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ÍNDICE TEMÁTICO 
68
Diálogos, debates e interseções
ano XXXIV - Junho 2022
175 páginas
  
 

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Resumo
Modernidade e modernismo, no contexto da segunda revolução industrial, trouxeram para o centro da cena crises e conflitos, à proporção de rupturas. Freud fala do mal-estar das fronteiras alteritárias. No Brasil, movimentos de pretensa unicidade ocorreram à custa de silenciamentos, de exclusão. Desde uma perspectiva barroca esse artigo procura pensar tais conflitos - que chegam a 2022 em sua face mais cruenta - bem como potencialidades de um país multivocal


Palavras-chave
Modernidade; modernismos; colonialismo; barroco; dobra; perspectivismo


Autor(es)
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual integra o conselho editorial da revista Percurso, membro da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF).


Notas

1J. Wisnik, "Viveiros de Castro: Outras formas do humano", in


2J. Wisnik, op. cit.


1Paim Vieira, Depoimento, 1974.


2"Distribuindo tudo o que ali tinha (inclusive numerosas pe


3Paim Vieira, Depoimento, 1974. 4


4J. Gil, Diferença e negação na Poesia de Fernando Pessoa, p. 23.


5J. Gil, op. cit.


6Ruth Tarasantchi acompanhou de perto boa parte desse tra


1Refiro-me às chamadas pontuais feitas por Aracy Amaral em


2Paim Vieira, Depoimento, 1974.


3Paim Vieira, op. cit.


4Além de algumas referências em jornais da época, contamos


5T. Marcondes, op. cit.


1Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei. Domínio público.


2A. Oswald, "Manifesto antropófago".


3N. Sevcenko, Orfeu extático na metrópole: São Paulo, socie


4J.M. Wisnik, in G. Andrade (org.), Modernismos 1922-2022,


5J.M. Wisnik, op. cit., p.177.


6E.T. Saliba, op. cit., p. 85.


7Realizada pelo Diário de São Paulo, em 21 de novembro de


8Aqui remeto ao belo artigo de Joel Birman "Tradição, memó


1J.L. Lima, A expressão americana, p. 105.


2G. Deleuze, op. cit., p. 63.


3Mário de Andrade usava "sequestro" para recalque. Sua rela


4Todos os Manifestos citados neste artigo estão no livro de


5Ferreira Gullar também estará presente nesse primeiro mo


6O vídeo do registro desse momento, Augusto de Campos in


1D.S. Rodrigues, A Revolução Cabana e a construção da identi


2D.S. Rodrigues, op. cit., p. 137.


3D.S. Rodrigues, op. cit., p. 148.


1J. Birman, "Modernismo e Psicanálise: a problemática da in


2Luis Felipe de Alencastro chama a atenção para esse fato, be



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A baroque fold in 22

 

Abstract Modernity and Modernism, in the context of the Second Industrial Revolution, brought crises and conflicts to the center of the scene, in proportion to ruptures. Freud speaks of the malaise of alteritarian borders. In Brazil movements of so-called unicity occurred at the cost of silencings, of exclusion. From a baroque perspective, this article seeks to think about such conflicts - which reach 2022 in its cruelest face - as well as potentialities of a multivocal country.

Keywords modernity; modernisms; colonialism; baroque; fold; perspectivism.





Abstract
Modernity and Modernism, in the context of the Second Industrial Revolution, brought crises and conflicts to the center of the scene, in proportion to ruptures. Freud speaks of the malaise of alteritarian borders. In Brazil movements of so-called unicity occurred at the cost of silencings, of exclusion. From a baroque perspective, this article seeks to think about such conflicts - which reach 2022 in its cruelest face - as well as potentialities of a multivocal country.


Keywords
modernity; modernisms; colonialism; baroque; fold; perspectivism.

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 TEXTO

Uma dobra barroca em 22

A baroque fold in 22
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa

Em 2022 comemoramos cem anos da Semana de Arte Moderna e duzentos anos da Independência em margens nada plácidas. Artigos, exposições, conferências voltam a discutir questões que insistem e, à força de exclusões, se impõem. O que é ser brasileiro, o que se diz por brasileiro, o que se diz por Brasil, que país se quer, o que se tem feito com isso. Ora como tema, ora na conexão com outros, leituras múltiplas, por vezes díspares, dão a ver o interesse e a pregnância de tais questões.

1922, 1822. Os movimentos de Vanguarda do início do século XX aconteceram em meio a convulsões sócio-político-culturais, de um arco histórico que se inicia em 1789 com a Revolução Francesa e desemboca nas duas Grandes Guerras. Aquele início marca o fim da Monarquia Absolutista - da verticalidade dos poderes monárquicos -, a ascensão dos ideais iluministas, a instauração da República e os desafios de novas relações de poder que agora se querem horizontais. Esse também é o início do que se chamou Modernidade e que, após guerras expansionistas napoleônicas, movimentos nacionalistas tanto na Europa quanto nas Américas, chega ao final do século XIX, no contexto da segunda revolução industrial, em crise. Os ideais revolucionários de razão, liberdade - e seu corolário de consciência - encontram então outras fronteiras

Outras razões se impõem.

