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Resumo
Resenha de M.E.C. Pereira, A erótica do sono. Ensaios psicanalíticos sobre a insônia e o gozo de dormir, São Paulo: Aller, 2021, 208 p.


Autor(es)
Nelson da Silva Junior Junior
é psicanalista, doutor em Psicopatologia Fundamental pela Universidade Paris VII, Professor Titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Editor da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Cocoordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise - Latesfip. Autor, entre outros livros e artigos de Fernando Pessoa e Freud: diálogos inquietantes (Blucher, 2019).


Notas

1. J. Crary; 24/7, Capitalismo tardio e os fins do sono. Cosacnaif: São Paulo, 2014.

2. R. Erkirch, Le sommeil a une histoire. Le Monde Diplomatique, avril 2021, p.3.

3. N. Ganhito, Distúrbios do sono. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.


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 LEITURA

O interlocutor do sono e suas declinações

[A erótica do sono]


The interlocutor of sleep and its declensions
Nelson da Silva Junior Junior

"Erótica", enquanto substantivo, possui uma espessura conceitual, um compromisso com a reflexão ausente de seu uso como adjetivo, que, sem questionar sua natureza, atribui uma qualidade, uma potência de causa do desejo, ao seu objeto, gesto ou pessoa. "Erótica do sono" descreve assim esse campo de reflexão conceitual pouco visitado, sobre o que o sono exige de erotismo, campo esclarecido no subtítulo deste incontornável livro de Mário Pereira: "Ensaios psicanalíticos sobre a insônia e o gozo de dormir".

Nos últimos anos, o sono tem sido objeto de abordagens extremamente interessantes por outras disciplinas das humanidades. Na sociologia crítica, por exemplo, cito aqui o instigante livro de Jonathan Crary, 24/7, Capitalismo tardio e os fins do sono[1] onde o autor mostra como, do ponto de vista do capitalismo vigente, também conhecido por neoliberalismo, o sono representa perdas incalculáveis de produção e consumo. Ainda que o intenso financiamento de pesquisas pelo Exército norte americano vise criar o supersoldado sem sono, no mundo capitalista este personagem é apenas o precursor do trabalhador e do consumidor sem sono. De fato, de uma média de 10 horas de sono por dia, o americano médio passou a 8 horas nos anos setenta, a qual está atualmente reduzida a 6h30 por dia. O sono se mostra aqui, portanto, mais do que simples exigência orgânica ditada por necessidades fisiológicas. De fato, o olhar da história traz sempre surpresas. Roger Erkirch[2], por exemplo, revela que até a época contemporânea, a maioria dos europeus tinha o sono segmentado por cerca de uma a duas horas, interrupção que abria formas de experiência e de sociabilidade específicas. Neste intervalo de vigilância, hábito socialmente compartilhado, as pessoas faziam amor, rezavam, iam conversar com os vizinhos ou simplesmente refletiam sobre os sonhos que haviam acabado de ter.

O tratamento conceitual do sono não é novo em psicanálise, mas raro. De fato, apesar de comparecer em lugar privilegiado na teoria freudiana - o sonho, diz Freud, serve para proteger o sono (Pereira, 2021, p. 39) - esse campo é pouco abordado pelos psicanalistas. Uma das honrosas exceções é o livro de Nayra Ganhito, Distúrbios do sono,[3] referência psicanalítica inaugural do tema em nosso meio e que mapeia a problemática do sono desde o início das reflexões freudianas demonstrando sua importância na estruturação da metapsicologia. Duas décadas depois, recebemos um novo livro de Mario Pereira sobre o tema do sono. Considerado em sua amplitude, esse conjunto de ensaios retoma a psicanálise em sua vocação maior, aquela de estabelecer seus conceitos clínicos no interior de um diálogo com outras disciplinas, não necessariamente comprometidas com a psicopatologia, mas dela não separadas. Assim dos seis capítulos centrais, dois deles dialogam diretamente com peças de Shakespeare, Hamlet e Macbeth, mas, em outros, encontramos de surpresa Ricardo III e Henrique V trazendo elementos articulados ao argumento. Um dos capítulos estabelece uma conversa intensa com Graciliano Ramos, e também não faltam diálogos instigantes com Clarice Lispector e Jorge de Lima, Gérard de Nerval e Paul Celan. Note-se que estamos aqui apenas no campo da literatura. Ao longo do livro, outras disciplinas são convidadas a participar da construção de uma metapsicologia do sono afinada com o mundo contemporâneo. Cobrindo campos que vão da desconstrução da metafísica heideggeriana à antropologia do adormecimento à brasileira, com Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss,  Rita Laura Segato, a escrita de Mário Pereira coloca sua impressionante erudição a serviço de uma exposição clara e direta feita em uma linguagem sensível, ao mesmo tempo simples e leve. Tanto na introdução quanto no epílogo, duas generosas narrativas em primeira pessoa envolvem esse livro ímpar com poesia e amor.

