz naquele livro sobre a violência na cidade, procurei ampliar a noção de violência. Uma questão é sobre seu alcance, questão muito presente na experiência da tortura. No entanto, ela não é suficientemente nomeada nos lugares onde é discutida, como no campo dos direitos humanos. Quem pode fazer isso é a psicanálise. Por exemplo, não teríamos condição nenhuma de saber que a tortura atravessa gerações se não fosse uma escuta psicanalítica. A análise da tortura, mesmo nos tribunais internacionais, ficaria retida nos danos físicos, que são detectáveis e precisariam ser imediatamente investigados. Isso porque muitas das consequências físicas da tortura desaparecem. Os hematomas, as lacerações, às vezes até os ossos quebrados... tudo isso desaparece em meses. E aí não se alcança mais a tortura. Esse é um impasse que tenho levado nas discussões sobre o alcance da violência. A tortura, em algum momento, se torna sem fim na medida em que ela vai atravessar gerações, vai chegar aos filhos, aos netos e assim por diante... Existem mil histórias sobre isso e é preciso uma escuta que dê guarida e que, de alguma maneira, alcance a possibilidade dessa transmissão e da perpetuação de uma experiência que se dá no campo psíquico. Quando você conversa com uma pessoa que passou pela tortura, ela vai narrar o que viveu como se fosse ontem.

Quando trabalhei a questão da tortura, tentando pensar com a psicanálise, retomei algumas reflexões que havia feito em meu livro, sobretudo sobre a pulsão de morte. Esse conceito teve desdobramentos extraordinários como, por exemplo, na obra de Melanie Klein; e também teve recusas extraordinárias, como na obra de Winnicott. Mas, em especial, naquele momento, o que me encantou foi uma reflexão que Derrida faz no Mal de arquivo. São provocações que ele faz à psicanálise para que ela saia de um certo conservadorismo epistêmico e institucional e encare aquilo que está à sua porta. Derrida é um maravilhoso provocador da psicanálise. E ele diz que a pulsão de morte pode e deve ser entendida como uma pulsão radical, porque, ao fim e ao cabo, é pelo processo de desligamento que ela se dá... Ele aponta que Freud cansou de dizer que o efeito, social e político, da pulsão de morte é o mais absoluto apagamento. Sua função é apagar as pegadas para que não haja registros ou vestígios. E o que a psicanálise faz ao escutar alguém que foi torturado e não pôde provar isso nos tribunais é sobretudo restituir essas pistas.


PERCURSO É aí, especialmente no que diz respeito à violência, que você faz a crítica da leitura que se dá pela chave do recalque e vai trabalhar a questão do traumático.

ENDO Enfrentei essa questão... Lembram em 2006, quando houve o ataque do PCC à cidade de São Paulo e a cidade inteira ficou paralisada, com um trânsito nunca visto?!

Alguns psicanalistas foram chamados a falar, também participei de debates em diversos lugares, e ouvi coisas escabrosas... Vou falar um pouco das consequências clínicas, metapsicológicas e políticas disso. Eu via nos jornais, por exemplo, alguns psicanalistas afirmando que "a sociedade está traumatizada". Definiam São Paulo como uma cidade violenta. Os ataques do PCC já vinham acontecendo nas periferias, mas depois do ataque à bomba na frente de uma delegacia em Higienópolis, os jornalistas ficaram apavorados, porque eles são moradores dessa região, na zona oeste. E de maneira totalmente desarvorada e mesmo irresponsável, eles começaram a falar para as pessoas irem para suas casas, o que as colocou num risco muito maior do que se ficassem onde estavam. Todo mundo ficou maluco, pegou o carro no meio do dia tentando ir para casa. São Paulo parou completamente. Nunca se viu uma situação em que a população esteve mais vulnerável a qualquer tipo de ataque senão dentro do carro, parada no congestionamento.

Naquele momento começou uma discussão muito grande com a ideia de a cidade estar traumatizada. Percebi que era preciso produzir algum tipo de fenda nessa utilização do trauma e comecei a fazer um debate muito simples. A sociedade não está traumatizada. A sociedade está amedrontada. E o medo tem um objeto. O medo se realiza em sua ligação com o objeto. O que o Estado deveria fazer era esclarecer qual é esse objeto para que as pessoas pudessem saber do que deveriam ter medo. No entanto, o Estado capitalizou o conceito de trauma - essa era a crítica que eu fazia -, e o secretário da segurança pública, Saulo de Abreu de Castro, começou a falar: "a sociedade paulistana está traumatizada, realmente não dá mais!... nós vamos proteger a sociedade!". E o que aconteceu? O maior massacre de jovens já realizado no estado de São Paulo!

As pessoas não sabiam muito bem o que temer, não tinham a discriminação mais singela de saber se estavam mais seguros saindo de carro e parando num congestionamento ou ficando onde estavam. O Estado não conseguiu fazer seu trabalho. O que vimos, depois das análises que fizemos sobre os índices de homicídios na cidade, é que, sim, São Paulo é uma cidade violenta, mas em algumas regiões, em alguns lugares, em alguns horários, onde obviamente tem que haver políticas decentes de segurança pública. Em outras regiões, zona oeste, por exemplo, região em que a gente mora, há índices similares à Dinamarca! A Vila Mariana tem índices próximos à Suécia. Pinheiros tem índices próximos à Itália. Então, são várias cidades numa cidade só! Qual teria sido a informação útil sobre a violência? Saber onde efetivamente corremos riscos e onde não. Essa é uma informação que dialoga positivamente com o medo das pessoas e entrega uma informação sobre o objeto que elas devem temer. O quê? Como? Onde? Isso é política de Estado! Agora, o que é dizer que a sociedade está traumatizada? É uma desistência de realizar políticas públicas de segurança eficazes. Então... matança. Isso não é responsabilidade dos psicanalistas que falaram sobre trauma, claro, mas eu achava que essa indiscriminação havia contribuído para aquele tipo de discurso. Um uso indevido da psicanálise que teve consequências importantes. E os psicanalistas precisavam saber disso.

Em relação ao recalque, a ideia que eu tinha é que, se pensamos como recalque várias dessas questões envolvendo a invisibilidade, a incapacidade ou impossibilidade de pensar em certas coisas... seria como se não houvesse o problema. E, então, não haveria necessidade de criar políticas públicas no Brasil. É como se dissessem que não existe tortura no Brasil, por exemplo, porque aqui não tem um único torturador que foi julgado e punido.