Joel Birman, ao escrever sobre o lugar da psicanálise nesse processo, chama primeiramente a atenção para o que se produz enquanto efeito de alteridade nas relações horizontais de poder. A crítica da psicanálise à modernidade, na qual também se constitui, é a questão do mal-estar, axial a toda a obra freudiana. Destaca, já no final do XIX, a passagem do registro somático do inconsciente, tal qual discussões entre neurologistas da época, para o campo pulsional e sexual e as consequências de tal passagem nas questões acerca do descentramento do sujeito. Junto com Marx, Freud traz para o âmago dos debates a dimensão do conflito como marca inalienável do sujeito e da sociedade na modernidade, empreendendo com isso uma crítica modernista a essa modernidade. E Freud leva adiante essa sua crítica, enfatiza Joel, ao abraçar as discussões a propósito da verticalidade do poder, operando a passagem do dispositivo da hipnose, com sua dimensão de influência, "isto é, a ação decisiva que um sujeito poderia exercer sobre o outro", para o dispositivo da transferência, "colocando em pauta os impasses dos sujeitos para sustentar seja o seu desejo, seja a sua liberdade"1.

Freud marca decisiva, e diferentemente, todos os manifestos de vanguarda dos dois lados do Atlântico.

Mas, antes, é preciso dizer que também deste lado, o das Américas, o século XIX não foi menos convulsionado. Na contraface americana desse processo, os países conquistam sucessivamente sua independência em meio a inúmeros conflitos que de diferentes maneiras perduram.

No Brasil, esses conflitos se dão no contexto da vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Face ao jugo imperial, e à hipertrofia de seus poderes, lutas por liberdade, por independência se multiplicam pelos estados.

Ora em sua vertente da perda da hegemonia de oligarquias que se constituíram nos diversos ciclos econômicos, ora nas vertentes das revoltas populares e rebeliões de escravos que mais e mais se impõem. Às atrocidades vividas somam-se os desdobramentos do liberalismo econômico, a disseminação das discussões pautadas pelas divisas iluministas, bem como uma nova pactuação entre Corte e oligarquias regionais para a manutenção da escravidão e do tráfico de escravos mesmo após a proibição desse mesmo tráfico ter sido lavrada na Constituição em 18312.

Ao olharmos cada uma daquelas lutas mais de perto, descortinam-se miríades de conjunções originais; a diversidade do que continua a se produzir no jugo de forças sócio-político-culturais de cada região.

A título de exemplo e clareza, tomemos a Revolução Cabana na província do Grão-Pará, cujo ápice se estende de 1835 a 1840, e a revolta dos Malês em 1835 na cidade de Salvador.

Denise Simões Rodrigues, destacando as diferenças culturais dos povos que habitam a Amazônia há milênios bem como daqueles que chegaram desde o início do período colonial, analisa marcas de confrontos históricos violentos - desde a opressão exercida pelas ordens imperiais e clericais à "convulsão cabana" já no período da Regência - na constituição da "identidade amazônica"1. Em 1822 a província do Grão-Pará, que se estendia do Amazonas ao Rio Grande do Norte, recusa-se a reconhecer a Independência, preferindo manter a proximidade de seus laços com Portugal, tendo inclusive aderido em janeiro de 1820 à Revolução Constitucionalista do Porto. A questão "O que é ser brasileiro?" no Grão-Pará é visceral à ideia de liberdade - inclusive como região independente das outras províncias do Brasil - e toma vulto pelo amálgama entre escravização de indígenas (com toda a visceralidade de sua ligação com a floresta e os rios), escravidão de africanos, a proximidade das oligarquias com a Corte de além-mar. Nos movimentos da Independência, esses processos se acirram. Aquele reconhecimento só veio em 15 de agosto do ano seguinte, com o recuo dos portugueses em relação à manutenção daqueles laços, após a Declaração da Independência do Brasil, e a ameaça de invasão pelas forças imperiais ordenadas agora desde a nova capital. Além disso, as discussões que aconteciam também em solo brasileiro em torno da necessidade de modernização do Estado, a partir de uma Constituição, trouxeram em um primeiro momento a esperança de maior participação política e de melhores condições de vida pela população "isolada também pela imensidão do vale", mas isso se frustra ao longo da década seguinte. "A Cabanagem deve seu aspecto mais original - a maciça participação dos mestiços e escravos - justamente à divulgação e absorção dos princípios revolucionários liberais que caracterizam o panorama político do Brasil naquele momento"2. Denise Simões chama a atenção, em um tecido social levado ao limite, tanto para a violência da revolta quanto para a violência do exército imperial, cujos efeitos de esfacelamento daqueles movimentos perduraram.


[...] a inserção da Amazônia se fazia muito mais como anexação de um território hostil do que como membro em nível de igualdade daqueles que promoviam a transição ou a ‘transação', como tão bem situou Oliveira Lima, em 1947, ao se referir a esse momento histórico.3


Em Salvador, a Revolta dos Malês evidencia a extensão da revolta contra a escravidão, bem como a diversidade das culturas das várias nações africanas escravizadas no Brasil.

Os Malês eram bilíngues. Liam o Alcorão e escreviam em árabe. Planejaram sua rebelião na língua que ninguém mais sabia - seja a falada nas reuniões, seja pelos bilhetes afixados pela cidade.

Delatados, logo foram presos e executados. Mas a força de sua presença permanece.

