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Resumo
Neste artigo, o leitor encontrará um relato analítico sobre a experiência de trabalho clínico com bebês e seus cuidadores, em um grupo aberto para todos, inserido na Rede de Atenção Primária em Saúde, do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa prática motivou reflexões a respeito do acontecer psíquico nos primórdios da vida. Nesta clínica, vimos emergir a relação com o outro e os destinos das moções pulsionais em curso, ambos em movimentos interligados.


Palavras-chave
clínica com bebês; acontecer psíquico; rede de atenção primária; grupo com bebês; alteridade e fantasia.


Autor(es)
Mira Wajntal
é psicóloga, psicanalista, Mestre em Psicologia (PUC-SP), membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, membro do Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise (GTEP) e professora do curso Clínica Interdisciplinar da Primeira Infância, ambos do Instituto Sedes Sapientiae. Foi bolsista PET (Coapes-SMS PMSP) da Unidade Básica de Saúde da Vila Romana.


Notas

1.  R. Spitz, O primeiro ano de vida, p. 109.

2.  M. Kupfer et al., Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil.

3.  G. Crespin; E. Parlato-Oliveira, Projeto PreAut.

4.  N. Coelho Jr. e L.C. Figueiredo trabalham o tema da alteridade como elemento constitutivo das subjetividades singulares em "Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade". R. Mezan desenvolve um importante trabalho sobre as escolas em O tronco e os ramos.

5.  Equipe multidisciplinar na Unidade Básica Vila Romana, que na ocasião era composta pelos seguintes profissionais: Mira Wajntal (psicóloga), Gilcineia Jardim Eleutério (fonoaudióloga), Lucila Faleiros Neves (terapeuta ocupacional), Teresinha Stumpf Souto (pediatra) e Margareth Inês Veggiato Ramos de Melo (coordenadora da Unidade).

6.  Estatuto da Criança e do Adolescente, lei no 13.438, 2017. Alterou a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para tornar obrigatória a adoção pelo SUS de protocolo que estabeleça padrões para a avaliação de riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças. Um ano mais tarde, esta lei foi suspensa.

7.  M. Kupfer et al., op. cit.

8. Crescimento como evolução harmônica e no ritmo adequado das medidas pondero-estaturais do indivíduo.

9. A noção de maturação compreende os processos de evolução das estruturas nervosas, tanto centrais quanto periféricas.

10. A noção de desenvolvimento descreve a expressão funcional, assimilante e adaptativa ao mundo social e ao mundo real que a criança conquista, apoiada nos recursos maturativos.

11. M. Wajntal et al., "Grupo de Acompanhamento do Desenvolvimento Infantil".

12. P. Rocha, "Algumas considerações sobre a constituição psíquica".

13. S. Salmeron, "Réseau libidinal tensionnel".

14. P. Rocha, op. cit., p. 170.

15. Com as inúmeras "mudanças" do Serviço Público, o projeto precisou e recebeu apoio de uma parceria de ensino, por meio do Contrato Organizativo de Ação Pública de Ensino-Saúde (Coapes-USP) e funcionou sob o guarda-chuva do Programa Ensino pelo Trabalho, do Ministério da Saúde (PET) USP / SMS-PMSP / Ministério da Saúde, sob a tutoria da Prof. Dra. Ligia Ferreira Gomes, da Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP, a quem agradeço muito a parceria, que, contando com a participação dos seus alunos, sustentou a continuidade do projeto.

16. Segundo Laplanche & Pontalis (1967), entre Triebregung e Trieb (pulsão) existe uma diferença muito pequena: "a moção pulsional é a pulsão em acto, considerada no momento em que uma modificação orgânica a põe em movimento" (p. 364).

17. Sugerimos os seguintes autores para aprofundamento deste tema: R. Mezan, Figueiredo e Coelho Jr.

18. R. Mezan, O tronco e os ramos, p. 82.

19. S. Freud, Projeto de uma psicologia.

20. Idem, p. 32.

21. S. Freud, "Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico".

22. Idem, p. 66.

23. Idem, p. 67.

24. Idem, p. 70.

25. S. Freud, "Conferências introdutórias à psicanálise".

26. Idem, p. 450.

27. Idem, p. 461.

28. Idem, p. 465.

29. Idem, p. 468.

30. R. Spitz, op. cit., p. 96.

31.      Idem, p. 92.

32. D. Winnicott, A criança e o seu mundo, p. 76.

33. J. Thomas-Quilichini, "O conceito de representação".

34. J. D. Nasio, "A fantasia".

35. S. Freud, "O escritor e a fantasia", p. 325.

36. P. Rocha, por comunicação pessoal em 2020.



Referências bibliográficas

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Wajntal M. et al. (2018). Grupo de acompanhamento do desenvolvimento infantil. IV Encontro Internacional e XI Encontro Nacional sobre o Bebê, de 28/04 à 01/05 de 2018, UNIP São Paulo, e V Colóquio de Psicanálise com Crianças: A criança e o mal-estar contemporâneo, dias 14 e 15/09/2018, São Paulo.

