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ÍNDICE TEMÁTICO 
67
Entre Morfeu e Tânatos
ano XXXIV - Dezembro 2021
184 páginas
capa: Feres Lourenço Khoury
  
 

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Resumo
O presente artigo trata dos entrelaçamentos do singular e do social na escuta analítica. Somos seres constituídos a partir do laço com o outro e levar em conta as dimensões sociais e políticas no nosso trabalho é fundamental. Temos visto uma efervescência de projetos clínicos psicanalíticos em diferentes territórios que podem nos ajudar a repensar nossa ética e prática analítica.


Palavras-chave
clínicas públicas; pandemia; racismo; sofrimento sociopolítico, psicanálise social.


Autor(es)
Tide Setubal S. S. Nogueira Nogueira
é psicanalista, membro do Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do projeto Territórios Clínicos, da Fundação Tide Setubal.


Notas
1. E. Danto, As clínicas públicas de Freud, p. 9.
2. S. Freud, Psicologia das massas..., p. 14.
3. M. Debieux, A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento, p. 196.
4. S. Alonso, O tempo que passa e o tempo que não passa.
5. C. Dunker, Até que ponto os aplicativos que prometem ajudar na saúde mental funcionam?
6. A.Turriani, Questões subjacentes às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios vulnerabilizados pela violência política, p. 345.
7. N.M. Kon; M.L. Silva; C.C. Abud, O racismo negro no Brasil, p. 75.
8. Bento, Pactos narcísicos no racismo.


Referências bibliográficas

Alonso S. (2006). O tempo que passa e o tempo que não passa. Cult!, n. 101.

Bento M.A. (2006). Cidadania em preto e branco. São Paulo: Ática. 4a ed.

Dunker C. (2020). Até que ponto os aplicativos que prometem ajudar na saúde mental funcionam? Blog do Dunker, UOL, São Paulo, 15 de set. de 2020.

David E. (2020). Aquilombar a cidade: território, raça e produção de saúde em São Paulo. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 10, agosto 2020.

Freud S. (1921/2011). Psicologia de grupo e análise do ego. Obras completas, v. 15. São Paulo: Companhia das Letras.

Kristeva J. (2002). As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco.

Rosa M.D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp.

Turriani A. (2019). Questões subjacentes às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios vulnerabilizados pela violência política. Teoría y Crítica de la Psicología 12 (2019), 340-351. http://www.teocripsi.com/ojs/ (ISSN: 2116-3480).

Kon N.M.; Silva M.L.; Abud C.C. (2017). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva.





Abstract
This article explores the intertwining of the singular and social aspects, present in analytical listening. As humans, we are made of our bonds with others, and it is essential that we take the socio-political aspects of these bonds into account. We are seeing an increase in the number of clinical psychoanalytical projects in a variety of territories that can help us rethink our ethical and analytical practices


Keywords
Public clinics; pandemic; racism; socio-political suffering; social psychoanalysis

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 TEXTO

Territórios clínicos

uma escuta psicanalítica entre o singular e o social


Clinical territories
analytical listening at the intertwining of the singular and social aspects
Tide Setubal S. S. Nogueira Nogueira

Em 1918, no V Congresso Internacional de Psicanálise, Freud estimula pela primeira vez, em seu discurso, a criação de clínicas públicas, inaugurando um campo amplo e concreto de uma psicanálise com mais inserção no tecido social. Em seu livro As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, Elizabeth Danto cita uma fala de Freud no congresso:

 

É possível prever que a consciência da sociedade irá despertar, e fará com que se lembre de que o pobre deve ter tanto direito à assistência para sua mente quanto dispõe de auxílio oferecido pela cirurgia a fim de salvar sua vida; de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose, e tampouco podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da sociedade. […] Então serão criadas instituições e clínicas ambulatoriais […] e os tratamentos serão gratuitos.[1]

 

Essa fala marca o início de uma discussão mais explícita sobre o papel também social da psicanálise. O tratamento psíquico passa do âmbito privado para uma questão de saúde pública, atribuindo a responsabilidade pelo cuidado da doença mental para toda a comunidade civil.