Com o "esmagamento" dos rebelados, luta por liberdade, nacionalismo e independência chegam à literatura em sua face de idealização, exaltação de sentimentos e de uma nova ordem que marcava com clareza os lugares de seus personagens. Estamos no Romantismo. O índio ganha protagonismo - e exclusão - enquanto ser de pureza que miscigenado ao português constituirá o ser brasileiro. O negro continuará escravizado por décadas e, com malês e Haiti, quando na literatura surge, é estranho, ameaçador. Tintas de revolta, indignação surgirão só mais tarde em "Navio negreiro", com a movimentação dos liberais, dos abolicionistas do Brasil, muito, muito tempo depois da proibição do tráfico de escravos no início desse tempo de Modernidade.

Vanguardas, duas Grandes Guerras e genocídios depois, Lezama Lima diz:

O Barroco como estilo conseguiu já na América do século XVIII o pacto de família do índio Kondori, e do triunfo prodigioso do Aleijadinho, que prepara já a rebelião do século seguinte e é a prova de que está maduro para uma ruptura. Eis aí a prova mais decisiva, quando um esforçado da forma recebe um estilo de grande tradição, e longe de diminuí-lo o devolve enriquecido, símbolo de que este país alcançou a sua forma na arte da cidade.1


Lembremos de uma talha barroca. Sua plasticidade, sua porosidade, sua possibilidade de abrigar e refletir a luz e o olhar que se lhe incidem (convergente e divergentemente). Suas formas côncavas e espiraladas, cavoucadas, convocadas sem cessar. Antes da ruptura, a dobra. A inclusão é sua causa final. Cisão que relança.

Às transformações do objeto correspondem as transformações do sujeito: Entr'expressão, dirá Deleuze.

Trata-se, portanto, de um objeto temporal e maneirista que convocará para sua apreensão um ponto de vista, um lugar de onde se possa acompanhar sua variação. Será sujeito aquele que vier a esse ponto de vista.

A perspectiva barroca desdobra-se ao abrigar o espectador que a perscruta e constitui. Infinita e reciprocamente; assim desenha-se a intimidade do foco.

"A poesia é a precipitação do caos", dirá Haroldo de Campos.

Dobra do infinito que se desdobra na alma do poeta e ganha corpo nas letras do poema.

"Curvatura variável que virá destronar o círculo [...] com seu estatuto correspondente da potência de pensar e do poder político"2.

O resgate do Barroco, ocorrido já depois das Vanguardas e das duas Grandes Guerras, e, sem dúvida, também incitado por esses movimentos, veio dar vazão a processos de criação que ficaram marginais na história.

Assim o fez Haroldo de Campos em O sequestro do Barroco3 - reivindicando a polirritmia do século XVII, o experimental e o lúdico, enquanto momento inicial da produção de nossa modernidade - ao retomar a obra de Gregório de Mattos e gritar diante do esforço de formatação de uma cultura multivocal em linearidade discursiva e finalista consubstanciada entre Romantismo, nacionalismo e modernidade. Esse seu texto é publicado antes de "As galáxias", poema - no qual a proliferação barroca toma velocidades talvez antes inaudíveis - que testemunha a afinidade do neobarroco, como ele mesmo dirá, com as necessidades expressivas da arte contemporânea.

Foi o que fizeram, junto com Haroldo, também Augusto de Campos e Décio Pignatari - ao resgatarem Oswald de Andrade - que ficou de lado durante duas décadas. Acompanhemos Augusto em uma entrevista de 2014:


Houve um grande vácuo cultural - que foi criado no sentido de transformações culturais - possivelmente provocado pelas duas Grandes Guerras. Num prazo muito curto, duas conflagrações monumentais [...].


Continuemos com o testemunho de Augusto de Campos, que em 1958 lançará com o irmão Haroldo e com Décio Pignatari o "Manifesto concreto"4: "Nossa ideia (em 1945) era tentar captar o fio da meada, os fios que tinham se perdido durante a primeira metade do século por força de intervenções políticas desagregadoras [...]5 Nós brasileiros não somos culturalmente monolíngues".

Momento único nesse ano de 2022 foi ouvir o poema "Pulsar", de Augusto de Campos, protagonizar a cena na voz e no acento baiano de Caetano Veloso - ao som grave e compassado da percussão ao fundo - e de todos os silêncios necessários6.

Andar entre ruínas, criar - "transcriar" - mundos a partir de outros tão heterogêneos, é disso que se trata o barroco, a vitalidade do traço barroco.

Potencialidade de uma cultura formada por povos de muitos países.

Aleijadinho, o índio Kondori, Mestre Valentin e tantos outros inscreveram seus gestos, seus traços, seus corpos na mesma pele, entranhas e talhas da vontade de cooptação da corte e da igreja na ordem imperial e clerical.

A esta arte da contrarreforma, do convencimento, Oswald de Andrade, com seu "Manifesto antropófago", responderá assim: "Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes, Jaci é a mãe dos vegetais".

Mas já havia uma primeira carta1, na qual Caminha escreve ao Rei: "[...] Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a semente principal que Vossa Alteza em ela deve alcançar".

E Oswald, naquele seu Manifesto de maio de 1928, insiste: "O espírito recusa-se a receber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade de uma vacina antropofágica. Para o equilíbrio das religiões de meridiano. E as inquisições exteriores"2.

Muitos graus de diferença, em outro ponto de vista, em maio de 1929, os do Nhengaçu Verde Amarelo, afirmam:


Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas.