Winnicott W.D. (2013). A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos.





Abstract
?In this article, we will present an analytical report regarding the experience of a clinical work with babies and their caretakers in an open group that was available for users of SUS (Brazilian Public System of Health). This practice has provided important insights about the psychic functioning in the origins of life. In this clinic we saw the establishment of the relationship with the other, as well as the destination of the ongoing drive motions, both in interconnected movements.


Keywords
Clinic with babies; Psychic functioning; Group with babies; Alterity; Fantasy.

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 TEXTO

Quantos eventos precisamos para mobilizar o psíquico?

Uma experiência clínica com grupos de bebês na Atenção Primária em Saúde


How many events do we need in order to mobilize our minds?
A clinical experience with baby groups in Primary Health Care
Mira Wajntal

O primeiro ano de vida é o período mais plástico no desenvolvimento humano. O homem nasce com o mínimo de padrões de comportamento pré-formados e deve adquirir incontáveis habilidades no decorrer do seu primeiro ano de vida. Nunca mais na vida, tanto será aprendido em tão pouco tempo.[1]


Ao longo dos meus trinta anos como trabalhadora do Serviço Público de Saúde da cidade de São Paulo, estive envolvida em serviços que prestavam atendimento à infância e suas famílias. Em meu percurso, optei por me direcionar à Atenção à Primeira Infância, pelo fato de, cada vez mais, ter ciência de que as primeiras experiências de vida são cruciais e marcam para sempre. Compartilho aqui a experiência de atender bebês e suas famílias em grupos abertos.

A clínica com bebês mostrou-se um excelente campo para a reflexão sobre os processos atuantes no acontecer psíquico. Pretendo estabelecer diálogo com os textos freudianos e as recentes avaliações do bebê que privilegiam a sua observação em relação aos que lhe prestam assistência?- os Indicadores de Referência do Desenvolvimento Infantil[1] (IRDI) e a pesquisa PreAut[2], assim como fomentar a discussão entre as escolas de psicanálise, que ora privilegiam a alteridade como fundadora do psíquico, ora atribuem as moções pulsionais a posição de fundadoras deste processo[3].

Em 2017, como profissionais de uma Unidade Básica de Saúde da Zona Oeste[4], vimo-nos diante de questões levantadas pela lei no 13.438, de 26 de abril de 2017[5], que previa que todo bebê fosse avaliado em saúde mental nos primeiros anos de vida. Como resposta ao que era imposto por esta lei, debatemos em reuniões clínicas sobre os dispositivos de saúde que poderiam auxiliar a pediatria nesta tarefa, sem serem procedimentos cujo resultado gerasse um rótulo que marcasse as crianças com o signo de doenças, que as predestinassem a futuros irreversíveis. Cabe lembrar que, nesta faixa etária, não devemos fechar diagnósticos de saúde mental, mas detectar sinais que possam indicar que um bebê não está bem e precisa de assistência.

Nosso propósito não foi criar um grupo destinado a "bebês com problemas", em que qualquer mãe pudesse se sentir desapropriada da sensação de que seu filho é uma bênção. Ora, sabemos quantas dificuldades o desencantamento de uma mãe com o filho pode gerar, muitas vezes, mais significativas do que o motivo da procura de auxílio. Um diagnóstico lançado "à queima-roupa" ou um encaminhamento mal feito podem criar mais problemas do que soluções. Temos que ter em vista que os pais, quer por negação, quer por desconhecimento, podem não reconhecer que algo não vai bem com o filho e não conseguir levar adiante um tratamento. Recebê-los sob o estigma da doença em nada irá ajudar. Precisar de cuidados e atenção em saúde é distinto de se dizer a uma família que o filho será encaminhado para "um serviço mais especializado no problema da criança"?- o que pode ser vivido como algo pouco acolhedor e mais desestruturador de relações familiares do que organizador de um caminho de mudança.

Pareceu-nos mais interessante, como resposta a essa demanda de avaliação, criarmos um grupo aberto, com o intuito de que todos os bebês matriculados na unidade pudessem frequentar. A pediatra, independentemente de uma preocupação específica com a saúde do bebê, recomendava a todos os inscritos na unidade que participassem ao menos uma vez do grupo. Para aqueles que causavam preocupação, ou cujos pais traziam muitas queixas, o convite era feito com mais insistência.