Acabei de voltar de uma viagem à Argentina, onde pesquisei os memoriais de Buenos Aires, e lá existem mais de mil processos contra generais, presidentes... com prisões perpétuas. Hoje, na Argentina, conceitualmente falando, seria impossível existir um Bolsonaro. No momento em que alguém aparecesse defendendo a tortura, ia ser imediatamente processado, talvez fosse preso. Então, eu achava muito importante conseguir discriminar onde os mecanismos de recalque atuavam do ponto de vista das instituições, sem violentar muito a metapsicologia. Quer dizer, se existiriam instâncias recalcadoras institucionalmente falando. E, se existissem, como seriam interpretadas. Essa era uma questão que eu tinha, na tentativa de trazer a psicanálise para pensar a abrangência das políticas públicas.


PERCURSO Naquele momento do impeachment de Dilma, quando Brilhante Ustra é trazido como herói por Bolsonaro, uma instituição recalcadora teria punido uma fala como aquela? Ali havia uma exaltação da crueldade, da tortura. O que aconteceu no tecido social brasileiro? Um tempo atrás, existia um pudor em falar da tortura daquele jeito. Nos anos 1980, aquela fala teria certo tipo de impacto. Em 2016, parece que o pudor se perdeu.

ENDO Uma coisa particular, nesse sentido, é um papel que a instituição tem, inequivocamente, e que tem efeitos sociais, políticos e subjetivos: a castração. O que a gente vê, hoje, no Brasil? Uma ausência quase absoluta de castração: pode fazer o que quiser, falar o que quiser... pode dizer que não vai respeitar as eleições.... pode dizer o que for... Hoje, há mais de um milhão de armas no Brasil, um dos países que mais mata por homicídio! É surreal. A pergunta que vocês fizeram é interessante porque, genericamente falando, essa é a vocação das instituições brasileiras. Uma hesitação e uma pusilanimidade em relação a seu papel castrador.


PERCURSO E isso perpassa toda nossa história?

ENDO Sem dúvida. Por isso ficamos envergonhados, nesse aspecto específico, quando vamos para a Argentina, por exemplo. Porque ali a instituição exerce um papel castrador. Situações daquele tipo não podem acontecer, e vamos criar os mecanismos institucionais de transmissão, de barramento e de educação para que não voltem a acontecer no futuro. Simples e complexo assim. Aqui nunca houve isso, e qual o resultado? Temos um presidente da República, como vocês lembraram, que é um franco apoiador não só da tortura como dos torturadores. E aí podemos estabelecer uma conexão com o que tentei fazer em A violência no coração da cidade. Essa ausência de castração institucional potencializa a criação de ambientes traumatogênicos. Não só por personagens não castrados que ocuparão vários espaços, como vemos hoje, mas também, vamos dizer, subjetivamente, por certa autorização pessoal dada à população para que faça o mesmo. Vemos o aumento de todos os índices de violações dos direitos humanos no Brasil nos últimos quatro anos. Isso acontece aos milhares, todos os dias. Em qualquer lugar a que vocês forem, em qualquer cidade, vilarejo, aldeias, lugares de população caiçara, a polícia age já há muito tempo de modo miliciano e extorsivo. Por isso o apoio policial a esse presidente é inconteste. Ele sugere que se faça isso e que se continue fazendo. Como disse [Marcelo] Freixo, outro dia: "O Brasil está às vésperas da total milicialização... se tivermos mais quatro anos de Bolsonaro esse ciclo vai se fechar".


PERCURSO Você acha que o conceito de recusa, de cisão - tão presente nas análises hoje em dia - poderia ajudar a entender esse fenômeno ou se trata de algo de outra ordem?

ENDO Eu não saberia dizer. A gente fica tentando pensar até que ponto seria denegação, forclusão, recusa... Em alguns casos, é apenas repressão mesmo. É um trabalho consciente, deliberado, de não entrar no assunto. Acho que os psicanalistas são importantes para pensar esses processos que têm matizes muito variados. Isso está acontecendo assim no Brasil ou numa corporação policial? Ou assado numa prefeitura ou num grupo da polícia municipal? O psicanalista, com esse vértice da escuta do singular, é importante para produzir discriminações, como disse Hannah Arendt. A metapsicologia fica ali chamando a atenção para nossos arroubos de generalização. Nós, que trabalhamos nessa zona de fronteira, tentando contribuir para compreender as questões graves, sociais e políticas, estamos sempre vigilantes. Na verdade, nossa grande contribuição é produzir as discriminações necessárias para que esclarecimentos possam advir daí. Não é tudo igual, os processos não são iguais. E eles precisam ser examinados, cada um a seu tempo e a seu caso.


PERCURSO Você é um grande conhecedor dos memoriais espalhados pelo mundo e tem uma crítica àqueles mais monumentais. Gostaríamos que nos falasse como você pensa a diferença entre memorial e monumento e da importância dessas inscrições nas cidades e na História.

ENDO Isso é um grande exemplo de intervenção que tangencia o pensamento psicanalítico. Tenho me dedicado à discussão dos estudos sobre memória social e política. É uma discussão que não vem dos psicanalistas, embora a psicanálise tenha um campo fértil de trabalho nessa área. Pois quem pensou a memória nesse raio de complexidade tão fascinante, senão a psicanálise? A psicanálise inclui o mal lembrar, o deslembrar, o ilembrar, o lembrar esquecendo. Ela traz essa discussão de maneira maravilhosa para os estudos da memória social e política. Edson de Sousa, por exemplo, faz a leitura nesse pareamento da psicanálise com as intervenções artísticas em várias situações e lugares.

Quando começam as discussões sobre antimonumentos na Alemanha, imediatamente reconhecemos a psicanálise ali. Há construções antimonumentais em vários lugares, inclusive no Brasil. Os artistas são predominantemente alemães e vêm da discussão sobre a produção memorial da Shoah, que James Young nomeou como contramonumentais ou formas negativas. São intervenções institucionais na Alemanha, em que o artista precisa ganhar um edital público, seu projeto é julgado por uma banca pública e aí ele é autorizado a fazer sua obra. E as obras criam, a princípio, a sensação do absurdo, como no trabalho de Horst Hoheisel, em Kassel.