Os diversos Manifestos evidenciam suas diferenças em relação ao que é ser brasileiro, o que é Brasil, o que é brasilidade, e as obras de seus artistas tomarão rumos também diferentes. No ponto de partida há um certo consenso em relação à contestação de uma métrica e uma rima que não dão mais conta de expressar o mundo cuja face de multiplicidade acelera-se na proporção das mudanças radicais ocorridas desde o final do século XIX.

A Semana de Arte de 22 aconteceu em São Paulo, cidade que passava por mudanças agigantadas em curto espaço de tempo. Do mundo rural, que até bem pouco tempo se estruturava em torno da mão de obra escrava, ao mundo industrial, que supunha outras relações de trabalho, bem como a vinda de muitos imigrantes. De uma sociedade muito provinciana a uma aristocracia que não só buscava que sua capital acompanhasse mais de perto os movimentos vanguardistas das capitais europeias, mas também se afirmasse no cenário brasileiro independente da capital federal, o Rio de Janeiro.

São Paulo, uma cidade que conhecia agora serviços de infraestrutura urbana tais como luz elétrica, água, esgoto, telefone, arruamentos e transporte público. Uma cidade cuja população aumentava exponencialmente e que recebia imigrantes italianos, espanhóis, libaneses, japoneses. Grandes contingentes chegavam; o destino de muitos eram as fazendas do interior e, de tantos outros, as indústrias recém-implantadas. Com Sevcenko, podemos ter uma ideia mais próxima do que acontecia.


(São Paulo) ainda não era moderna mas já não tinha mais passado [...] era um enigma para seus próprios habitantes perplexos tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados3.


Wisnik4 chama a atenção para o poema com o qual Mario de Andrade encerra e abre Pauliceia desvairada. Toda a população é trazida para fora do Teatro Municipal e ali no Vale do Anhangabaú vêm à cena as vozes de diversos grupos que compõem a cidade. Se em meio às múltiplas estrofes também podemos ver as ambiguidades do jovem artista em relação à leitura do que se passa (como ele mesmo o dirá duas décadas mais tarde), o autor destaca o grito calado da estrofe final. "[...] significante inarticulado de revolta, com tudo o que carrega de violência não simbolizada". E adiante elucida: "antevisão sintomática" dos impasses modernistas,


um moderno que se anuncia mas não consegue se instaurar, batendo no muro conservador e morrendo na esperança de renascer da fratura assombrada da cidade... Algo que se concebe como eclosão, fracasso, semente.5


Thomé Saliba também se refere a tal moderno ao falar das "temporalidades renegadas" pela Semana e seus desdobramentos na "celebração de uns e silenciamento de outros". E temporalidades renegadas pelo silêncio cúmplice "da cruenta insensibilidade das elites" em relação ao "terrível bombardeio da cidade em 1924, durante 23 dias, com centenas de mortos, milhares de feridos, um exército de famintos e todo um subsequente "processo de esquecimento dos trágicos eventos"6. Sua indexação encontramos como "A revolta esquecida".

Longe de esgotar os legados da Semana, tais acontecimentos evidenciam as fraturas que nos alcançam e o moderno à conta-gotas de nosso tempo. Evidenciam também o jogo de forças que perpassa o que ali estava posto: o que é ser brasileiro, estética brasileira, nacionalismo, direito à experimentação contínua.

Em sua última entrevista7, Oswald aponta para o caráter de rebeldia da Semana diferenciando-a de outros movimentos da América Latina nos quais a questão do nacionalismo imperava. Perguntado sobre sua fama de "um iconoclasta sem entranhas", rebate: "Nunca fui nada disso. O que eu fiz, e os imbecis não compreenderam, foram pesquisas das mais sérias não só no terreno literário como no social e no estético...".

Compreende-se a que veio quando lembramos que Monteiro Lobato criticou não com menos virulência a exposição de Anita Malfatti realizada em São Paulo em 1917. E Oswald continua:


[...] outros companheiros, como Di e o Mário, sabiam, como eu, por que lutávamos [...]. (Havia uma) inquietação na Europa que dominava o mundo das letras e das artes. Trouxe para cá essa vontade de renovação.


Mário de Andrade trabalhou incansavelmente. Ao final de sua vida, dirá o quanto seu afã pelas pesquisas e o estudo do que pudesse constituir uma memória brasileira tomou espaço de sua poesia. Fato é que seus poemas e pinturas são legados inalienáveis para a "São Paulo, comoção de minha vida."

Ao longo de décadas fez muitas viagens pelo Brasil registrando músicas, danças, lendas, falas, enfim, as mais diversas manifestações da cultura das várias regiões do país. E desde sempre foi muito criticado por conta do que deixou de fora sobretudo quando atribuía aos dados coletados o estatuto do que pudesse vir a ser uma linguagem nacional.

De próprio punho ele assinalará mais tarde o quanto ali havia um começo - e muito a percorrer8.

Todo esse material - bem como o que ficou de fora - é fonte de muitos estudos.

Seja para melhor compreensão do que se quis como o Modernismo no Brasil, seja para reconhecer outros artistas, outros movimentos, outros modernismos - seus lugares incontestes. Seja para se chegar mais perto do que é o Brasil, bem como do que possa sê-lo.