Embora saibamos que a tradição psicanalítica se funda a partir de uma clínica da psicopatologia, a clínica com bebês, para não ser iatrogênica, não deve ser uma clínica que parta apenas da psicopatologia. Em linha com os achados da pesquisa IRDI[6], esta clínica deve basear-se em uma concepção do crescimento[7], da maturidade[8], do desenvolvimento[9] e do acontecer psíquico. Quando o bebê revela alguma dificuldade em qualquer um destes aspectos, devemos entendê-la inicialmente como um fenômeno que pode ser momentâneo, e sobre o qual a intervenção, quando necessária, em geral resulta em uma boa evolução do bebê, evitando que fique fixado ou paralisado nesta dificuldade.

Uma questão importante para a intervenção é se seria uma ação preventiva. O termo "prevenção" nem sempre é fácil para nós, psicanalistas, pois não há como predizer como uma história de origem resultará em um futuro determinado. A clínica com crianças não pode obedecer a tal lógica, pois estamos diante do andamento dos processos de constituição do funcionamento psíquico e temos como grande aliada uma plasticidade, não apenas apoiada na maturação neurológica, como nos próprios movimentos do acontecer psíquico. Desta forma, optei por empregar a terminologia "ações de saúde" para circunscrever situações em que uma família precisa de auxílio, com seu bebê.

Hoje, nós, psicanalistas, temos vasta experiência em escutar os bebês e suas famílias para saber quando um bebê está em dificuldades e precisa de assistência. Ao trabalhar na Atenção Primária, temos que levar em conta não só a particularidade da instituição, como ter em vista que se trata de uma ação interdisciplinar. Alerto que o que pode parecer ao leitor uma grande dificuldade?- um novo setting e uma ação interdisciplinar?- é, muitas vezes, a chave da resolução!

Neste texto, trabalharemos com autores que potencializam a discussão sobre a alteridade e o grupo social como elementos constitutivos da subjetividade e apresentaremos o dispositivo clínico grupal que desenvolvemos para a atenção a bebês da Rede de Atenção à Saúde (RAS).

 

Um espaço de saúde para nossos bebês: o Grupo de Acompanhamento do Desenvolvimento Infantil

Abrimos um plantão semanal cuja principal marca é ser de fácil acesso à população. Nossa proposta era receber os bebês e suas famílias e incentivar a interação entre cuidador e bebê.

Para sustentar tal dispositivo, nos inspiramos na Maison Verte, projeto francês liderado por Maud Mannoni. O que particularmente nos encantou foi o fato de o espaço ser concebido como um lugar para todos. Embora seja um espaço destinado ao lazer e à interação social, um monitor permanece de plantão, à disposição de quem apresentar necessidade e/ou desejo de acolhimento. Lá, não se propõe a uma ação pautada em "avaliação e conduta". Para frequentar a casa, basta querer!

Na Atenção Primária, criamos um espaço em que interação, brincadeiras e participação dos pais ou cuidadores era imprescindível. Entendíamos que era nosso papel levar o cuidador a também se encantar com as pequenas conquistas do seu bebê, dar sentido a seus atos ou poder se libertar das fantasias calcadas em sua própria história[10]. Esta experiência revelou que, quando os pais ou cuidadores tornam-se agentes das conquistas dos filhos, são capazes de se apropriar de forma espontânea de suas funções de "maternagem" e "paternagem", capacidades que, por alguma razão, haviam se estagnado.

Nosso diferencial era ter, como dispositivo de saúde, um lugar pensado para cada família ou educador que participasse do encontro, de modo que pudessem criar, brincar, sonhar e falar das dificuldades vividas no dia a dia. As famílias e seus bebês eram acolhidos em uma sala com tatames, onde havia alguns brinquedos. No início, nos propúnhamos a incentivar a brincadeira e a interação entre todos. A aproximação começava com perguntas do cotidiano: "Como estão?", "Como está o bebê?", "Como foi a chegada dele na família?" e, por fim, se "A família está vivendo alguma preocupação?".

Não fazíamos qualquer inventário, e os problemas de saúde só eram abordados caso fossem reportados espontaneamente. O clima era de interação e troca. Claro que a oportunidade de ter acesso tão fácil a profissionais de saúde abria espaço para questões e dúvidas, que procurávamos responder dentro do grupo. Caso fosse necessário, com cuidado e respeito, quando a família pudesse receber um encaminhamento, cuidávamos para que a oferta específica fosse entendida como ajuda, e não como condenação.