Antes da ascensão de Hitler, um comerciante judeu doou um chafariz para ser instalado numa praça da cidade. Quando Hitler assumiu o poder, ele mandou destruir o chafariz, pura e simplesmente. Recentemente, Kassel abriu um edital para ocupação daquele espaço, e o projeto de Hoheisel foi vencedor. Tratava-se de reconstruir o chafariz inteiro, tal como ele fora, inclusive a parte hidráulica, abrir um buraco no chão e com um guindaste enterrá-lo totalmente de cabeça para baixo. Uma obra caríssima. Uma única coisa é deixada como efeito dessa obra: o barulho da água do chafariz. Quando se passa por lá, se ouve uma água escorrendo e não se vê nada. Uma coisa estranha. A pessoa começa a procurar de onde vem o som da água. Agacha no chão, vê um buraco transparente e o chafariz funcionando de cabeça para baixo, com água vertendo para baixo. É uma coisa muito impressionante, porque, de repente, se está numa situação com mil camadas de possibilidades interpretativas, sobretudo sensitivas, em que se abandona o espetáculo das águas triunfantes para cima, para colocar águas em pranto para baixo. E produz uma espécie de efeito de recalque artificial, de ruídos, de indícios. Viver isso nessa obra é muito impressionante, mobiliza seu corpo inteiro.

Há uma outra obra desse artista, em Dachau, instalada no final da visita ao memorial. Ela também não é visível, é uma placa de metal no chão, acho que tem um metro quadrado, com o nome de todas as nacionalidades das pessoas que foram mortas nos campos. E quando você se agacha e toca na placa, percebe que ela tem a temperatura do corpo humano. Depois da visita a Dachau, esse é o momento em que é atribuído algum sentido a ela. As pessoas choram. Elas sentem a experiência da temperatura do corpo humano, sobretudo quando está muito frio naquela região. Essas são obras que namoram a invisibilidade.


PERCURSO A delicadeza de que você falava no início.

ENDO Exatamente. Esses grandes artistas vêm trabalhando com as questões da memória. Eu e outras pessoas aqui do Brasil, também. Os artistas pensaram essa questão antes da psicanálise, mas com a psicanálise. Não foram os psicanalistas que produziram esses processos. E vejam como é fácil pensar e dialogar com essas pessoas, a partir da psicanálise.


PERCURSO Mas a arte sempre está à frente, não é?

ENDO Mas tenho certeza de que poderíamos estar à frente em algumas coisas. Acho a psicanálise e os psicanalistas, em geral, extraordinariamente inventivos e criativos. E profundos, do ponto de vista do conteúdo. Mas são extremamente conservadores do ponto de vista da forma. Claro, estamos falando da arte, o psicanalista não é um artista, mas não precisam ser intervenções artísticas propriamente ditas.

A psicanálise nos ajuda a pensar outros formatos, que também não surgiram dela. A justiça restaurativa, por exemplo, é um modelo no judiciário. Sabemos o quanto os psicanalistas que trabalham na fronteira com o judiciário sofrem, pois são discursos que se opõem absolutamente. Aconteceu um primeiro boom de aproximação dos psicanalistas com a justiça restaurativa no Brasil e em outros lugares, mas não houve uma contribuição fundamental dos psicanalistas.

A justiça restaurativa é o lugar onde as pessoas vão se implicar no próprio sintoma. Os papas da justiça restaurativa dizem: "nós não queremos melhorar o direito penal, queremos acabar com o direito penal". Pode ser que nunca aconteça, mas é essa a proposta. A psicanálise tem muito a contribuir nesse campo e já houve experiências em que os psicanalistas foram mediadores. São reunidas as pessoas envolvidas no conflito - que é de natureza subjetiva, social e política - com seus familiares e os amigos que quiser indicar. Todos participam do círculo restaurativo para discutir uma coisa que, no direito penal, é fácil de ser resolvida. Nesse processo é retomada a complexidade da situação criminosa.

Estou dizendo que poderíamos ter inventado isso sozinhos? Não, mas poderíamos ter pensado junto, poderíamos ter sugerido expedientes no Judiciário para apoiar e trabalhar junto com iniciativas como essa. E acho que hoje eles nem querem muito a participação dos psicanalistas.

Outro exemplo que temos visto: o Open Dialogue, trabalho extraordinário com a psicose, sobretudo no primeiro surto, que surgiu na Finlândia. É um trabalho de muitos detalhes, não vou me alongar, mas eles entendem que, ao invés de produzir o que faz o sistema tradicional, ortodoxo e hegemônico das internações, ou seja, produzir fraturas, distanciamentos e, principalmente, a solidão da pessoa que surta, ela é imediatamente relançada para dentro de suas relações. Há todo um sistema de mediação para que todas as pessoas envolvidas se aproximem num projeto de acompanhamento desse primeiro surto. A primeira indicação é jamais medicar no primeiro surto. A partir daí, começa um trabalho com mil complexidades, estamos estudando-o agora, e não tem nenhuma participação de psicanalistas, mas ele é tão psicanalítico! E 84% dos pacientes do Open Dialogue não experimentaram o segundo surto. Paulo Amarante tem trazido esse pessoal que trabalha dessa maneira para o Brasil. Participei, recentemente, de uma experiência, que adaptamos para nosso país. Acho que eles pensam no primeiro surto porque depois, na sucessão de surtos e, eventualmente, de internações, as redes de associação da pessoa vão sendo quebradas, e é muito difícil remontá-las. A indicação é que essa rede precisa ser montada, se possível, no mesmo dia, atendendo à urgência. E há mil possibilidades de se pensar psicanaliticamente, mas eles não o fazem. Digo isso um pouco invejoso pois a psicanálise tem metapsicologia, teoria e clínica que poderia ajudar a pensar.


PERCURSO Lá pelos anos 1980 era tão viçosa essa criação de dispositivos, de poder pensar em outras formas de inserção nas instituições. E depois esse movimento declinou.

ENDO Por isso, acho que o Departamento de Psicanálise tem um papel muito importante, agora a gente percebe que tem coisas que estão sendo antecipadas ali. Por exemplo, a discussão de cotas é fundamental. Os psicanalistas vão falar sobre discriminação, racismo, vão discutir os operadores que estão funcionando socialmente para criticar, para adotar, ou não, não importa.... É uma atitude corajosa.