É preciso assinalar que nas primeiras décadas do século XX artistas de diversas capitais também buscavam renovação, também se debatiam em torno do que pudesse vir a ser a arte, a cultura, a cidadania brasileira. Mas é preciso sobretudo salientar que o que se entendia por ser brasileiro guarda diferenças que só ganhamos em conhecê-las.

Chegamos às comemorações do centenário da Semana e dos 200 anos da Independência com a urgência de resgatar os fios perdidos.

A força do que estava em jogo na Semana e em seus desdobramentos se evidencia na quantidade de publicações, nos últimos anos, sobre os modernismos tanto em São Paulo quanto em outros estados.

Para citar um: o vídeo "Geração Peixe Frito", produzido pela Universidade da Amazônia e a Universidade Federal do Pará, lançado em 2019 na Casa da Linguagem, em Belém. Modernidade literária e negritude no Norte do país pautavam as discussões desse grupo de jornalistas e escritores que se encontravam semanalmente no mercado Ver-o-peso.

Há algo de Cabanagem que se retoma.

Paim Vieira

Aqui cabe uma nota pessoal para o que segue. A leitura de A dobra, Leibniz e o barroco levou-me à Pós-graduação de Comunicação e Semiótica. A estética barroca, o pensamento barroco, a atualidade desse jeito de ver o mundo abriram em mim o desejo de levar adiante tais pesquisas. De um primeiro estudo que já se adiantava em torno das diferenças entre o barroco português e o barroco brasileiro, a virtualidade de um encontro entre amigos na casa, que depois soube ser da família do artista Antônio Paim Vieira, levou-me para outra direção. Uma grande sala, pé-direito alto e muitos, muitos quadros coalhando as paredes do chão ao teto. Óleos, aquarelas, gravuras, nanquins, cerâmicas. Azuis, vermelhos, púrpuras, amarelos, marrons, verdes, dourados. Corpos alongados, arredondados atravessam papéis timbrados; carnaval, frevo, Pierrot-lunar, maxixe, gafieira. Palmeiras, jacarandá, maracujá, tatu, jacaré, araras. Livros, uma escrivaninha, tinteiro, bico de pena e cinco cacos de cerâmica - diferentes tons-terra - vindos do Pacoval.

Polirritmia. Linhas curvas, muitas curvas, sinuosas, espiraladas. Deslocamento das figuras, dos contornos, dos elementos da cena. Profusão de mundos. Todos esses traços barrocos. Inflexão; seria por ali que eu iria continuar aquela pesquisa.

Se agora, por ocasião das comemorações de cem anos da Semana, algumas breves menções lhe foram feitas ao se falar de "Modernismos" e "Às margens da Semana", ou em uma coletânea de caricaturas de Mário de Andrade, naquele começo do ano 2000, as referências eram mais isoladas, sempre sobre aspectos pontuais de sua obra e com pouca repercussão mesmo nos meios artísticos1.

Assim, logo de início soube que Paim tinha algumas posições polêmicas, mas isso não diminuía o interesse de sua obra. Ao contrário. Justamente o que foi surgindo era a oportunidade de discussão de aspectos ambíguos, conflitantes, que não só faziam parte daqueles movimentos, mas que também hoje se fazem presentes. Isso tudo, bem como seu contato com artistas da Semana, com outros artistas de São Paulo, com artistas do Rio de Janeiro, onde morou por longos períodos desde o começo de 1918, foi discutido no âmbito daquele outro trabalho.

Mas aqui o foco é outro. Aquela profusão de obras - nas paredes, estantes, caixas e caixas, pastas e pastas lotadas de papéis, pinturas, desenhos, artigos, àquela altura tudo meio misturado. O que fazer com isso? Como entrar nisso? Qual seria a leitura possível de sua obra? Uma curadora experiente me disse que era preciso catalogá-la. Mas meu interesse passava longe disso.

Quais seriam as linhas de força de sua obra? Linhas de força às quais eu pudesse me aliar, pensar conexões, fazer proliferar? Ver, ler - escutar - escrever.

Durante alguns meses, às 16 horas das sextas-feiras, junto à Merita, sua filha, e à Dona Rita, sua viúva, tudo aquilo foi aberto, visitado, conversado, pensado.

Duas séries, intituladas por Paim "Gafieira" e "Carnaval", aguçaram meu olhar para o que, naquele material disperso, foi se desenhando como um sucedâneo de séries. Ele também andava às voltas com o que pudesse ser brasileiro, uma estética brasileira, um estilo nacional.

A questão em Paim é que ele esteve ad infinitum "à cata dessas tendências". E, a partir delas, lança-se em intermináveis pesquisas. A flora, a fauna, os tipos da cidade, o português, o negro, o índio, a luz elétrica, a luz do Rio, tudo isso fazia parte de uma paisagem extremamente diversa. A pesquisa dos materiais e a criação de formas que melhor expressassem cada um desses universos desenharam-lhe uma trajetória em que essas séries se desdobram, e a extrema plasticidade de sua obra se sobressai.

Sim, Paim também era nacionalista e estava à procura do que pudesse ser um "estilo brasileiro". Mas, enquanto artista que era, nessa procura é lançado para outras margens. Aquelas que foram surgindo por sua própria exposição à multiplicidade das matérias em jogo. É ele quem alerta: "Não prefiro os temas brasileiros, mas eles sempre me aparecem e são a minha inspiração porque vivo aqui e assim me oriento. A terra brasileira é de um colorido violento [...]"2.