Desde o início, tínhamos muito claro que, para frequentar o grupo, não era necessário ter uma queixa. Com o passar do tempo, vimos que muitos pais traziam os filhos pelo benefício da interação social, pela oportunidade de compartilhamento na tarefa de criar um filho e para contar com profissionais de saúde em uma oferta totalmente diferente.

Recebemos uma grande variedade de situações com demandas diferentes: dificuldades no aleitamento materno, pais de primeira viagem, pais que se angustiam com algum comportamento do bebê, jovens adolescentes abrigadas que se tornaram mães, mães adolescentes, avós que são as principais cuidadoras, bebês expostos ao Zika vírus, bebês pouco estimulados, bebês que estavam se desenvolvendo bem, outros que necessitavam de atenção e cuidados especiais referentes ao desenvolvimento motor, assim como bebês que demonstravam dificuldade de socialização.

No entanto, observamos que a maioria dos bebês cujos cuidadores nos procuravam eram pouco estimulados e, muitas vezes, apresentavam quadro de inibição do desenvolvimento, que muito se assemelhava ao hospitalismo de Spitz, pois ficavam por muitas horas em berços, cadeirinhas e carrinhos, sem poder se movimentar, com pouca interação social e muita exposição às telas (televisão ou celulares).

Vemos aqui um novo mal dos nossos tempos, em que, com o intuito de superproteger os bebês, ou pela exigência do trabalho sofrida pelos pais, os bebês acabam sendo inibidos em sua potência de exploradores ou de interação social. Eles, com muita frequência, têm medo de ir para o chão ou pouca habilidade em rolar, engatinhar e explorar o ambiente. Nestas situações, o que mais nos preocupa é a perda de oportunidade proporcionada pela neuroplasticidade típica da idade. Em nossa opinião, isto também é reflexo da solidão em que as famílias se encontram na tarefa de criar um filho, da sobrecarga em conciliar as multitarefas de trabalho e de organizar um lar, sobrando pouco tempo e energia para os pais serem pais no dia a dia.

O espaço do grupo, assim pensado para que todos possam brincar, situação cada vez mais rara na família, passa a ser a oportunidade para os adultos perceberem a importância da interação, tanto para o bebê quanto para si próprios, rompendo um ciclo de isolamento das famílias, imersas nas dificuldades cotidianas da vida.

Quando vinha um bebê que visivelmente apresentava sinais de risco ou sofrimento psíquico, a família era acolhida como todas as outras e, com frequência, nos víamos na seguinte cena: o bebê no centro do círculo, cheio de atenção, todos brincando com ele e reconhecendo suas comunicações, sem desvalorizar a queixa dos seus acompanhantes. Ao final, dizíamos que, quanto mais vezes pudessem vir, melhor; sem cobranças ou acusações.

Uma vez, recebemos um bebê e sua mãe, que se mostrava muito angustiada com a falta de responsividade do filho. Nossa ação foi colocar o bebê no centro do grupo, brincar com ele, sustentando a relação da mãe com o bebê. A mãe saiu satisfeita, dizendo que, pela primeira vez, alguém deu "um começo" para ela. Notem que, em nenhum momento, falamos em doença, diagnóstico ou conduta. Ao colocarmos o filho que a preocupava no centro de tudo, com brincadeiras e risadas, criamos uma rede de reconhecimento para a dupla, em que o bebê é sempre valoroso.

Baseada nas ideias de Paulina Rocha (2010)[11], diria que, neste caso, criamos uma "rede tensional libidinal" para a dupla mãe e filho poder se encontrar. Esta rede consiste na possibilidade de uma equipe ou grupo social criar as condições de continência e segurança para o trabalho sincronizado e necessário dos envolvidos, disponibilizando sua escuta para trabalhar com conteúdo muito primitivos.

Em "Algumas considerações sobre a constituição psíquica", citando o conceito de "rede tensional libidinal" desenvolvido por Salmeron[12], Rocha considera que, na vinda de um novo membro em uma família, se estabelece uma "dinâmica tensional libidinal grupal" semelhante, cunhada por um desejo dos pais de que seu filho seja amado, cuidado e protegido por todos. Vemos, aqui, o grupo como condição da maior importância para o acontecer psíquico do bebê. A autora também discute como uma criança se apropria de seu corpo, como se torna cada vez mais "Eu" diante do reconhecimento de vários outros, e não apenas dos pais ou da mãe.[13]

Muitas vezes, este aporte de reconhecimento e valor também é necessário para os pais ou cuidadores poderem exercer suas funções. Por exemplo, recebemos uma família cujo bebê foi exposto ao Zika vírus. Eles temiam que o filho fosse portador de microcefalia, supondo que teria uma "deficiência", o que gerou grande dificuldade na interação com ele. Em uma situação como esta, quando o cuidador pode ver a responsividade do bebê ao meio, quando pode participar desta conquista, os dois juntos ganham o mundo!

