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Autor(es)
Anna Mehoudar
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro fundador do Grupo de Apoio à Maternidade e Paternidade.


Notas

1 Hilferding, Margarete. As bases do amor materno. Margarete Hilferding, Teresa Pinheiro, Helena Besserman Vianna, São Paulo, Escuta, 1991.

2 Protocolo inicialmente composto por 31 indicadores clínicos observáveis em crianças de até 18 meses, foi reformulado em função dos resultados. No novo irdi constam 18 dos 31 indicadores iniciais, em cada um dos extratos compostos pelas faixas etárias: 0 a 4 meses (ex. quando a criança chora ou grita, a educadora sabe o que ela quer), 4 a 8 meses (ex. a criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades), 8 a 12 meses (ex. educadora e criança compartilham uma linguagem particular), 12 a 18 meses incompletos (ex. a educadora alterna momentos de dedicação à criança com outros interesses) (p. 96).


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 LEITURA

Educadores em gestação

Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês


Educators in pregnancy
Anna Mehoudar

Conforme registro em ata, Margarete Hilferding [1] torna-se membro da Sociedade Psicanalítica de Viena em abril de 1910. O processo de pertencimento se dava por votação e ela obteve onze votos a favor e três contrários. Freud propõe a inclusão de uma mulher entre seus pares, numa época em que, desprovidas de cidadania, elas não tinham direito ao voto. Em outubro de 1911, Freud coloca em pauta o duplo pertencimento institucional: por onze votos a favor da incompatibilidade, o Círculo das Quartas-feiras veta a permanência de membros que não rezavam apenas pela cartilha da psicanálise recém-institucionalizada. Adler é convidado a se retirar da associação que presidiu quando de sua formalização e, na sequência, um grupo de cinco psicanalistas (até então), entre eles Hilferding, pede demissão da Sociedade que os havia acolhido. Sob a liderança de Adler, esse grupo, partidário da Psicologia Social, multiplica Centros de Educação Infantil por toda a Europa; esses centros privilegiam o cuidado com o gravídico-puerperal e com o materno-infantil sob perspectiva médica e educacional, ou seja, na contramão da psicanálise. Na questão da dupla pertinência colocada em pauta por Freud, para além do cenário sociopolítico anterior à Primeira Guerra Mundial, caracterizado pela desigualdade social e pela expansão da militância socialista, tratava-se de delimitar um campo absolutamente distinto, aquele do inconsciente.

Passados quase 100 anos, a preocupação trazida pelo grupo de Adler mantém-se atual: ainda há grande desigualdade no acesso aos bens sociais. No que diz respeito ao saber das ciências naturais, houve um avanço, mas, revestido pelo ideal eugênico, ele resiste e insiste, sobretudo em relação à gestação e à primeira infância. O “tudo o que o seu mestre mandar, faremos todos” ficou encarnado no discurso médico e no fazer pedagógico.

Rosa Mariotto pertence a um grupo que posiciona com precisão sua centenária disciplina, a psicanálise, quando rodeada por saberes milenares como a educação e a medicina. A meu ver, esse é um dos grandes méritos da publicação. A autora elege a creche para pensar e propor um modelo que dê conta do ato educativo no tempo da constituição do psiquismo de bebês de até 18 meses. Ela busca “um trabalho que contemple em suas ideias e em seus ideais a porção de real que os torna impossíveis de serem plenamente alcançados” (p. 19).

A pesquisa de Mariotto é historicamente oportuna, inclusive no âmbito das políticas públicas brasileiras. A publicação nos informa que a Lei de Diretrizes e Bases (1996) desloca a atenção à primeira infância do campo da assistência (Ministério da Saúde) para o campo da educação (Ministério da Educação), exigindo das creches uma passagem contundente e desafiadora. O que é ensinar nesse contexto? Como se ensinam e se educam bebês? Nós, psicanalistas, sabemos que a distinção entre o ato de cuidar e o de educar é da ordem do impossível, sobretudo nos primeiros tempos de vida. Na sugestiva capa do livro, uma banda de Moebius é percorrida avidamente em sua superfície por bebês que engatinham na continuidade do cuidar e do educar, tendo como borda o devir oferecido pelo laço com o adulto e seu desejo, o laço instituinte da subjetividade do infans.

Com concisão teórica, a autora explora cada palavra-campo que utiliza para nomear sua tese, e mostra que o ato educativo nos primeiros tempos de vida, conforme contribuição que cabe apenas à Psicanálise, “não se situa no campo pedagógico nem no plano da puericultura – educar é criar condições para o surgimento de um sujeito.” (Kupfer, p. 13). Define o ato de prevenir por negação: não busca antecipar o sintoma, nem evitá-lo. E também por afirmação: trata-se de uma aposta. Não há garantia possível senão aquela de criar, no laço estruturante com o outro, condições para a subjetivação do não falante.

Enquanto cursa o doutorado, Mariotto integra o Grupo Nacional de Pesquisa (gnp) na Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil [2] (irdi) – realizada de 2000 a 2008, ambos sob orientação de Maria Cristina Kupfer. Fundamentada em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição do sujeito, a pesquisa, de fôlego, inclui a construção do Protocolo irdi e a simultânea capacitação de pediatras na utilização desses indicadores clínicos, que possam resultar na detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento em crianças de até 18 meses (p. 95). A atenção à saúde primária se fortalece de forma ímpar ao contemplar simultaneamente aspectos psíquicos e somáticos.