Para melhor explicitar essa questão, a da abertura para a materialidade do mundo, faço abaixo um breve recorte das séries de Paim.

Ilustração e Modernidade em Paim

A partir de 1918, morando no Rio de Janeiro, faz capas e desenhos diversos para Fon-Fon e Para Todos, desde sua primeira edição. Sobre esta, disse: "com J. Carlos e mais um amigo, formamos uma roda de desenhistas"3.

Sua amizade com vários artistas do Rio de Janeiro atravessará muitos anos, e a fluência desses encontros é patente em cartas, cartões, fotos, livro de presença das exposições que Paim fará em terras cariocas. Seu colorido esfuziante, das pessoas e da natureza, também não cessará de festejar no que se vai tornar, cada vez mais, uma das linhas de maior força de sua obra. Seu quadro "Praia de Botafogo" é dessa época e testemunha um artista engajado nas propostas modernistas.

Colabora com as seguintes revistas: Papel e Tinta, A Garoa, A Cigarra, A Vida Moderna, Novíssima, entre outras, bem como duas de Lisboa, Ilustração Portuguesa e Contemporânea.

Essa intensa atividade e a influência de revistas portuguesas, francesas e italianas, colecionadas a vida inteira, incluíram-no nas discussões do que pudessem ser as relações entre elementos visuais, sonoros, táteis, face à velocidade que as novas técnicas do início do século XX vieram convocar. Nesse sentido, destacamos a ilustração de Pathé Baby, livro de Alcântara Machado.

A polifonia estrutural, mobilizada pelas relações acima citadas, e em sintonia com a linguagem nascente do cinema, realimentam o clima cosmopolita do texto. Pathé Baby é de 1926, e entre os anos de 1923 e 1924 Paim é o responsável pela criação e produção gráfica e visual da revista Ariel, a primeira dedicada exclusivamente à música, criada por ele, Mário de Andrade e Antônio de Sá Pereira.

Essas "coisas brasileiras", flora, fauna, e as danças, seus diversos ritmos, Paim leva para suas xilogravuras. Destaca-se "Maxixe", em verde claro, ocupando toda uma página. O ritmo das músicas, dos corpos, dos veios das gravuras em madeira, bem como o traço veloz dos desenhos em bico de pena, feitos durante os concertos, transbordam suas molduras.

A partir daqui sua obra é lançada em registros de complexidade muito maior: seu "nacionalismo" se mostrará mais e mais policrômico, e a pesquisa de "temas brasileiros" e dos materiais que melhor os expressassem se intensifica.

Cenários

Entre os anos 1920 e 1930, Paim faz cenários para várias companhias teatrais. Seu gosto pelas artes decorativas, que nos anos 1920 também buscava novas concepções, o leva a um estágio como cenógrafo. E sua experiência como artista gráfico será decisiva para seus telões4.

Além dos cenários, também faz figurinos. Em seu Depoimento, destacam-se as dobras e redobras que surgem, e sua emoção ao descrever processos que desenvolve no uso de cores, papéis, tecidos, tintas. Muitas dobras e desdobras, às raias da profusão.

"Ele fazia coisas que só foram aparecendo muito mais tarde com Fukuda e mesmo Fujima... e tudo isso estava muito além das expectativas do público e do teatro de sua época", disse-me Tânia Marcondes ao telefone quando lhe perguntei por que, a seu ver, mesmo no âmbito do teatro Paim ainda era tão desconhecido5.

Entre seus papéis encontrei inúmeros projetos de cenários, inclusive para bailados, não realizados, flores e animais brasileiros, coloridíssimos, alguns em luminosas aquarelas e outros em guaches marcantes. Maracujás, palmeira do Norte, palmeira do Sul. E um que me chamou muito a atenção: uma jiboia gigante, multicolorida e prateada, serpenteando todo o espaço.

Mais tarde, indignado com o teatro que se fazia e com a falta de peças para realizar os cenários que imaginava, nesse seu Depoimento, irrompe: "Quer saber de uma coisa, não há teatro da barriga para cima, sabe. Teatro é corpo inteiro".

Cerâmica

Entre os anos de 1924 e 1925, Paim Vieira morou mais uma vez no Rio de Janeiro e, outra vez, um divisor de águas.


Além de ir às favelas ver o samba, fomos também às macumbas. Impressionei-me com aquela vida popular, tomei apontamentos e, quando retornei a São Paulo, vim disposto a fazer um trabalho em torno daquelas ideias.1


Serão três anos de pesquisas de barros, argilas, fornos, cozimentos. Mas era preciso encontrar também os traços índios, caipiras, cariocas, sertanejos, e aqueles das flores, das folhas, das árvores, dos rios, dos cipós, das danças, dos bichos.

Paim expõe inúmeras peças de cerâmica moldadas e desenhadas a partir de fragmentos de cerâmicas indígenas vindas do Pacoval.

E duzentos e dezesseis pratos de recortes de uma paisagem, também toda de curvas como a brasileira. Mário de Andrade diz com bom humor que lugar de prato não é na parede, mas ressaltamos o uso que Paim faz desse espaço redondo que, na maior parte das vezes, parece-nos extremamente interessante. O circular aqui faz parte de seu desenho, de suas composições, conferindo-lhes ainda maior força expressiva.