Nestes anos, tivemos a oportunidade de receber crianças vindas de abrigos, acompanhadas de seus cuidadores, que iam revendo suas condutas e funções junto aos bebês abrigados, em função da experiência que adquiriram no grupo. Ao final do grupo, como grata surpresa, estes educadores relataram que nunca haviam tido tal prática e se surpreenderam com seus efeitos. Eles não apenas se tornaram agentes da conquista do bebê, como houve, também, um fortalecimento do vínculo.

O Grupo de Acompanhamento do Desenvolvimento Infantil[14] mostrou-se um potente dispositivo de saúde, um espaço em que os cuidadores puderam deixar fluir sua capacidade de criação, lugar de sonhos. Esta é a potência de uma "Clínica em Saúde", um espaço sustentado para que seja possível refletir, trocar e construir modos de estar, encontrando novas soluções aos entraves que as histórias de vida possam apresentar.

 

O acontecer psíquico e a alteridade: entre presença e ausência, a construção da fantasia

A clínica do acompanhamento do desenvolvimento infantil põe em cena nossa concepção sobre o papel da alteridade e das moções pulsionais[15] no processo do acontecer psíquico. Nas escolas de psicanálise, existem visões distintas sobre o tema[16], "quer porque levam mais em conta a função do outro e da realidade exterior"?- o relacional, quer porque privilegiam a "economia da energia psíquica"?- o pulsional[17]. O fato é que, quando atendemos bebês, vemos que ambas posições não são excludentes, mas indicam alguns rumos para nossas intervenções.

Desde os primórdios da psicanálise, Freud se ocupa dos processos da constituição psíquica e faz referência à vida psíquica dos bebês desde O projeto de uma psicologia científica[18], quando discorre a respeito da importância do próximo (nebenmensch) e dos seus cuidados para o acontecer psíquico. Ao se fazer presente, propiciando prazer e desprazer ao bebê, o outro fornece notícias sobre ele, sobre o ambiente e a realidade.

Convido o leitor a adentrar na questão de como o ambiente, o vivido e o outro (alteridade), aliados aos destinos das moções pulsionais, se tornarão o mote da fantasia. Tomemos como metáfora a brincadeira do "cadê/achou". Neste jogo, o adulto se cobre ou cobre o bebê e pergunta a ele: "cadê o bebê?". Quando ele se descobre, diz: "achou o bebê!". Os bebês adoram este jogo! Ao ver o outro excitante, a fruição da excitação produz registros de si mesmo para o bebê. Mas, junto com esta excitação, ele vê o outro, e não ele mesmo. Ele se vê pelo outro, terá notícias de si por meio do outro. O próximo propicia a percepção tanto da realidade interna quanto da realidade externa, esta última definida como o mundo tal qual é percebido por nós na experiência imediata. Esta percepção inicia-se no momento em que o bebê, incapaz de eliminar a estimulação desprazerosa que vem de dentro do seu organismo, depende de uma ação específica do outro, para que possa apaziguar a intensidade da estimulação desconfortável.

Isso ocorre porque, ao ter, repetidamente, suas necessidades satisfeitas, o bebê armazena as imagens mnemônicas correspondentes ao objeto que apaziguou suas tensões internas. Estas imagens têm a potência de vincular a satisfação aos atributos do outro, como a voz, o olhar e o cheiro, fazendo com que o recém-nascido encontre, entre a imagem de satisfação e o outro, uma identidade perceptiva. Segundo Freud:

 

O organismo humano é, no início, incapaz de levar a cabo a ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, na medida em que, através da eliminação pelo caminho da alteração interna, um indivíduo experiente atenta para o estado da criança. Esta via de eliminação passa a ter, assim, a função secundária, da mais alta importância, de comunicação, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais.[19]

 

Diante de uma necessidade, um bebê chora, grita, e alguém lhe escuta e atende sua demanda, vindo em seu socorro. A repetição da experiência de ser atendido gera uma percepção de que algo acontece ao gritar: surgem peito/leite, voz, cheiro, sensações?- lembranças parciais que, futuramente, se reunirão na percepção de um objeto. Quando a vivência de satisfação for suficientemente repetida, a tendência será repetir o circuito, investindo-se na marca mnêmica correspondente à vivência de descarga de satisfação. Frente a uma nova premência, ele evocará a imagem?- representação-lembrança?- ligada a esta vivência, procurando obter a mesma satisfação. Mas se, desta forma, o apaziguamento almejado não vem, o bebê se vê obrigado a realizar um trabalho de buscar uma identidade entre a imagem mnemônica associada à sensação de saciedade e o mundo externo.