Cabe também considerarmos que, mesmo no tratamento analítico de um indivíduo, estamos necessariamente pensando na rede de relações que o constituiu e na qual ele se insere. Em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), já na introdução do texto, Freud aponta que a oposição entre a psicologia individual e a psicologia social, que à primeira vista pode parecer muito acentuada, perde sua nitidez quando a examinamos mais profundamente. Sobre isso, ele nos diz que:

 

É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode se abstrair das relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é, via de regra, considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado. [2]

 

Nesse sentido, mesmo quando estamos nos referindo a uma experiência clínica do um a um, no laço analista-analisante, e certamente inclusive em outros modelos como atendimentos de grupos, há um impacto do trabalho analítico não somente na vida desse sujeito mas também nos vínculos intersubjetivos ao seu redor. Ou seja, o reconhecimento de que estamos imersos num sistema de relações nos permite pensar que a transformação que acontece no interior de uma experiência clínica necessariamente afeta e impacta a rede de relações na qual esse sujeito está inserido.

Então, ainda que a psicanálise tenha sido criada por Freud em um contexto burguês do final do século XIX, é sempre uma psicanálise que diz e trabalha com algo da ordem social. Ao escutar o singular estamos escutando simultaneamente algo do coletivo, pois são eixos imbricados nos seres humanos. Nós nos constituímos como sujeitos a partir das relações com o outro e ainda dentro de um contexto social, pensamos e sentimos a partir do que foi possível experimentar nesse contexto formador. Portanto, a psicanálise trabalha a partir da interação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, sendo ao mesmo tempo singular, social e política.

O que também nos interessa salientar aqui é que a escuta psicanalítica é multifacetada e vai além dos consultórios. A psicanálise não se trata de uma prática individualizante e descontextualizada, mas sim de uma posição ético-política que aponta para a emancipação e liberdade do sujeito imerso num tecido social.

A psicanalista Miriam Debieux Rosa escreve sobre “a dimensão política do sofrimento produzido nas e pelas relações sociais”[3], argumentando que não é possível retirar o sujeito do contexto social, uma vez que ele é produto e produtor simultaneamente dos laços e discursos; quando ele adentra o campo da linguagem, há uma alienação no campo do Outro e precisa ter tempo e espaço para separar-se, essa é a maneira do desejo advir. Ela aponta que todo esse processo é dificultado pelo sistema econômico neoliberal, do qual fazemos parte na atualidade. Há um desamparo do sujeito quando o discurso social e capitalista vigente produz uma destituição subjetiva; ou seja, esse discurso não escuta os sujeitos nos seus desejos e nas suas singularidades, ao contrário, visa impor uma maneira de ser e agir. Para fazer frente a esse discurso e a essa destituição subjetiva, a psicanálise trabalha a partir da centralidade no sujeito do inconsciente, entendendo que é pela via da escuta que o sujeito pode emergir e separar-se. Ela não se propõe a dar conta de todas as facetas do campo social, mas cabe a ela a investigação da dimensão inconsciente presente nos sujeitos e suas relações.

Atualmente, mais de 100 anos depois do histórico discurso de Freud citado no início, a psicanálise está presente?– através da atuação direta de psicanalistas e/ou também embasando atuações de outros profissionais?– em muitos territórios clínicos, atuando de maneira crítica e contribuindo para a transformação da sociedade. Encontramos psicanalistas nas redes de atendimento básico (SUS e SUAS), nas escolas, nas instituições jurídicas, na escuta de adolescentes em conflito com a lei, nos abrigos, no atendimento à população de rua, na luta antimanicomial, na luta antirracista, na luta feminista, nos atendimentos à população geral em praças públicas, clínicas sociais e instituições diversas. Notamos nos últimos anos, especialmente a partir de 2018?– o que certamente também se liga à ebulição das discussões e atritos políticos na eleição presidencial daquele ano?– um aumento de projetos, intervenções e clínicas públicas psicanalíticas nos diversos territórios da cidade de São Paulo.