Há um tempo, fui convidado pelo Departamento para participar de uma mesa - acho que era sobre tortura - junto com a Maria Rita Kehl. E a gente comentava: qual instituição de psicanálise vai fazer uma coisa assim, senão essa? O Departamento vem exercendo um papel importante como instituição, os números especiais da Percurso, a criação de ambientes como usinas, vamos dizer assim, coisas muito marcantes na história da psicanálise.

Vocês se lembram de que em 2016 a gente organizou o ato Psicanalistas pela Democracia, que foi muito difícil. Na época, eu tinha dado um semestre de aula sobre o livro Não conte a ninguém, de Helena Vianna, da perseguição que ela sofreu depois que denunciou Amílcar Lobo, analista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. E ali, vimos o que significa a neutralidade ou o apoliticismo do psicanalista. A consequência de afirmar uma neutralidade, além da perseguição a Helena, é que a SBP do Rio de Janeiro se tornou uma esponja para o modus operandi da ditadura: perseguindo, exilando, punindo, impedindo de ocupar espaços. As expulsões de Hélio Pellegrino, Wilson Chebabi e Eduardo Mascarenhas são exemplos disso. Exatamente o que a ditadura fazia. Vejam o risco dessa postura que alguns psicanalistas e instituições psicanalíticas ainda têm. Hoje, quando ouço, me dá vergonha. Para eles o psicanalista é político como cidadão, mas não como psicanalista.


PERCURSO E como você entende a atuação política do psicanalista?

ENDO O psicanalista como psicanalista já é uma posição política. Você não pode trabalhar com a psicanálise sem posição política clara. Lembro que Hélio Pellegrino relatou que durante a ditadura ele estava sendo perseguido, queriam prendê-lo e torturá-lo e, por conta disso, atendia seus pacientes no orelhão, marcava com eles a cada semana num lugar, num orelhão diferente. Continuava clinicando. Por quê? Porque ele considerava que era uma posição política. Precisava continuar exercendo a psicanálise. Abrindo essa escuta. E essa escuta tem uma consequência política sempre. Para a própria pessoa, evidentemente, que está sendo atendida, o analisando, mas também como um marco social e político.

Mas voltando ao evento sobre Democracia e Psicanálise. O que me apavorava, naquele momento, era ficarmos falando e dando aula sobre o livro de Helena, fazendo a mea culpa do que passou. Mas pensava: não vamos interpretar esse momento histórico!? No entanto, a organização desse evento foi muito difícil, quase desisti. Fiquei muito sozinho, sem parceiros para organizá-lo.


PERCURSO Quais foram as forças contrárias a esse evento que quase não saiu? Articulando também com aquilo que você falava da posição da psicanálise em relação à ditadura, para poder pensar, hoje, a situação absolutamente dramática que estamos vivendo.

ENDO O que se opôs? Essa é uma pergunta muito interessante. Nada se opôs! Aconteceu que as pessoas que, a princípio, estavam disponíveis, não mantiveram o elã. É uma coisa impressionante. Num momento tão crítico, tão decisivo. Eu tinha certeza de que as pessoas com quem estava conversando iriam entrar no barco e iríamos navegar por esses mares. E o que aconteceu, com raríssimas exceções, é que não houve tônus para fazê-lo. Seria a maior piada do mundo se eu organizasse sozinho um evento pela democracia! Se não fosse um evento coletivo e mobilizador não teria o menor sentido. Nesse clima de quase desistência, liguei para Janete Frochtengarten chorando as pitangas, falando que não ia rolar, que estava muito difícil e que sozinho eu não ia conseguir. E Janete, imediatamente, falou para fazer e que ela ia me ajudar. E foi isso que aconteceu. Ela foi fundamental em todos os sentidos, principalmente nessa solidariedade amiga, com a discrição extraordinária que faz parte de quem é a Janete. Tenho um enorme agradecimento. Grande parte daquele auditório era de pessoas do Departamento. Foi histórico na psicanálise!

Tínhamos um cuidado, quando pensamos em organizar esse ato pela democracia, de ser um ato aberto. Quem quer que fosse - independentemente da escola a que pertencia, de que linha seguisse - seria bem-vindo, desde que se propusesse a pensar psicanálise e democracia, com todas as possibilidades que existem, e operasse um esforço de fazer uma boa metapsicologia. Não se pode dispensá-la, é nossa obrigação ética sermos fiéis a essa herança. Nós não temos nada. Não temos conselho, não temos garantias de que vamos existir daqui a dez anos. Em muitos países, a psicanálise nem existe mais. Depois do Ato, montamos uma plataforma, Psicanalistas pela Democracia.


PERCURSO O que você acha que é isso? Frente a tanta destruição, o que acontece que nos paralisa? O elã não vem por quê? Essa pergunta permanece: por que, em determinado momento, todo mundo se junta, caras pintadas etc. e acontece um movimento; e tem horas que fica um cansaço, uma sensação de dificuldade de juntar?

ENDO Como se nós, a posteriori, ficássemos falando de nossas vergonhas. Foi exatamente o que senti: Eu vou ficar dando aulas sobre o livro de Helena, um livro que me envergonha profundamente na psicanálise, em vez de produzir um ato interpretativo sobre o que está acontecendo agora, a partir, exatamente, dos acontecimentos da década de 1970. É isso que vamos fazer? Ficar fazendo a mea culpa e batendo no lombo? Nossa história não pode ser feita de falar sobre nossas vergonhas. Existe um ponto que deve ser interpretado. E em minha opinião só pode ser interpretado coletivamente, como foi o caso do Ato Psicanalistas pela Democracia. É uma interpretação que precisa ser feita associativamente.

Essa questão me faz pensar no que aconteceu no primeiro Congresso de Psicanálise, em Zurique, depois da Segunda Guerra, em 1949. Ernest Jones, na ocasião presidente da IPA, dizia aos psicanalistas para não se envolverem em nada que pudesse parecer subversivo e suplicava para não se envolverem em nada que fosse politicamente orientado. São instruções que para alguns foram ordens, para outros, inscrições inconscientes. ­Stephen Frosh apresentou, numa conferência na USP, depoimentos que recolheu de pessoas presentes nesse Congresso e que diziam que o silêncio dos psicanalistas sobre os acontecimentos da Segunda Guerra teve um efeito traumático em quem estava lá. Como se pode não falar do que acabou de acontecer? O Congresso foi em 1949 e a Guerra terminou em 1945. Como não falar, não tematizar, não discutir uma das atrocidades mais monumentais que aconteceu no planeta? Por que não devemos nos envolver em nada que seja politicamente orientado e nem subversivo?