Nesse processo, haverá uma série de reordenamentos das marcas psíquicas?- início da constituição da memória. Posteriormente, em um segundo reordenamento ou transcrição, o bebê terá de buscar uma identidade entre os traços mnêmicos que produzirá a memória e o ambiente. Estes primeiros movimentos de ligação serão a base que sustentará uma busca ativa do objeto no futuro e a capacidade de representação de suas vivências.

Ainda segundo Freud: "Através do próximo, o homem aprende a se reconhecer" e a reconhecer o seu redor. Será, então, sob determinados indícios do próximo (Nebenmensch) que se construirá uma identidade entre o corpo do outro e o próprio, entre um signo de percepção e a realidade. É importante observar que, nestes primeiros movimentos, será bastante difícil distinguir fatores internos e externos como fatores que não sejam interdependentes no acontecer psíquico.

Todas estas questões, amplamente debatidas na literatura psicanalítica, despertam um particular interesse na clínica de acompanhamento do desenvolvimento infantil, uma vez que a observação do estilo do bebê diante dos seus desconfortos e a maneira como o cuidador apazigua suas demandas são marcadores que refletem como estão o bebê, sua família e a relação entre eles, além de indicar caminhos para nossas intervenções.

É importante observar a capacidade de uma mãe ou cuidador em estar atento e poder satisfazer as necessidades iniciais de um bebê, alternar progressivamente entre estar presente ou ausente. Sabemos que, cada vez mais, pais se veem sozinhos nesta tarefa e muitos ficam bastante desorientados, pela dificuldade em codificar os sinais de seu bebê. Por vezes, não conseguem dele se afastar nem deixar que explorem um pouco do mundo por si.

Em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico[20], veremos que a série prazer/desprazer e a realidade são os princípios do acontecer psíquico. Até então, Freud nos lembra que estávamos habituados a tomar como ponto de partida os processos psíquicos inconscientes, remanescentes de uma fase em que eram os únicos existentes, cuja principal característica era o domínio do princípio de prazer. Ele prossegue, afirmando:

 

[...] Neste estado, de modo análogo ao que ainda hoje ocorre todas as noites com o nosso pensamento onírico, o pensado (o desejado) apresentava-se simplesmente de forma alucinatória. Foi preciso que não ocorresse a satisfação esperada, que houvesse uma frustração, para que essa tentativa de satisfação pela via alucinatória fosse abandonada. Em vez de alucinar, o aparelho psíquico teve que decidir então conceber [Vorzustellen] as circunstâncias reais presentes no mundo externo e passou a almejar uma modificação real deste. Com isso foi introduzido um novo princípio da atividade psíquica: não mais era imaginado [Vorgestellt] o que fosse agradável, mas sim o real, mesmo em se tratando de algo desagradável. Essa instauração do princípio de realidade mostrou-se um passo de importantes consequências.[21]

 

Quais foram estas consequências? Segundo Freud, a partir da frustração da satisfação esperada pela via alucinatória, uma série de adaptações do funcionamento psíquico se processa: a realidade exterior adquire maior importância, aumentando o papel dos órgãos sensoriais voltados para o mundo externo e para a consciência, ou seja, a atenção passa a ser importante. Diante de uma "nova necessidade inadiável", é preciso conhecer e registrar o mundo externo. Forma-se, então, um sistema de notações, a memória. Para lidar com as representações geradoras de desprazer e decidir se estas estão ou não de acordo com a realidade, forma-se um sistema de juízo. Por fim, a motricidade ativada pelas sensações passa a ter uma função de ação, com o intuito de modificar a realidade, a partir de processos de pensamento, possibilitando tanto suportar o aumento das tensões endógenas quanto lidar com o tempo necessário para sua eliminação. O pensar, que tem sua provável origem inconsciente, se torna consciente "por meio da fixação [Bindung] a restos de palavras"[22].

O princípio da realidade possui, portanto, tanto a potência desencadeadora de um "eu realidade" quanto a atividade do pensamento. Cabe lembrar, porém, que uma parte irá permanecer livre deste princípio, apenas submetido ao princípio de prazer?- a fantasia?- que tem início com a brincadeira e prossegue com o devaneio.

Vemos, então, como a realidade introduzida pela ação do outro, por meio de repetidas experiências, cuja alternância entre presença e ausência é fundamental para a diferenciação desta percepção, estrutura as sensações oriundas do organismo e inaugura a percepção externa do bebê e a consciência de si próprio. Cabe lembrar que o processo não ocorre de uma única vez nem abarca toda extensão do psiquismo. Podemos, então, traçar a seguinte rota a partir da frustração da satisfação no investimento alucinatório: atenção → memória → juízo → ação → pensamento → fantasia.