Ao olharmos, por exemplo, os pratos do "carnaval carioca", chamam-nos a atenção os movimentos que os corpos podem fazer, justamente por estarem nessas circunferências. As danças, as fantasias, os instrumentos musicais têm seu ritmo intensificado nessas superfícies circulares, que brincam entre o usual e o inusual.

Entre os artigos publicados em jornais, há cinco escritos por Mário de Andrade, à época da exposição em 1928. Destacamos dois escritos em abril. No dia 14, elogia "a solução de abrasileiramento da cerâmica" empreendida por Paim e, três dias depois, proclama: "Paim não quer ser modernista (palavra horrorosa!). Mas passadista é que também não quer ser, não".

Persistindo no estudo das várias linhas do que pudesse ser uma "estética brasileira", ao voltar-se para o negro, Paim mergulha na arte e na cultura africanas. Isso atinge proporções extremamente contundentes na série de cerâmicas africanas, que farão parte da exposição de 1938.

Branco, preto, areia, terra, marrom, o brilho do esmalte, a sombra das nervuras; cada uma dessas peças é de uma beleza cada vez surpreendente. O artista molda, uma a uma, vasilhas, cuias, pratos de diversos formatos, texturas inusitadas, bordas com recortes diferentes, relevos. São indescritíveis.

A maneira pela qual se dobra expõe a força do que se expressa no limite do estiramento das matérias em jogo, e é aí que se dá o começo de uma nova dobra. Essas peças de cerâmica constituem um dos momentos inaugurais da obra de Paim. Ele sabia bem disso.

Madonas brasileiras, São Paulo 1830
e um contraponto para nossa discussão

Em 1939 fui para o Rio de Janeiro. Quando voltei não pude continuar minha fábrica; pela malevolência de algumas pessoas, a dona do terreno onde ela estava instalada vendeu-o.2

Resolvi fazer a série das "Madonas Brasileiras" [...].3


Paim dirige-se a vários lugares a fim de observar diferentes tipos físicos e pinta uma série de vinte e sete madonas, referentes a cada Estado do Brasil, "inspiradas nos variadíssimos caracteres da etnografia brasileira", como conta.

Chama a atenção a reunificação de todos os elementos plásticos em torno dos significados desses atributos, expressos em sentimentos que se naturalizam desde a paisagem, "o povo", até o olhar da Virgem e de seu filho, em seu colo. Tudo isso reiterado nos textos anexos. A linearidade discursiva é um aspecto dessa série, igualmente presente naquela de "São Paulo 1830", que também chama atenção.

"Refúgio frente às adversidades da vida" - diz ele em outro texto - e isolamento constituíram o caminho tomado por Paim nas duas ocasiões.

Mas o que nelas se destaca é certa descrença da possibilidade de ver. Descrença que se traduz na busca de uma unidade prévia produzindo tal circuito de significações - e que toma conta da cena.

Ver - traço forte do artista, e o sabemos por grande parte de sua obra - está agora esvaziado. E Paim mostra saber disso quando vincula a cada tela um texto explicativo com as características mencionadas.

José Gil, em seu livro Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa, estuda no poeta relações desses dois regimes de força. Diz ele:


A significação provém do fato de o pensamento ligar as coisas umas às outras, criando totalidades de sentidos. Ver as coisas na sua realidade implica assim a fragmentação dos conjuntos significantes; é esse o princípio primeiro da desconstrução da cultura, ou seja, da ciência do ver.4


Sabemos, essa "ciência do ver" é fundamental à arte, e não suporta estar enfraquecida em sua face de pensamento, quando este não seja sensível.

Olhando a obra de Paim, localizo, em grandes cartolinas pintadas a guache, cenários feitos para a peça "São Paulo 1830" onde reconheço a força do cenarista Paim. As diferenças entre as cenas da peça de teatro, realizadas em 1925, e as pinturas a óleo, feitas em 1969, expõem o que segue.

Distantes do rumo do texto da peça, as cenas que Paim constrói são suas.

Há um tom evidentemente caricatural, presente também no cenário. Nesse momento é a feição mordaz e bem-humorada do cartunista que aparece; naquele outro, de 1969, por um curioso jogo de espelhos, ele passa para o outro lado da cena.

Em 1925, Paim se dedica a todo um jogo criado, em recortes de papel sobrepostos, que vai da gola do vestido da heroína, passa por um grande lenço que ocupa quase todo seu colo, e continua numa caixa de costura com outro tecido que dela extravasa, e se espalha pelo chão. Essa série abre outra perspectiva na cena. E o espectador é convidado a percorrer os movimentos que se estabelecem pelos vários elementos, inclusive o "dramalhão", mas que agora perde sua imperiosidade fatídica. A essa cena é conferida imanência "da consciência à vida, do pensamento às sensações, da escrita à natureza"5.

Aqui sua visão é sensível à multiplicidade do mundo, multiplicidade essencial à força estética em razão dos processos diferenciais que supõe. É isso que está em jogo.

Painéis de azulejos

Nas três próximas séries podemos ver a saída disso quando Paim é tomado pelas modulações da luz.

Na década de 1940 ele é convidado para fazer a decoração da igreja Nossa Senhora do Brasil, construída também em homenagem às igrejas de Ouro Preto. Nela está a maior parte dos azulejos feitos pelo artista6.