Essa é uma crítica que faço publicamente, pois ainda temos alguns psicanalistas e instituições psicanalíticas obedecendo a essa orientação de Jones. Algo que vemos com muita alegria é que o Brasil hoje é, certamente, um dos lugares que mais pensa a psicanálise no mundo. Há muitos psicanalistas desobedientes. Psicanalistas que dão um passo adiante e desobedecem a Jones. Nessa mesma linha está a crítica que faço sobre essa ideia de "textos sociais" de Freud. Acho uma bobagem esse título, porque ele tem um endereçamento. Tanto quando é falado por não psicanalistas como por psicanalistas, carrega a ideia de que isso que o Freud faz ali não é clínico, não é psicanálise.


PERCURSO Faz uma cisão na teoria, como se ela não estivesse completamente interligada.

ENDO Exatamente, e como se tudo que Freud fez ali não fosse clínico. Como se os seus textos sociais tivessem sido escritos quando ele tirou umas férias, estava se divertindo e então escreveu O futuro de uma ilusão, Totem e tabu, Mal-estar e Moisés... Ernesto Laclau, no livro A razão populista, faz uma crítica muito bem-feita, e aponta o momento em que Freud deu esse passo adiante, de tensionar e afirmar que a psicanálise tem algo a dizer sobre política, num comentário sobre Psicologia das massas.


PERCURSO Nesse momento atual, você pensa que é o caso de se fazer um novo ato pela democracia ou algo assim?

ENDO Acho que algumas coisas vêm acontecendo com a psicanálise, os psicanalistas e várias associações. Muita coisa importante aconteceu nesses últimos 30 anos. Várias publicações e discussões foram feitas. Eu me lembro quando a gente propôs, no CNPq, o grupo chamado Psicanálise e Sociedade. No início da década de 1990, não existia um único grupo de pesquisa no CNPq que trouxesse a questão da sociedade ao lado da psicanálise, porque ela sempre foi muito condenada. Psicanálise e sociedade, psicanálise e política? Não, isso não é psicanálise! Essa era a tradição de Jones. Hoje existem dezenas de grupos, dezenas de psicanalistas pensando esses temas. Acho que o Psicanalistas pela Democracia também faz esse convite, essa provocação. E a gente tem visto coisas similares acontecendo no Brasil. Psicanalistas pela Democracia como uma proposta que se tornou um certo paradigma que temos tentado manter justamente por isso, pela plataforma. Não é uma escola, não é uma associação. É um coletivo de psicanalistas que faz certas provocações e convites.


PERCURSO Como você tem visto a pesquisa em psicanálise?

ENDO No aniversário de quatro anos do Psicanalistas pela Democracia, fizemos duas comemorações, uma em São Paulo e outra em Porto Alegre, e convidamos psicanalistas e também artistas que faziam intervenções heterodoxas na cidade. Muitos deles são desses coletivos, existentes hoje no Brasil, que trabalham na rua, na praia, que trabalham à noite, no boteco, e que estão proliferando. Eles inclusive fazem um encontro anual. Em São Paulo existem vários grupos assim. Tem o Net, que trabalha na região da Luz com as prostitutas. Tem a Fala das Pretas, que faz trabalho em psicoterapia a partir da discussão sobre o racismo. E são psicoterapeutas, psicanalistas pretas. Tem o coletivo da Praça Roosevelt. Tem o da Vila Itororó. São vários. Sabemos o que eles estão fazendo, mas fico interessado em saber como estão pensando a psicanálise. Acredito que é isso que faz a psicanálise progredir, os efeitos de transmissão que se geram a partir do momento que se consegue pensar no que se está fazendo. Fiquei bem impressionado com a boa metapsicologia que eles praticam. Advinda de várias linhas, do lacanismo, de Winnicott, um pouco de Bollas. Muito Freud, eventualmente uma Melanie Klein, mas sempre tentando cuidar da metapsicologia. Não vi um descuido, do tipo soltar a psicanálise na rua e dizer: "vamos ver o que vai acontecer". Mas um trabalho muito criativo com a tentativa de pensar metapsicologicamente essa prática, os novos enquadramentos e dispositivos que estão sendo propostos. Acho que, muito em breve, vai sair um primeiro livro deles.

Vejo com muito entusiasmo essas iniciativas que estão acontecendo no Brasil. De vez em quando participo e contribuo com algumas delas. É muito salutar. E está acontecendo nas instituições também. Há aspectos de minha produção muito enfáticos nessa direção. Quando Foucault começou a falar da microfísica do poder e a apresentar os livros dele, disse: "Bom, tenho falado sobre isso, outros também, e nunca alguém se levantou na plateia para dizer que era contra, que não funcionava, que estava errado, então estou supondo que estamos certos e vamos continuar fazendo". Depois, claro, ele recebeu muitas críticas de outras maneiras. Respeitadas as devidas proporções, sinto isso também. Nunca ninguém se levantou para falar que era contra essas proposições, esses temas, essa metapsicologia que estamos fazendo. Então, por enquanto, foi o que eu falei para Caterina Koltai outro dia: "acho que estou fazendo certo e vou continuar fazendo". Porque já são quase 30 anos.


PERCURSO Você poderia nos contar como tem sido a experiência do inventário de sonhos? Essa coleta dos sonhos, que já aconteceu em três momentos da história recente.