Esta transformação psíquica, introduzida pela premência, quer de avaliar o mundo externo, quer de estabelecer pontes entre a realidade e a memória, se observa no bebê, aliada à maior habilidade motora para execução de suas pesquisas e buscas no mundo. Isto, particularmente, nos interessa para pensar como incide a nossa intervenção com os bebês, pois supomos que, sem estes registros de vivência da série de prazer, eles teriam pouca motivação para buscar e pesquisar o mundo. Podemos dizer, também, que o juízo inaugura o desenvolvimento do eu. O que era "eu prazer" passa a ter uma parte que se torna "eu realidade". Vemos, assim, como este contato com o outro e a realidade será fundamental para a constituição do Eu e da fantasia.

Após discorrer sobre como os princípios de prazer e realidade vão incidir nos destinos da fantasia, Freud nos adverte que:

 

[...] nunca devemos aplicar os critérios da realidade às formações psíquicas inconscientes, pois, se o fizermos, acabaremos por subestimar o papel das fantasias na formação de sintoma só pelo fato de elas não serem realidade.[23]

 

Cabe se ater, também, ao fato de que Freud, a partir de 1916, introduz em sua obra a noção de séries complementares[24], em que nos alerta para o fato de que o desenvolvimento da libido percorre extenso caminho, e nem todas as fases preparatórias correm igualmente bem e são superadas completamente: "partes da função [da libido] ficarão retidas de forma duradoura nesses estágios iniciais, e o quadro geral do desenvolvimento sofrerá certa medida de inibição"[25]. Tanto fatores internos como acidentes externos podem influenciar no percurso da libido, resultando nos mecanismos de fixação libidinal ou frustração, respectivamente.

Tratando-se do exame de suas causas, os casos de adoecimento neurótico dispõem-se numa série, no interior da qual os dois fatores?- constituição sexual e vivências, ou, se quiserem, fixação libidinal e frustração?- encontram-se representados de maneira que, crescendo a participação de um deles, a do outro diminui. Nas duas pontas dessa série estão os casos extremos.[26]

Mais adiante, neste mesmo texto, vemos que este mecanismo pode ser extensivo a outras situações psicopatológicas, cujas fronteiras entre os mecanismos internos e externos são tênues, o que acentua o fato de que "um impedimento interno, na pré-história do desenvolvimento humano, tenha se originado de obstáculos externos reais"[27]. Também fica evidente que não se pode descartar a influência que o Eu irá exercer no curso da pulsão sexual, e que "a propensão ao conflito depende do desenvolvimento tanto do Eu como da libido"[28] .

Todos estes pontos levantados colaboram com a ideia de que, ao se fazer uma intervenção em tempo, seria leviano atribuir um único fator como causa de expressões tão complexas. Devemos levar em conta o "estilo" de cada um dos envolvidos neste encontro: bebê, cuidadores e história familiar. Isto é, como se dá o encontro das moções pulsionais do bebê com o outro, a realidade e o círculo social. Nesta clínica, veremos que, nos entraves iniciais do acontecer psíquico, ora há a predominância de um, ora do outro.

 

A alteridade e a construção da fantasia

Há diversos caminhos e autores que podem ser eleitos para refletir acerca da clínica dos primeiros anos de vida. Não podemos, porém, ao falar dela, deixar de relembrar a teoria de Spitz, por ser este autor um dos primeiros a estudar e descrever o desenvolvimento psíquico no primeiro ano de vida. O autor trabalha com a ideia de organizadores psíquicos que resultam de processos de integração, reestruturando o sistema psíquico em níveis mais elevados de complexidade. Para que este processo se suceda, é fundamental que se consolide uma relação estável do bebê com um outro que lhe preste cuidados. Ao contrário da maturação, que transcorre naturalmente, de acordo com o hereditário, os organizadores psíquicos só se estabelecem caso essa relação do bebê com o cuidador se consolide com êxito, a partir da qual o desenvolvimento poderá progredir. Spitz sublinha que:

 

[...] embora o equipamento inato exista no bebê desde o primeiro minuto de vida, ele tem de ser ativado; o lampejo vital tem que ser conferido ao equipamento através de trocas com outro ser humano, com um parceiro, com a mãe. Só uma relação recíproca é capaz disso[29]. (grifos meus)

 

Vejamos como evoluem os indicadores da organização psíquica em Spitz: inicialmente, temos o sorriso, em torno dos três meses, que é a primeira manifestação ativa do bebê, indicando a transição da passividade para a atividade em torno de um pré-objeto. Em seguida, próximo aos quatro meses, também manifestará desagrado em se separar deste. O pré-objeto é apenas um sinal, uma gestalt do rosto humano, que posteriormente se transformará no objeto propriamente dito. O reconhecimento de um rosto individual é um desenvolvimento posterior, quando o bebê se torna capaz de distinguir um rosto entre muitos e de transformá-lo em seu único objeto próprio de amor individual[30].