Em percurso convergente, a psicanalista elabora o Programa de Atendimento Inicial – Propai – nas creches da pucpr, na função de supervisora de estágio do Curso de Psicologia, a partir de 2002. Investe na interlocução entre a psicanálise e a educação em ambiente privilegiado para a formação do psicólogo, ao mesmo tempo que coloca sua disciplina a serviço de educadores, pais e crianças. O livro, que é a publicação da tese de doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, tem como objetivo “formalizar o modo de participação do cuidador de creche no desenvolvimento e subjetivação de bebês de até 18 meses, a partir da discussão das funções que lhe concernem: cuidar, educar e prevenir” (p. 15).

No capítulo “Creche: da assistência à ciência”, a autora se pergunta sobre o lugar da creche na terceirização dos cuidados maternos, na qual se emaranham diversas questões, como a distinção entre a função parental e a função acolhimento e a falta de formação dos educadores. Se pautados apenas por regras e por um saber operativo, o cuidar e o educar um bebê correm o risco de resultar “no apagamento do saber inconsciente”, no dizer de Lebrun citado por Mariotto (p. 26). Como interessante exemplo da circulação do inconsciente entre adulto e criança, a autora resgata da correspondência de Freud com Fliess a pulsante babá Veronika, que participou da “montagem subjetiva do pequeno Sigi até os dois anos de idade” (p. 25). De forma recorrente, a autoanálise do mestre fundador se entrelaça com a elaboração da teoria psicanalítica. As armadilhas da assepsia higienista que muitas vezes contaminam a educação, a saúde, a psicologia e também a psicanálise, na suposição de uma linearidade possível e necessária à infância, como, por exemplo, na sucessão das fases oral, anal, fálica e genital, são flagradas sob a perspectiva estruturalista: “o que marca o compasso do desenvolvimento é o desejo do Outro e não os ponteiros de um relógio”… (p. 50). A “contradição epistemológica” alcança o fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise (1927) e também do Serviço de Higiene Mental no Serviço de Saúde Escolar em São Paulo (1938), Durval Marcondes. O embate freudiano contra o duplo pertencimento se corporifica nos primeiros passos da psicanálise paulista e brasileira, na suposta vertente desenvolvimentista dos estádios libidinais, e que deveria encontrar na Psicologia seu ancoradouro maior. A autora reitera que “a noção de desenvolvimento se refere às habilidades e competências instrumentais que o sujeito pode ou não adquirir” uma vez pressuposto o inconsciente, a angústia, o sujeito e, mais ainda, o gozo (p. 47).

O capítulo “A função do outro na educação do bebê” tenta dar conta do ato educativo tradicionalmente atribuído à maternagem. Se por um lado resgata a mãe da boa díade, ou a “multidão a dois” descrita por Spitz, e aquela sem a qual o bebê não existe, teorizada por Winnicott, introduz, em mirada lacaniana, o portador da estrangeiridade, do simbólico, da linguagem: a “paternagem” como posição discursiva. A função paterna aparece na sugestiva designação do programa que acontece na creche da pucpr: Propai. O prolongado status nascendi daquele que não fala requer uma “base de sustentação do processo de montagem do humano”. Para delinear os contornos iniciais da subjetividade, Mariotto utiliza- se do modelo do nó borromeano de Lacan para entrelaçar corpo (desenvolvimento), organismo (maturação) e linguagem (subjetivação) conforme lógica que vale conferir no texto (p. 75). Nascer não é o bastante, a humanização pressupõe anterioridades. Somos seres de linguagem. Do Outro, de outros.

Quando, no seu exercício profissional, o educador abdica da riqueza de seu olhar em função de excessos pedagógicos, ocorrem riscos para o bebê “tanto na inserção deste ser na cultura quanto na montagem de sua realidade psíquica” (p. 96). A partir dos quatro discursos propostos por Lacan, Mariotto analisa suas especificidades na educação, com um refinamento que tende a dificultar a leitura daqueles menos familiarizados com a teoria. Aposta no discurso que pressupõe o sujeito cindido, o impossível saber, aquele do analista, na tentativa de “subjetivar” a creche. Ou seja, oferece ferramentas ao educador para que possa escapar da armadilha de um planejamento asséptico, para render-se à “permeabilidade subjetiva” que interroga seu dia a dia junto aos pequenos.

No trabalho que realizo junto a grupos de homens e mulheres, com o objetivo de que se tornem protagonistas do processo de nascimento de seu filho, muitas vezes deparo com a onipotência do discurso médico, em especial da obstetrícia. A gestação desse bebê, esperado em toda a sua majestade contemporânea, tem seu tempo cirurgicamente abreviado; e depois ele é precocemente encaminhado à creche. No Brasil a cesariana alcança níveis de incidência extremamente elevados (80% na rede particular), superiores aos de qualquer outro país e ao recomendado pela Organização Mundial da Saúde (15%). Ou seja, a modernidade não tem mais tempo, não dá o devido tempo para que haja um nascimento sem intervenção desnecessária. Se as consequências desse posicionamento já se fazem sentir nas crescentes utis neonatais, que desdobramentos psíquicos podem advir desse cenário? O gestar, o parir, o nascer, o olhar, o brincar, fios condutores do humano, requerem tempo. Tempos próprios.

A interlocução da psicanálise com a educação e a medicina, nos tempos precoces do humano, adquire caráter de urgência. Mesmo assim precisamos investir no tempo necessário às construções consistentes. Oferecer espaços de escuta e de formação, “longe de ter objetivos funcionais ou adaptativos, aposta na possibilidade de transmissão de princípios gerais da psicanálise a não psicanalistas, em que a produção de conhecimento seja simultânea à própria intervenção, já que é capaz de modificar o campo na medida em que o pesquisa” (p. 136).

O olhar para o enlace que favorece o nascimento subjetivo do bebê é um alento para aqueles que, permanentemente, se posicionam como educadores em gestação. De resto, um permanente desafio na formação do psicanalista e na transmissão de sua disciplina.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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