ENDO Essa é uma história maravilhosa e estamos realmente superfelizes com o resultado. É na mesma linha de um trabalho pessoal em que colhi sonhos da ditadura. Fui da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, e uma das perguntas que coloquei no questionário era se a pessoa sonhava sobre isso. Minha ideia era fazer um parecer sobre as consequências psíquicas do desaparecimento forçado. E, dali, chegaram vários sonhos incríveis. Mas é um acervo muito pequeno. Acho que tem 20 sonhos. Depois, em 2016, conheci na África do Sul um parceiro, o psicanalista Garth Stevens, sul-africano, que colheu testemunhos recentes do Apartheid. Porque você tem os testemunhos colhidos durante as Comissões de Reconciliação e Verdade que são testemunhos tendencialmente de natureza mais traumática, em que as pessoas falam dos crimes, do que perderam e das torturas sofridas, com uma confissão posterior, ou não, do perpetrador. E Garth, depois de anos desse momento do Apartheid, na década de 1980, criou com outras pessoas o Apartheid Project, uma coleta on-line de testemunhos de pessoas que viveram o ­Apartheid quando jovens, quando adultos, quando pequenos e que gostariam de fazer uma narrativa sobre o papel do Apartheid na vida delas hoje, quando ‘teoricamente' não existe mais o Apartheid. Ele colheu 5.000 testemunhos extraordinários. Tudo on-line. Se vocês quiserem, podem acessar. É incrível. Muitos dos testemunhos têm uma narrativa onírica, justaposições de fatos e de lembranças do absurdo que era, mas não é mais. Li quase como sonhos essas lembranças. E ele veio para cá, eu fui para lá, a gente conversou, e ele me explicou como criar a plataforma para coletar os depoimentos. Fiquei com isso na cabeça, pensei muito nos sonhos. Quando Bolsonaro estava ascendendo e tudo parecia que ia dar ruim, as pessoas estavam muito aflitas, muitas voltaram para análise em sofrimento, e tivemos essa ideia de coletar sonhos desse período pré-eleição, pré-volta da ditadura, vamos dizer assim.


PERCURSO Famílias brigando, amigos brigando. Muitas rupturas.

ENDO Impressionante, rupturas que nunca mais puderam ser restauradas. Criamos esse arquivo e vieram poucos sonhos. Era uma coleta meio amadora, por e-mail, que não garantia o anonimato. Recolhemos 12 sonhos incríveis. Até já apresentei isso em conferência. Quando começou a pandemia, Denise Mamede, que havia sido minha aluna, e com quem havia feito esse inventário do ‘retorno da ditadura', propôs abrir uma coleta. Ela descobriu que já existiam mais plataformas disponíveis, e passamos a usar o SurveyMonkey, em que você monta um formulário muito simples. Quando a gente abriu esse formulário, no dia da divulgação, já tínhamos 100 sonhos. Impressionante. As pessoas queriam falar.


PERCURSO Isso foi na pandemia?

ENDO Comecinho da pandemia. A gente sabia que iam aparecer coisas relativas à tempestade perfeita, a pandemia e o Bolsonaro. E apareceu muito. Dei uma entrevista na Rádio USP sobre isso, e as mídias ficaram enlouquecidas. Foi muito bom, porque tivemos oportunidade de divulgar e passar o link. Também se engajou Edson de Sousa, lá em Porto Alegre, e todo mundo divulgando, chegamos a 1.250 sonhos. Soubemos depois de iniciativas de outros psicanalistas que também estavam coletando bastante sonhos. Até propus que juntássemos isso num acervo só, mas o pessoal não conseguiu preparar o material. Isoladamente, temos o maior acervo do Brasil de sonhos da pandemia. Em 2019, trabalhei na Polônia com o acervo de Wojciech Owczarski, um querido amigo. Trabalhávamos com sonhos, e ele falou que ia tentar descobrir se existia algum acervo de sonhos de Auschwitz. Falei que seria um presente, mas "acho que não existe isso". De repente ele me manda um e-mail falando que tinha encontrado! Contou que tinha ido a Auschwitz, foi conversando e, num determinado momento, eles falaram que tinham um acervo de sonhos. Esse acervo foi proposto por um sobrevivente de Auschwitz que havia sido médico pneumologista. Ele já era médico, esteve preso e sobreviveu. Anos depois, ele começou a trabalhar com as consequências dos danos vividos nos campos. Consequências, em geral, físicas, somáticas. Ele cria então a Revista Stanislaus Vlodglodinsky e propõe para o museu lançar uma convocatória para as pessoas narrarem os sonhos que tiveram antes, durante ou depois de Auschwitz. Bom, chegaram para eles 500 páginas de sonhos, um material que continuo pesquisando. Infelizmente, ele não pode ser divulgado, coisas do museu Auschwitz. Queríamos fazer uma publicação traduzindo do polonês, chegamos a fazer a tradução para o inglês, e seria incrível traduzir para o português. Imagina, lançar isso no Brasil? Mas não dão o direito, dizem que podemos fazer uso picado do material nas pesquisas. Infelizmente, existe essa restrição. Acho que eles querem publicizar através do memorial do museu Auschwitz.


PERCURSO Qual a proposta desse inventário? O que fundamenta essa pesquisa?

ENDO A primeira coisa é que, como psicanalistas, tínhamos a certeza de que a narrativa onírica desarruma as narrativas que estávamos ouvindo o tempo todo, ordenadas por uma lógica racional. Nessa coisa da obsessão da vacina, se vai ter vacina, se não vai ter vacina, quantas pessoas morreram... Isso criou uma imbecilidade do pensamento. Ficávamos presos, esperando essas notícias. Quando tocamos nesse material, vemos um pensamento completamente novidadeiro. Completamente criativo. Totalmente pautado na experiência íntima e, ao mesmo tempo, na invenção de novas formas de pensar essa experiência. Então, a primeira coisa que fizemos foi um projeto pelo Psicanalistas pela Democracia, o "sonhando alto", em que colocamos algumas pessoas narrando esses sonhos. Muitas vezes, as pessoas perguntavam se íamos interpretar esses sonhos. E a gente dizia: "ao contrário, vamos nos colocar para sermos interpretados por eles". Para que os sonhos nos sirvam, na escuta, para elidir formas repetitivas e com certo caráter de urgência, da narratividade dos discursos de um saber sobre o que está acontecendo conosco. Os sonhos são essa vocação da autonomização da experiência. Dentro de todas as discursividades, sobre tudo o que está acontecendo conosco, o sonhador diz, como no testemunho, "eu tenho algo a dizer sobre isso".


PERCURSO Você está apostando numa fertilização, como um retorno ao lugar fundante dos sonhos para psicanálise. Faz pensar no que você traz de Norbert Elias, falando que o sonho estaria para a psicanálise como a longa duração na História estaria para a Sociologia. É isso que Norbert Elias está querendo dizer, o sonho evidencia algo que a longa duração vai evidenciar na História?