Aos sete ou oito meses, como segundo indicador, temos a rejeição ao estranho, por ver frustrado seu desejo de encontro com o objeto de amor (objeto libidinal), agora bem diferenciado, revelando que a criança já possui uma volição e intenção nas suas relações, estabelecendo-se as primeiras fronteiras entre o eu e o isso, assim como entre o eu e o outro. Como terceiro organizador, no segundo ano de vida, em torno do décimo quinto mês, teremos o domínio do "não", um gesto semântico que indica a aquisição da capacidade de julgamento, trocas recíprocas de mensagens e socialização.

A ideia do desenvolvimento do acontecer psíquico de Spitz é alinhada ao texto de Freud (1911). Ambos irão sublinhar a formação do juízo como elementar para a constituição de um eu. O não para um e a rejeição de um elemento para o outro, também têm o potencial de inaugurar as primeiras inscrições do eu e do não-eu. A realidade inaugura a função do eu e permite refletir sobre a importância da alteridade para a constituição da fantasia.

Winnicott faz uma consideração sobre a realidade que muito contribui para nossa reflexão sobre a importância da alteridade na introdução da realidade e na construção da fantasia, quando questiona o que é ou não é real para cada pessoa, pois não nascemos com esta capacidade de fazer a distinção entre ambos, fantasia e realidade. Portanto tal distinção só será possível se "cada um de nós tiver uma mãe capaz de nos apresentar o mundo em pequenas doses".

 

[...] o bebê começa nada sabendo acerca do mundo, e na época em que as mães terminaram sua tarefa o bebê já se converteu em alguém que conhece o mundo, que pode descobrir um caminho para viver nele e até para tomar parte na maneira como ele se conduz.[31]

 

Dialogando com esta passagem, vemos que os cuidados em doses acabam por modular o destino das intensidades oriundas do organismo do bebê frente às exigências da realidade. Quando estas intensidades encontram seus alvos/objetos, passam por transformações, transcrições e, por fim, serão representadas, inaugurando a função de representação, que é tributária ao próximo[32].

Pensamentos e fantasias indicam que se estabeleceu uma nova ordem, um percurso do mundo sensorial para o mundo representacional. Nessa evolução, parece haver uma torção, pois as percepções do mundo externo serão armazenadas na memória e também serão uma "encenação no psiquismo de um desejo imperioso, que não pode ser saciado pela realidade"[33]?- em outras palavras, a fantasia.

Freud[34] afirma que devemos buscar na infância os primeiros traços de atividade criativa. Toda criança, ao brincar, constrói para si um mundo próprio: arranja as coisas de seu mundo numa ordem nova, do seu agrado. Ela constrói um acervo, um refúgio, uma intimidade consigo mesma, de modo que a fruição da fantasia, a descarga da excitação associada a esta fantasia, possa prescindir da presença concreta dos seus doadores. Portanto, haverá um momento em que a criança não precisará do cuidador, dos familiares para apaziguar-se. Esses, por sua vez, precisam aceitar o fato de que o bebê não se gratifica apenas com sua presença e resignar-se a ser apenas doadores e fonte de motivação do início deste processo. A função da alteridade, da maior importância para o acontecer psíquico, põe em movimento a função representativa, permitindo ao bebê não apenas representar suas vivências, como também recriá-las e dar destino a suas aparições conflitivas. A partir da alteridade, ele poderá organizar seu mundo, à sua maneira. Ou seja, nesta transição, parte do mundo, vivido em pequenas doses, tem a potência de tornar-se "um santuário" (Rocha)[35], no qual todos podemos nos recolher e fantasiar. Sugiro, portanto, que a trajetória aqui descrita sirva de parâmetro na clínica da primeira infância.

No Grupo de Acompanhamento do Desenvolvimento Infantil, incentivamos cada família a apresentar e dosar o mundo externo, ou a realidade, incluindo a cultura, as relações sociais e suas ligações, suas possibilidades e impossibilidades. Quando há entraves, nos ocupamos de seus impedimentos, reconhecemos os sucessos e procuramos não deixar o adulto sentir-se tão solitário em sua tarefa de ser pai, mãe ou cuidador. Acreditamos que tal exercício abra novas escolhas e possibilidades para quem frequenta o grupo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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