A presença da psicanálise no campo social também acontece fortemente por meio das instituições de formação, das universidades e de muitos coletivos que, com seus inúmeros cursos, textos, livros, seminários, lives, alimentam, embasam e norteiam teoricamente uma atuação clínica nos consultórios e além deles. Portanto, sua relevância atual para a sociedade, assim como suas contribuições para os avanços teóricos e práticos no âmbito mais amplo das questões da saúde mental, se faz muito presente.

 

Desafios da saúde mental na atualidade e o papel da psicanálise

Vivemos um momento bastante alarmante no que concerne às questões de saúde mental. Dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que a depressão, só para citar um exemplo, deve se tornar a doença mais frequente do mundo nos próximos 20 anos, afetando mais pessoas do que outras doenças como câncer ou doenças cardíacas, com enormes custos sociais e econômicos para a sociedade. Ainda segundo a OMS, em 2019, o Brasil contabilizava cerca de 12 milhões de pessoas acometidas pela depressão, o que corresponde a 5,8% da população, uma taxa superior aos 4,4% da média global. Quando o tema é ansiedade, o Brasil é campeão latino-americano: são quase 20 milhões de acometidos, o equivalente a mais de 9% da sua população.

Se antes da pandemia os números já eram alarmantes, um estudo chamado One Year of Covid-19, realizado pela Ipsos para o Fórum Econômico Mundial, com 30 países, apontou que 53% das pessoas entrevistadas no Brasil acreditam que sua saúde mental mudou para pior desde o início da crise de Covid-19. Os índices brasileiros colocam a nação em quinto lugar entre as que mais têm sentido as consequências da pandemia em seu bem-estar emocional.

Estamos assistindo um forte aumento das doenças mentais como depressões, crises de angústias, doenças ligadas ao trabalho, como por exemplo as estafas mentais (os chamados burnouts) e adicções, entre outras. Nunca se falou tanto em saúde mental e certamente a crise sanitária na qual estamos imersos deixará um vasto e longo trabalho a ser feito nesse campo. A pandemia nos coloca diante de um trauma coletivo, que mesmo atingindo as pessoas de diferentes maneiras e intensidades, segundo as suas singularidades, os seus contextos sociais e as suas experiências vividas nesse momento, está exigindo de cada um de nós grande elaboração psíquica. São inúmeras perdas por mortes e por outras dimensões?– como a perda de um trabalho ou modo de trabalhar, que foi transformado pela pandemia e poderá ficar para sempre em um novo formato?– que colocam em jogo um necessário trabalho de luto, tecido a partir do indivíduo mas também do coletivo, durante os vários próximos anos.

Para além das dificuldades psíquicas trazidas pela pandemia, já vínhamos assistindo, mesmo antes dela, transformações da vida subjetiva a partir dos avanços tecnológicos, redes sociais e inteligência artificial, que seguem afetando muito a nossa vida psíquica. Há uma intensa aceleração da vida e concomitantemente uma redução da vida interior. Esse fenômeno não tem a ver com a redução das atividades da vida cotidiana, pois nós nunca viajamos tanto, fomos a tantas e diversas programações, assistimos a tantas lives, tiramos tantas fotos, assim como também talvez nós nunca tenhamos trabalhado tanto e tão ininterruptamente. Redução da vida interior tem a ver então com um certo empobrecimento da vida psíquica, falta de autoconhecimento, falta de tempo para refletir sobre a vida, falta de tempo de nós com nós mesmos e sobretudo falta de aprofundamento nas reflexões sobre si mesmo e sobre o outro. Como se pergunta Kristeva em seu livro As novas doenças da alma (2002): “Quem, hoje em dia, ainda tem alma?” Parece que estamos num momento da contemporaneidade no qual não se dispõe nem do tempo nem do espaço necessários para se tecer uma alma.

O tempo psíquico não tem a mesma velocidade do tempo do relógio. Para o psiquismo, além do tempo para viver uma experiência, se faz igualmente importante o tempo para a representação e a elaboração psíquica dessa experiência. Só deixa marca no psiquismo o que é significativo; é o tempo da ressignificação. Sobre isso, Silvia Alonso nos diz que:

 

O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um “outro tempo”, o tempo da “mistura dos tempos”, o tempo do “só depois”, o “tempo da ressignificação”. […] “A história de um sujeito não é, portanto, uma linha reta, mas é traçada por pontos de condensação nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam, forçando a presença do passado no atual, resistindo a qualquer linearidade cronológica e construindo uma realidade psíquica que não coincide totalmente com a realidade material.[4]

 

Então, numa realidade contemporânea em que vivemos pressionados?– por uma aceleração da vida, num tempo dos excessos e do “sempre correndo”; por dificuldades de se viver numa pandemia; por enormes exigências de uma economia neoliberal, na qual temos de estar o todo tempo produzindo e de forma eficiente?– não nos surpreende que os números referentes à saúde mental no Brasil e no mundo estejam tão preocupantes. Não temos nos dado o tempo e o espaço psíquicos necessários para lidar com tantos desafios. Muitas escolas, empresas e outras instituições estão tendo de lidar com um crescente número de afastamento de seus professores e colaboradores devido a problemas com a saúde mental, número que já ultrapassou os afastamentos por doenças físicas ou acidentes de trabalho. Ao apresentar a crise de saúde mental mundial, mesmo antes da pandemia, Dunker aponta o seguinte dado:

 

A situação torna-se ainda mais crítica quando olhamos para os recursos especializados para enfrentar o problema. Um interessante experimento conjectural aponta que se reuníssemos todos os profissionais com formação específica em saúde mental em todo o mundo (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, social workers, conselheiros escolares etc.), na Inglaterra, o país reputado como o que conta com melhores equipamentos e mais capilaridade de cobertura, não chegaríamos a atender mais de 35% da demanda.[5]

 

Quando nos voltamos para a especificidade do contexto brasileiro, temos de um lado a saúde mental vivendo um momento crítico, deixando os consultórios particulares abarrotados de pacientes e, do outro, parte da população vulnerável econômica e socialmente, com o acesso marcadamente limitado aos atendimentos, devido, entre outras questões, a uma rede pública precária e insuficiente. Há uma necessidade de mais investimentos públicos nas redes SUS, SUAS e CAPS para aumentar a capacidade de atendimento à população. A falta de atendimento psíquico pode agravar ainda mais a situação de vulnerabilidade social da população, colocando a questão do acesso no centro da questão. Aqui há uma pergunta fundamental a ser feita: dentro dessa complexa realidade, qual lugar a psicanálise, ou melhor, qual lugar os psicanalistas desejam ocupar? Como se posicionar diante dessa crise?

Apesar desse cenário extremamente complicado no que tange às políticas públicas, há, por outro lado, uma efervescente criação de projetos no âmbito das clínicas públicas psicanalíticas?– de grupos, coletivos, instituições e até universidades?– que geram uma oportunidade valiosa para ampliar justamente o acesso das populações mais vulneráveis socialmente ao atendimento psicanalítico. Estes grupos também têm estudado e fomentado trocas teórico-clínicas entre as periferias e o centro, ou entre as diversas periferias da cidade. Se entendermos a importância de deslocar o centro da cidade, repensando a relação entre os diversos territórios, podemos ampliar horizontes e reflexões, assim como incentivar a interlocução entre os diversos territórios e pensamentos clínicos nas periferias, algo com que apostamos que todos se enriquecem. Vale lembrar que essas iniciativas não substituem a necessidade de ampliarmos a rede SUS de saúde mental como forma primordial de tornarmos a saúde mental um direito de todos.