Um fio de Ariadne, contudo, entrelaça e mantém unida a rica diversidade de referências e disciplinas convocadas para o debate pelo autor, a saber, o lugar da alteridade como condição da regressão erótica do sono e suas declinações. Entenda-se por lugar o que confere à alteridade o estatuto de elemento estrutural no abandonar-se à entrega implicada no sono. Lugar, pois, cujas formas de ocupação permitem o sono, ou, ao contrário, condicionam sua impossibilidade. Parafraseando Pierre Fédida, referência incontornável numa escola de pensamento metapsicológico que compartilho com Mário Pereira, poderíamos sugerir aqui um nome para o objeto desta obra com o sintagma de interlocutor do sono e suas declinações.

Assim, nas várias formas da insônia, encontramos análises conceitualmente articuladas das possíveis declinações desta ocupação, o que convida a leitura deste livro como uma psicopatologia cotidiana do adormecimento. Em outras palavras, se trata a cada vez, para o autor, de isolar estruturas silenciosas do adormecimento normal a partir de suas exceções. Nesta preciosa psicopatologia do sono, Mário Pereira demonstra que o psiquismo gira exclusivamente em torno de um mesmo epicentro: a alteridade. De fato, a vigilância de um outro é a condição mesma do abandonar-se à inconsciência. Condição que vale tanto na perspectiva ontogenética na vida de cada um, como na filogenética, quando os perigos da noite assombraram os homens por milênios. Desta vigilância atenta depende a entrega a um intervalo de tempo sem medos, sem ameaças, quando serenamente envoltos por um sono tranquilo nos restauramos das fadigas do dia.

Mas, este outro pode faltar, confrontando o sujeito com sua solidão ontológica e com seu desamparo diante da ausência de sentido. As formas desta ausência constituem os temas explorados nos quatro primeiros capítulos. Em dois deles, "Boa noite, amado príncipe" e "Macbeth e o assassinato do sono", Shakespeare surge como um guia maior da investigação metapsicológica perpetrada, tal como tem sido desde a iniciativa freudiana. Alternativamente à ausência, o outro pode se fazer demasiado presente, na forma de uma convocação ou chamado sem resposta, que invade o sujeito no meio do sossego de sua inconsciência neutra e o agarra pelo pescoço o sufocando, como no capítulo "Sim ou não?", que parte do conto de mesmo nome de Graciliano Ramos.

Ausência súbita, ou presença excessiva se configuram assim como fronteiras deste lugar de cuja ocupação depende nosso adormecer. Nos dois capítulos finais do livro, Mário Pereira oferece belas análises de soluções da cultura para a improvável passagem entre Sila e Caribdes constituída por estes limites. O penúltimo, "O que restou de nossos amores negros" é uma delicada genealogia psicanalítica dos nossos modos de subjetivação e cuidados de si, onde o cafuné, este carinho que deu o corpo a tantos brasileiros, é retraçado até suas origens africanas. Neste percurso, o autor recupera a dívida recusada, o rechaço da Mãe Preta, e a ambivalência do racismo estrutural com a negritude, com a qual o Brasil colonial e escravagista construiu a cultura, os corpos, os desejos e os horrores de hoje. Não por acaso, o último capítulo é destinado ao "Acalanto", e às canções de ninar que embalaram em voz ritmada o momento de ir para a cama das crianças que tiveram, em sua infância, o privilégio de uma vigília atenta de um outro.

Enfim, encerro com um cumprimento à excelência deste livro e a certeza que ele representa um momento privilegiado da produção intelectual da comunidade psicanalítica nacional. 

 

Obrigado, meu amigo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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