ENDO Norbert Elias é um grande estudioso da psicanálise, embora não seja lido pelos psicanalistas. Ele apresentou alguns caminhos de como fazer a interpretação do inconsciente, das formas ou dos formatos inconscientes das instituições. Elias aponta onde podemos ter alguma notícia do inconsciente e de suas formações, como, por exemplo, hábitos e costumes: pegar o garfo e a faca assim, comer com dois talheres, comer de determinada maneira... Onde está o inconsciente nisso? Ele vai investigar na longa duração e vai ver que esses atos, que replicamos todos os dias e não prestamos a menor atenção a seu fundacionismo, são o inconsciente social e político. Pois isso nasce para discriminar o rico do pobre, o aristocrata do burguês. No final da Idade Média, os burgueses estavam começando a comprar títulos de nobreza. Sendo assim, a diferença entre a aristocracia e a burguesia será notada imediatamente pelos hábitos. Todos nós, que somos burgueses de formação e replicamos esses atos, estamos, na verdade, consolidando formas de repressão e recalque de natureza social e política que se preservam há séculos. Não perguntamos por que fazemos isso e aquilo, comemos desse jeito ou não. Fato é que vamos ao restaurante e comemos de certo jeito. Se entrar alguém que come com as mãos, imediatamente vamos atribuir a essa pessoa uma assimetria de classe. A longa duração do jeito que ele faz é como se conduzisse a história a sonhar novamente, a suspender suas categorias e suas certezas, a colocá-las numa planilha equívoca que é o que o sonho faz. Temos falado muito nisso. Diferentemente de todos os discursos doutos e científicos, ou mesmo usuais e corriqueiros, nos quais a pessoa fala do que sabe, na narrativa do sonho as pessoas falam porque não sabem. E elas avisam isso: "nem sei bem se era meu pai ou minha mãe...". É uma narrativa cheia de equívocos, aberta e plural, que convida o escutador a se inscrever naquele material, a partir, obviamente, de seu próprio inconsciente, de sua própria experiência.

Eu tinha visto uma coisa que me tocou demais sobre a travessia do luto no Museu Memorial de Hiroshima. Depois de muitos anos de existência, eles queriam pensar uma maneira de trazer de novo as pessoas para o Memorial da Paz, pois elas tinham se distanciado. Fizeram um convite às pessoas que tivessem algum objeto de quando a bomba caiu em Hiroshima, para que deixassem esses objetos como parte do acervo. Estavam dispostos a ver o que aconteceria. Na semana seguinte, milhares de objetos chegaram ao museu. Foi uma coisa impressionante. As pessoas doavam um objeto e eram convidadas a dar um testemunho, pois estavam se despedindo de uma coisa que ficara com elas durante décadas. Há vários desses testemunhos, mas um me chamou mais a atenção, era de uma senhora bem velha. A pequena história era que, quando a bomba caiu, o corpo de seu marido foi estraçalhado, e os médicos japoneses tentaram fazer autópsia do que restava. Ela estava presente nessa autópsia. Eles acharam um estilhaço de ferro no corpo dele. Tiraram. Era uma peça de metal pequena. Lhe disseram: "é o que sobrou de seu marido. Você quer?". Ela pegou a peça e a deixou em seu oratório durante todas essas décadas. "Com o convite do museu, sinto que é o momento de eu entregar isso para uma coleção pública, para que não seja somente meu e possa compor um acervo que é para todos, que é para o coletivo, para a humanidade". Poucas vezes verei uma descrição de elaboração do luto tão perfeita. Então, eu achava que a gente deveria fazer o convite nessa direção, dizendo para as pessoas que seu sonho comporia o inventário dos sonhos. Se as pessoas se sentissem bem com isso, narravam seus sonhos, senão, não.


PERCURSO Sabemos que os testemunhos têm uma função elaborativa, ou até terapêutica, para aqueles que o fazem. Você tem notícias se a narrativa dos sonhos tem, de alguma maneira, essa função?

ENDO Tenho dúvidas sobre isso. Vários estudiosos de memórias falam que o testemunho é terapêutico. Acho que ele até pode ser terapêutico, mas não analítico. Ele pode ser terapêutico no sentido de que a pessoa pode, eventualmente, se sentir um pouco melhor pelo fato de ter uma escuta. O testemunho só se executa a partir de uma escuta que lhe dá guarida, que lhe permite nomear, frequentemente pela primeira vez, uma atrocidade sofrida, e isso pode ser terapêutico, pois tem um efeito interpretativo, mas não necessariamente uma vocação analítica. A gente viu isso nas Comissões da Verdade. Mas também acho que o testemunho, em si, não existe para isso.


PERCURSO Mas você acha que essa senhora japonesa só poderia fazer o fechamento do processo de luto se fosse público como foi? Porque tem essa questão da força do testemunho público como a forma possível para falar dos crimes de Estado.

ENDO Acho que não. O que iria acontecer se o museu não tivesse feito esse convite? Ela ia falecer e o oratório seria passado para algum filho, se ela tivesse. Isso é o que acontece com os oratórios budistas. Agora, esse convite faz uma interpretação sobre a natureza de transmissão da experiência do outro. A pergunta é: "você gostaria de converter essa experiência em algo transmissível? Ele cria uma coisa que não existia. Ela não poderia fazer isso se o museu não convidasse, seria feito algo apenas no âmbito familiar, privado, íntimo. Ela passaria, certamente, porque o oratório você tem que passar para um descendente. Alguém tem que ficar com o oratório e o objeto ficaria ali como uma peça. A entrega da peça para o museu refaz o itinerário dessa experiência, refaz seu próprio sentido: que ela mesma poderia ter uma experiência coletiva. Muitos desses episódios que acontecem nas catástrofes funcionam ao contrário. Na grande maioria, as pessoas vão se recolhendo ao íntimo. Em algum momento, elas emitem até certa ordem: "Não quero mais saber disso. Ninguém fala mais disso, vamos seguir nossa vida". A grande maioria das experiências recalcadas é pautada em decisões como essa. Então, essa senhora, na verdade, é uma raridade, alguém que faz esse caminho e faz uma indicação, de fato, de que outro destino pode ser dado: continua sendo íntimo, mas que não seja íntimo e privado, pode ser íntimo e coletivo.