É na arte de azulejos que encontramos as mais intensas correspondências de Paim com a cultura portuguesa. Em seus escritos há numerosos estudos sobre essa arte milenar com referências constantes aos processos de vitrificação, à sua capacidade de refletir luz em variações constantes.

As pesquisas em torno das massas, formas, esmaltes, tintas, cores se multiplicam. Ele mesmo fabricará peça por peça de toda a azulejaria.


* * *


Em 1951, Paim passa alguns meses em Portugal e sobretudo na Itália. Fica tomado pela atmosfera lacustre de Veneza; a variação esfumada entre ar e água - de cores e luzes ao longo do tempo.

Em 1953, começa a pintar a série "Carnaval". Aquarelas em que atinge imensa liberdade.

Gafieiras e Carnaval

Na década de 1920, Paim havia registrado o frevo, a modinha, o maxixe e o samba em xilo e linóleo, gravuras, guaches, aquarelas sobre papel e cerâmicas. E agora ele retoma as danças brasileiras, seus movimentos, ritmos, vestimentas, cores, personagens, na série "Carnaval" bem como na série "Gafieira".

Nos anos 1970, vai a gafieiras de São Paulo, lápis e papel em punho e, sentado a uma mesa, desenha o que vê. Disso nascem alguns desenhos com carvão e uma série de vinte quadros a óleo.

Um ambiente todo fechado, raios de luz intensamente brancos refletidos de pequenos espelhos colados em um globo que gira, um conjunto musical e muita gente. Dançando ou esperando para dançar, descansando às mesas, cadeiras, ou simplesmente olhando. Chama a atenção o ritmo ora frenético ora mais lento. E inúmeros pares ocupam o salão. As linhas retas da luz desenham os corpos. Multiplicam-se as pernas, os pés, os quadris, os braços, os olhares, as bocas. Proliferam-se jogos de inúmeras combinações. Pela repetição de traços, criam-se zonas de adensamentos diferenciados: novas séries se abrem.

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Rio de Janeiro, 1951, nas notas de uma viagem de avião o artista descreve o que vê pela janela. O ar luminoso, o azul transparente, diversos tons de rosa, amarelo e verde, o horizonte esfumado entre água e ar - novamente - tomam conta do artista.

Aquarelas. Não poderiam ter sido outras as tintas de sua série "Carnaval", em quarenta folhas de papel timbrado com marcas d'água de seu fabricante.


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Figuras multicoloridas atravessam o papel, fazendo suas circunvoluções. Nelas, as graduações de claro-escuro são produzidas por variações da aquarela (mais ou menos diluída, mais ou menos translúcida) e encontros de cores. O colorido é de tal forma variado que se intensificam a vibração e o ritmo dessas figuras, cujo movimento é cada vez mais sinuoso, excêntrico, excessivo.

A título de considerações finais

Viveiros de Castro, ao falar de perspectivismo indígena, torna clara a radicalidade das diferenças que nos constituem enquanto Brasil. Mais do que multiculturalismo, trata-se de multinaturismo, tal a proporção que isso toma desde as questões mais primordiais como a relação humano-natureza. Interessa para Viveiros desconstruir relações coloniais e escavar as dimensões de alteridade produzidas no encontro de universos tão díspares.

"A alma é a parte do corpo que a gente não vê", dizem os nhambiquaras. O lugar do sentido está no corpo, diz o autor, e o perspectivismo indígena é a forma de relacionamento do corpo e essa outra parte do corpo.

O caçador quando mata onça é gente e quando come gente é onça.

Antropofagia e perspectivismo são estratégias de uma interminável tomada para si do lugar do outro, diz Wisnik ao comentar Viveiros.1

Antropofagia, perspectivismo indígena e barroco, perspectivismo barroco, são formas de pensar o mundo a partir de sua materialidade, pela sustentação do que se produz nas fronteiras de diferentes mundos.

"O ponto de vista é uma condição pensante enquanto força corporal do existente".2


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Perguntaram-me o que tudo isso tem a ver com psicanálise, e eu pergunto o que tudo isso não tem a ver com psicanálise.

O inconsciente é essa matéria pensante multivariegada através da qual o desejo se afirma. Tudo o que existe é ser. Materialidade do mundo, materialidade da alma, a questão do corpo, o corpo - é primordial na psicanálise - desde Freud. Joel Birman lembra que os momentos de enfraquecimento da psicanálise deram-se quando se perdeu de vista o corpo. As clínicas contemporâneas resgatam essa questão; a materialidade, a heterogeneidade do mundo.

Na clínica de família, a multilateralidade geológica dos vínculos deixa isso claro - visível.

Do silenciamento ao silêncio conquistado, há, como sabemos, todo um processo de escuta. Escuta de si, escuta do outro, do outro em si, do outro do outro. Conquista de toda uma dimensão de alteridade fundamental aos vínculos.

De tal forma que a pergunta que se segue é: Depois do silêncio, qual é a conversa possível?

Outro dia num atendimento de família perguntei pensativamente: O que se calou? E ouvi: Eu não me calei. Essa resposta me chamou a atenção pois em minha pergunta não havia sujeito. Serão sujeitos todos aqueles que vierem dar voz ao que se calou e ao que a partir daí possa se criar.


 


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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