Essa atuação ético-política que produz uma circulação na cidade nos aponta caminhos para o enfrentamento das desigualdades sociais e territoriais. Há uma oportunidade de trocar saberes, fazendo-se uma psicanálise de corpo presente, aprendendo e expandindo conhecimentos, a partir de uma posição de diálogo com os territórios e seus sujeitos. Isso implica, portanto, numa ideia de não hierarquização dos lugares de fala, ou seja, a psicanálise não é a única verdade epistemológica. Existem muitos campos de saberes, que se tiverem algumas bases e conceitos comuns podem construir juntos uma atuação potente e inovadora nos territórios.

A descentralização das práticas e dos conhecimentos psicanalíticos vai além da tentativa de propiciar o acesso e, em consonância, com Turriani, entendemos que é necessário

 

[…] transformar radicalmente os modos de transmissão e formação em psicanálise, pois pouco adianta que sigamos elaborando teorias sobre o sofrimento psíquico nas periferias?– ou seja, teorias sobre uma maioria da população excluída do direito de contar sua história em nome próprio?– se essas mesmas pessoas são privadas dos recursos teóricos e técnicos para elaborarem suas próprias versões sobre seus sofrimentos e também sobre os nossos.[6]

 

Reconhecemos que os processos tradicionais de formação de analistas envolvem um custo elevado, além do tempo de deslocamento até os espaços de formação teórica e transmissão, como as instituições e escolas. Há, também, análise do analista e supervisão, formando assim o famoso tripé psicanalítico, que, ao permanecer inalcançável para as populações periféricas, ratifica a reprodução de desigualdades, não democratizando o atendimento nem a formação. Sob essa ótica, a pandemia e os encontros que se transportaram do real dos corpos para o “ao vivo” da tela, podem, em certa medida, auxiliar na democratização do acesso, já que o desafio da mobilidade dos corpos dá lugar ao desafio de acesso à internet mais democrático. Mesmo sendo necessária uma reflexão sobre as limitações do trabalho on-line, que certamente não é igual ao presencial?– também da qualidade e dos custos de se ter uma boa internet?–, podemos pensar suas potências, como a capacidade de ultrapassar fronteiras, expandir horizontes, fazendo chegar o atendimento psicanalítico nas regiões mais periféricas do país e intensificando as trocas de formação entre diversos territórios da cidade.

Pensando ainda no longo caminho da formação de um analista, realizado a partir de um processo complexo de aprendizados, transformações e amadurecimentos, abrir diferentes possibilidades, inclusive para essas formas on-line praticadas desde o início da pandemia, mas não somente, pode ser o início de uma transformação radical e potente, justamente pela perspectiva do acesso, um dos obstáculos importantes a ser superado para se pensar numa maior democratização da psicanálise.

A desigualdade socioterritorial e o racismo como produtores de sofrimento psíquico

Ao tratarmos questões que envolvem desigualdades territoriais e o campo da saúde mental, é de suma importância frisar também os atravessamentos raciais, conforme nos alerta Silva, quando descreve as implicações do racismo na construção dos processos identitários e identificatórios: “[…] os atributos negativos, criados para legitimar a ideologia racista, definem os processos de identidade e identificação do povo brasileiro, produzindo marcas, rompimentos e sofrimentos psíquicos”[7]. Conhecer a história brasileira passa pelo entendimento de que o racismo permeia as relações sociais e somente a partir da compreensão dessa estrutura é possível ouvir o outro considerando seu contexto social e histórico. Posto isso, e considerando que segundo o IBGE 54% da população brasileira é negra, este terreno das relações raciais se faz um dos campos mais relevantes para uma atuação engajada no campo da luta pela diminuição das desigualdades territoriais, visto que, muitas vezes, elas se expressam numa desigualdade também racial. Não é uma coincidência que a pandemia, ao trazer para o centro do debate as desigualdades sociais, trouxe junto o tema do racismo e das oportunidades desiguais dele decorrentes.

Quando falamos de branquitude e negritude estamos falando não só de lugares simbólicos, mas também de território, ou seja, de uma localização concreta na cidade. Baseando-se em dados do Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, de 2019, Maria Aparecida da Silva Bento comparou o Jardim Ângela (bairro mais negro da cidade) com Moema (bairro mais branco da cidade). “Viver neles é viver em dois mundos apartados em relação ao acesso à saúde, à cultura, ao emprego formal e até mesmo em relação à média de idade ao morrer”[8]. Segundo a psicóloga, no bairro de maioria branca as pessoas morrem, em média, com 80,5 anos, enquanto no bairro negro, com 58,9 anos; o tempo de espera para consultas médicas na atenção básica de saúde é de aproximadamente três dias e meio a mais para os moradores do Jardim Ângela, quando comparado aos moradores de Moema.

Visualizar esse mapa ainda tão desigual e centralizado do atendimento de saúde, incluindo a saúde mental, da população negra e da branca na cidade de São Paulo, adensa o questionamento sobre uma ampliação necessária da atuação da psicanálise nas diversas periferias. Essa atitude pode levar inclusive a uma revisão de estratégias ético-políticas, tendo em vista que a desigualdade social é um dos fatores relevantes na produção de sofrimento psíquico.

Conforme o pressuposto colocado no início desse texto, de que somos seres constituídos a partir do laço com o outro em um cenário social, político e cultural, temos que escutar os sujeitos a partir de suas singularidades mas também a partir de seu contexto político, social e cultural. Caso contrário, corremos o risco de psicopatologizar os sujeitos pelos seus impasses que, muitas vezes, são antes de tudo fracassos sociais. Esta narrativa culpabilizante do sujeito como único responsável pelas suas dificuldades exclui da cena um conflito importantíssimo para compreendê-la: as tensões políticas e sociais.

Os números dos estudos de saúde mental como a pesquisa já citada neste texto feita pelo Ipsos apontam que viver no Brasil tem gerado muitos sofrimentos: somos o quinto país que mais sentiu os efeitos nefastos da pandemia na sua saúde mental. Para além de conhecidos problemas sociais do nosso país, de uma aceleração desenfreada da vida promovida pelos avanços tecnológicos e do fracasso de uma política neoliberal, aqui temos, agravando intensamente esse quadro, um desgoverno que nos deixa imersos num sentimento profundo de desamparo. “E daí?” é o que nos diz o presidente diante de milhares de mortes pela pandemia, não só numa demonstração de descaso, mas sobretudo a marca de sua política genocida, em um país onde as pessoas que mais morreram são da população negra e vulnerável.

Diante desse cenário tão desafiador, enxergamos o potencial da psicanálise para expandir sua atuação dentro das políticas públicas de saúde mental. No entanto, enquanto muitos desses espaços se fecham para psicanálise devido sobretudo a diferenças ideológicas, vemos grupos e coletivos agindo a partir da sociedade civil, gestando ideias, fazendo trabalhos e intervenções para construir novas rotas, de maneira a descentralizar a escuta, a formação e a produção de conhecimento. Esses têm sido movimentos incrivelmente fecundos para a transformação da nossa sociedade.

Vivemos um momento crítico da humanidade. Habitamos um planeta avassalado pela pandemia, por polarizações políticas ensurdecidas e odiosas, pelo império dos excessos e da aceleração da vida, por desigualdades raciais e sociais abissais. Nesse cenário, levar em conta a dimensão política do sofrimento, no qual escutamos um sujeito em sua singularidade, não de uma maneira individualizada, mas também a partir de um olhar para os laços sociais, é fundamental. Escutar um sujeito em seu território, em sua terra, a partir de suas raízes e asas, além de ser urgente, traz potência e renovação para nosso fazer psicanalítico.


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