Nesse sentido, lembro um rapaz que defendeu uma dissertação sobre a Shoah. Ele tinha dois avós vivos que moravam nos Estados Unidos. Ele é um ávido pesquisador e decidiu ir visitar os avós, a quem nunca tinha ido visitar depois do fim da guerra, pois estava interessado em colher seus depoimentos e saber o que tinha acontecido lá. Os avós estavam felizes em receber o neto, receber a extensão do sentido de terem sobrevivido, mas eles não estavam interessados em falar sobre o que tinha se passado. Quando o neto chegou foi aquela alegria momentânea, até que ele emitiu seu objetivo de estar ali. Os avós se fecharam completamente. Virou uma coisa horrível: "Nós não queremos falar sobre isso. Não achávamos que você viria aqui para isso!". Foi quase hostil, mas ele tinha ido para isso e ficou insistindo. Contudo era uma decisão já tomada por esses avós. Disseram que se ele queria tanto saber, entregariam uma fita com os depoimentos. Em seguida, saíram da casa. Ele pegou o material e viu os depoimentos que os avós deram, numa primeira e única vez, para os arquivos Fortunoff da Universidade de Yale, os maiores arquivos em vídeos do mundo. Deram o assunto por encerrado e nunca mais falaram sobre isso. Ele pegou esse vídeo, assistiu e anotou tudo que pôde, além de ter tirado algumas fotos do vídeo. O neto ficou satisfeito, mas triste com o que aconteceu entre ele e os avós. Alguns dias depois, veio embora para o Brasil e, na defesa do doutorado, trouxe todo esse material e contou o episódio. E contou mais duas coisas: as fotografias que tirou dos vídeos não saíram, ficaram todas pretas. Na defesa dele não havia um único familiar, nem os pais, nem os irmãos, muito menos os avós. Tomando o exemplo para falar disso, a maioria das pessoas envolvidas nessas experiências decide, de algum modo - não sei bem se a palavra é decide - silenciar, não querem mais falar a respeito. A gente trabalha com muitos testemunhos, e é uma porção pequena de pessoas que decide testemunhar.


PERCURSO Mas tem o trabalho de Spielberg, que recolheu memórias de sobreviventes do Holocausto, que não foram tão poucas.

ENDO Não são poucos, mas não são a maioria. No caso da ditadura brasileira, uma minoria se dispôs a falar o que aconteceu. Recentemente estive na Argentina em um lugar de extermínio que se chama Clube Atlético, localizado no meio de Buenos Aires. Conversei com o sobrevivente Miguel Agostino, que dizia que muitas pessoas decidem não abrir um processo, pois teriam que testemunhar, e argumentava: "o que não admito é minha mãe ter que testemunhar, porque minha mãe já padeceu tudo que ela podia padecer e eu me recuso a colocá-la nessa situação". Ele diz que muitas pessoas e muitos sobreviventes que eram ativistas naquela época se recusam - terminantemente, às vezes - a prestar um testemunho no processo contra um perpetrador. É uma região bem complexa, tem os testemunhos, mas tem tantas outras franjas e diferenças nisso... é um trabalho a ser feito, ainda. É o mesmo input dos sonhos. O testemunho é isso. Os historiadores falaram sobre a Segunda Guerra, daí aparece uma senhorinha de 80 anos que perdeu toda a família na Segunda Guerra. Ela fala que tem algo a dizer sobre isso e, nesse momento singular, fende completamente as categorias do coletivo, do plural, do arrazoado, das historiografias feitas e o pensamento racional sobre aquela questão. Walter Benjamin já tinha dito muito sobre isso. Depois da Primeira Guerra, historiadores falaram sobre ela, mas de todos os que voltaram da guerra quase ninguém quis falar. Então, é uma história falseada que se chama história tampão. É todo um debate, hoje, entre história e memória.


PERCURSO Você já pensou em fazer inventários de sonhos da população negra diante de toda a violência que ela sofreu e sofre? Como você tem pensado a questão do racismo?

ENDO O livro que estou publicando e que pode ser baixado em PDF, Psicanálise: Confins - memória, política e sujeites sem direitos tem em sua capa a Igreja dos Aflitos, no bairro da Liberdade, que depois viria a ser o bairro japonês e hoje está virando o bairro oriental. É uma superposição trágica, porque, na verdade, a Igreja dos Aflitos, onde fica o metrô Liberdade, em frente à Igreja Santa Cruz, é onde a população negra aguardava para ser açoitada e morta E aconteceu uma justaposição muito interessante.

Estou começando a pensar sobre isso e fiz questão que ficasse na capa do livro. Porque a imigração japonesa, por exemplo, é uma mancha no processo imigratório brasileiro. O ideário do governo era embranquecer a população. Na dificuldade de os europeus continuarem vindo, os asiáticos e depois os japoneses e chineses também foram importados como uma nódoa que cai precisamente na ideia do amarelo. Amarelo é essa mancha. Não era para ser amarelo, era para ser branco. E há todo uma história, Jeffrey Lesser é um dos pesquisadores incríveis que falam sobre a amarelitude, um debate muito recente que bebe na fonte dos movimentos negros. A gente conversa muito em casa sobre isso e digo para meus filhos: "nossa geração sofria dessas coisas jocosas com os orientais e não entendia bem, mas vocês sabem, isso tem nome: racismo! E deve ser nomeado assim". Eles já são a quarta geração e isso perdura. Hoje é praticamente impossível no Brasil estar numa peça de teatro e alguém fazer alguma piada com o negro. Não só a plateia viria abaixo, como haveria severas consequências, mas ainda é possível fazer uma piada com japoneses, por exemplo. Então, essa ideia do racismo que frequenta outras regiões tem tido efeitos de debate entre alguns grupos de orientais. Algumas mulheres estão fazendo essa discussão, e isso precisa ser nomeado. E precisa alcançar o estatuto de lei, como alcançou, depois de muita luta e muito trabalho, a população negra: crime de racismo. Isso precisa adquirir um estatuto de castração como estávamos dizendo. Para que isso não fique como uma responsabilidade dos indivíduos, mas seja tomado como responsabilidade castradora do Estado. O Estado tem muitas funções e uma delas é essa, no sentido de castração comum, no sentido do desenvolvimento. Como diz Françoise Dolto: a castração como uma organizadora que possibilita um atravessamento, mais ou menos, bem-sucedido.


topovoltar ao topolista das entrevistastopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados