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Resumo
ENTREVISTA Patrícia Porchat Realização?Ana Claudia Patitucci, Bela M. Sister, Cristina Parada Franch, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan de Cardoso, Silvio Hotimsky e Tatiana Inglez-Mazzarella.


Autor(es)
Ana Claudia Patitucci

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Cristina Parada Franch Franch

Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

Silvio Hotimsky

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 ENTREVISTA

Identidades trans: desafios para a Psicanálise

Trans identities: challenges for Psychoanalysis
Ana Claudia Patitucci
Bela M. Sister
Cristina Parada Franch Franch
Danielle Melanie Breyton
Silvio Hotimsky

      Pode-se dizer que o percurso de Patrícia Porchat tem sido, sobretudo, um movimento sincero de busca renovadora - nos estudos, na clínica e na vida.

      Guiada por um particular interesse pela epistemologia da psicanálise e grande apreço ao rigor da leitura e interpretação de texto, herdada do pai filósofo, procurou um curso de especialização em filosofia, voltado para os fundamentos filosóficos da psicanálise, assim que se formou em psicologia. Em seguida, foi no curso de psicanálise do Sedes que deu início a uma formação psicanalítica, e, posteriormente, dedicou-se à sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), onde abordou questões relativas à metapsicologia e que foi publicada na forma de livro: Freud e o teste da realidade (Casa do Psicólogo/Fapesp, 2005).

      Num dado momento, permitiu-se o gesto espontâneo de viver outra paixão - o jornalismo - e foi trabalhar como repórter na Folha de S.Paulo, afastando-se temporariamente dos estudos e da clínica, por cerca de um ano.

      Entre 2003 e 2004, o atendimento de um paciente homossexual levou-a a eleger a homossexualidade masculina como tema de seu doutorado. Para ampliar seu conhecimento sobre esse universo, contatou ONGs e grupos LGBT+, passando a atender, além dos pacientes gays, trans, travestis e transexuais, o que expandiu sua clínica e sua pesquisa acadêmica. Na busca pela compreensão do sofrimento psíquico, se recusou a classificar a priori as questões de gênero com que se defrontava como desvios da normalidade, modo tradicional de a psicanálise entender a transidentidade.

Era preciso buscar referências nos estudos de gênero, e logo foi apresentada ao pensamento de Judith Butler, que se juntou a suas leituras no campo da sociologia onde encontrava estudos mais avançados sobre o tema. O feminismo de Butler, a sólida formação em filosofia e o amor pela psicanálise fizeram com que as críticas à psicanálise feitas por essa autora se tornassem uma referência importante para Patrícia pensar essas questões. Sua tese foi publicada em 2014: Psicanálise e transexualismo - desconstruindo gênero e patologias com Judith Butler (editora Jurená).

Procurando aprofundar seus estudos em um pós-doutorado, passa o ano de 2019 em Paris, na Université Paris Diderot (Paris 7), onde encontra o que considera uma interessante interlocução entre Lacan e Foucault.

      Patrícia leciona na graduação e pós-graduação de psicologia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Bauru), participa de cursos no Instituto Gerar de Psicanálise e, com bastante frequência, é chamada para participar de debates sobre identidades trans em congressos e seminários. Tem diversos artigos publicados em revistas especializadas e, mais recentemente, foi uma das coordenadoras do livro Psicanálise e Gênero: Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina (Editora Calligraphie, 2018). Patrícia é também coordenadora do grupo de pesquisa Psicanálise: Clínica, Teoria e Cultura da UNESP e pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Saúde da População LGBT (NUDHES), do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

      Para ela, não se trata de invalidar conceitos fundantes da psicanálise, como o complexo de Édipo e de castração, mas de ponderar que são insuficientes para dar conta do que Butler chama "as diferenças sexuais". Aceitar essa possibilidade cria a oportunidade de retrabalhar questões teóricas e conceituais do mainstream psicanalítico, construído em um momento histórico muito diverso do cenário atual. É um movimento necessário, considerando que certas manifestações da contemporaneidade só podem ser compreendidas fora das categorias cristalizadas.

      Não há como entender um público que representa a diversidade apoiado apenas no modelo vigente, que divide o mundo em duas formas às quais todos devem se amoldar. O desafio é aprender a encarar os estereótipos, mirando fora dos pontos marcados, onde a vista repousa por hábito, para descobrir outras marcas, tão válidas e presentes quanto as eleitas pelo status quo. Dessa forma, o elemento considerado anormal, por destoar do padrão, torna-se o representante de uma categoria, de uma normalidade até hoje sistematicamente apagada e que, à custa de muito esforço, começa a conquistar autorização para ser.

      Formular novos conceitos é um desafio enorme para o psicanalista que fez sua formação e se analisou tendo o modelo edípico como referência central. Mas, para Patrícia, ainda há outros. O analista precisa lidar com sua própria transfobia, para evitar que os preconceitos, o estranhamento, o desconforto frente ao que não soa familiar transformem-se em ruídos ou resistências, impedindo a escuta do paciente.

      O rompimento de certas amarras de percepção e compreensão só pode ocorrer mediante um esforço consciente e contínuo para libertar-se das identificações impostas pelo domínio restritivo da heteronormatividade binária. Exercício mais difícil para profissionais que, tendo crescido sob essa lógica, tiveram seu entendimento formatado no modelo hétero, ao contrário do que acontece com os profissionais mais jovens, que já se encontram, de alguma forma, aclimatados a essa nova cultura ou mesmo são analistas trans.

      Os temas relacionados ao universo LGBTQ+ interessam à psicanálise, não só porque são uma realidade no mundo contemporâneo, mas também porque encontram-se ligados a um fenômeno maior, que engloba a luta de movimentos de minorias para tornar visíveis os invisíveis, e inteligível o que era, até agora, considerado ininteligível e, por isso, tratado como "coisa de outro planeta". À medida que essas pessoas conquistam espaço de existência, também vão revolucionando a clínica psicanalítica e o que se pensa sobre os papéis sociais e as identidades de gênero.

 

Deborah Joan de Cardoso

PERCURSO Gostaríamos que você nos contasse um pouco sobre seu percurso na psicanálise e como surgiu seu interesse pela questão da transexua­lidade.

PATRÍCIA PORCHAT Confesso que, em um primeiro momento, minha relação com a psicanálise foi de certa aversão, ainda na faculdade. Talvez alguma disciplina que eu tenha feito e não tenha me motivado muito. Acabei me interessando mais pela daseinsanálise, pela fenomenologia, e tive uma experiência de análise com alguém da daseinsanálise, que foi muito bacana. Quando cheguei ao quinto ano da faculdade, eu tinha vários amigos interessados, fazendo grupos de estudos de psicanálise. Achei muito esquisito eu não me atrair nem um pouquinho pela psicanálise, e pensei que seria de bom tom conhecer um pouco melhor. Participei então de um grupo de estudos com o Alejandro Viviani. Gostei muito, pedi uma indicação, fiz um bom tempo de análise com a Isabel Vilutis. E me apaixonei! Isso foi por volta do último ano da faculdade. Sou filha de um professor de filosofia e filósofo, que sempre valorizou muito o rigor da leitura e da interpretação de textos. Meu pai [Oswaldo Porchat] foi professor da USP, depois da Unicamp, é bastante respeitado como filósofo brasileiro.

Naquele momento, era o ano de 1987, tinha sido criado há pouco tempo um curso na Unicamp de "Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise", dado pelo Luiz Roberto Monzani, pelo Osmyr Gabbi Júnior, pelo Bento Prado e depois pelo Loparic. Chegamos a ter aula também com o Garcia Roza, que escrevia seus primeiros livros de psicanálise. Fui fazer esse curso logo que me formei, por sugestão de meu pai. Era um curso de especialização, de dois anos. Já pus um pé em uma leitura mais filosófica da psicanálise. Eu tinha uma preocupação com a epistemologia da psicanálise. Ao mesmo tempo, me interessei em fazer o curso do Sedes.

Depois de dois anos do curso do Sedes, cheguei a um momento de minha análise em que me dei conta de que estava fazendo um curso de especialização de filosofia da psicanálise, um curso de psicanálise, clinicando... com mãe psicóloga e psicanalista, e pai filósofo. Pensei que era um pouco demais, filosofia e psicanálise, que queria alguma coisa diferente. Eu tinha uma paixão pelo jornalismo, uma paixão vinda de não sei qual lugar. Então parei tudo e consegui entrar como repórter na Folha de S.Paulo. Fiquei um ano como repórter de rua mesmo, cobria crimes, acidentes, congressos de psiquiatria, algumas matérias de cinema também. Foi um ano de realidade material absurda. E é claro que, depois de um ano, estava faltando alguma coisa. Sentia falta de outra dimensão da experiência humana que, obviamente, eu não tinha como repórter. Nesse momento, queria fazer também um mestrado em filosofia, mas não tinha mais tempo para estudar, não tinha mais tempo para nada e, apesar de ser muito interessante a vida de jornalista, não era o que eu queria ficar fazendo o dia inteiro. Voltei para o Sedes, tinha concluído o curso da Unicamp, entrei no mestrado na filosofia, com o Osmyr, para fazer filosofia da psicanálise. Quando estava no terceiro ano do Sedes, nasceu minha primeira filha. Nesse momento, tranquei o Sedes e pouco depois também o mestrado, me mantive clinicando. Tive minha segunda filha, e retomei o mestrado na psicologia, não mais na filosofia. O que estava me interessando era a metapsicologia. Minha tese, "Freud e o teste de realidade", foi justamente sobre o dispositivo do teste da realidade na obra de Freud, como aquele que permitia o discernimento entre mundo interno e mundo externo. Interrompi a análise com a Isabel Vilutis e, depois de algum tempo, comecei uma análise com a Dominique Fingermann, lacaniana. Devo ter ficado uns vinte anos com a Dominique, contando algumas interrupções, e ainda faço visitas analíticas a cada seis meses, a cada ano. Comecei a estudar um pouco mais de Lacan, mas nunca cheguei a entrar em uma instituição. Quer dizer, fiz alguns seminários no Fórum do Campo Lacaniano, assisti a muitas palestras, mas segui mais o caminho universitário.

Atualmente sou professora da UNESP e atendo muitos pacientes no Centro de Psicologia Aplicada da UNESP, onde os alunos fazem seus estágios. Atendo vários pacientes trans nessa clínica. Dou algumas aulas em um curso com a Maya Foigel, no Instituto Gerar, para pessoas que querem começar a pensar aquilo que envolve uma clínica com identidades trans. Tem gente que vem da psicologia ou de outra área, mas estão indo para a clínica ou já clinicando. Na clínica dessas pessoas começam a aparecer pacientes trans e não sabem por onde ir.

 

PERCURSO Como surgiu seu interesse pela questão da transexualidade?

PORCHAT Em torno de 2003, 2004, eu tinha um paciente homossexual que me falava muito de seu dia a dia, mais especificamente do mundo gay, de estar na rua, de passar um cara, olhar para ele no farol e eles ficarem se olhando durante alguns minutos... e ele já entrava no carro do cara, iam para um hotel qualquer e transavam. Daí, de noite, ia para o Parque do Ibirapuera, no lugar onde vários gays se encontravam. Tinha um sexo no anonimato total. Comecei a ficar um pouco fascinada, ainda que estranhando muito esse tipo de vivência bem distante daquilo que conhecia. Resolvi, então, trabalhar no doutorado com a homossexualidade masculina. Fiz contato com várias ONGs, com alguns grupos LGBT, porque eu queria ter mais pacientes gays para saber um pouco mais dessa realidade. Ao fazer esse contato, começaram a me enviar alguns pacientes trans. Pacientes gays, lésbicas e trans. Travestis, transexuais. Mirei em uma coisa e apareceu um mundo.

 

PERCURSO Você lembra quais ONGs você procurou naquele momento?

PORCHAT Procurei a Associação da Parada do Orgulho LGBT, a associação que organiza a Parada. E me indicaram uma ONG que reunia mulheres lésbicas, Umas e Outras, que era coordenada pela Valéria Melki. Comecei a me interessar por toda a comunidade LGBT, não mais me restringindo apenas aos grupos gays.

Nesse momento, fui para a qualificação do doutorado. Minha orientadora era a Miriam Debieux. Na qualificação, me perguntaram por que eu não ia trabalhar com o conceito de perversão da psicanálise. Disse que minha intenção não era me aproximar da homossexualidade, a priori, a partir desse conceito. Saí muito incomodada da qualificação porque, a essa altura, já estava lendo algumas coisas no campo das ciências sociais, onde havia uma descrição muito maior da vivência homossexual, do mundo LGBT. Tudo o que via na psicologia era muito ligado a uma ideia de patologia, de uma fixação em alguma fase ou uma questão narcísica... Enfim, o viés era necessariamente de classificar como algo patológico ou colocar um diagnóstico. Eu, simplesmente, estava mais interessada nessa experiência de vida diferente daquela que o mundo dizia que era a saudável. Quando saí da qualificação, encontrei uma amiga, a Graciela Barbero, uma psicanalista argentina, que me apresentou um livro da Judith Butler, que já tinha sido traduzido na Argentina. Ela começou a me falar dos estudos de gênero, da teoria Queer, do Jean Allouch que, na França, já estava entrando em contato com os estudos gays e lésbicos americanos... e me deu uma bibliografia extensa vinda principalmente de Córdoba. Adentrei essa bibliografia e começaram a chegar pacientes trans. E fui ficando em um beco, tentando encontrar uma saída, porque vinham muitas críticas à psicanálise, e eu vinha da psicanálise. Fiquei muito espremida contra a parede.

 

PERCURSO Como você entende esse fenômeno atual de crescimento das questões relativas à transexualidade, que é muito evidente na mídia, em nossas relações socioculturais e também nos consultórios? O que o favorece?

PORCHAT Há um momento, por volta de 2010, 2011, em que se inicia certo boom dessa visibilidade. Acho que tem a ver com o João Nery [o primeiro homem trans a fazer uma cirurgia de redesignação sexual no Brasil], quando publica a biografia dele, Viagem Solitária... Acho que tem a ver com a filha do Toninho Cerezo que se torna modelo transexual de muito sucesso na passarela. Acho que tem a ver com a Judith Butler nos Estados Unidos, fazendo interlocuções com a psicanálise, e isso vai respingando, aos poucos, no Brasil. Problemas de Gênero é de 1990, foi traduzido aqui em 2003, mas talvez ficasse mais restrito ao pessoal da literatura que trabalhava com essa autora. De qualquer forma, Butler estava em interlocução com Laplanche, com os lacanianos do Miller, sendo chamada para falar e discutir. Tem um pouco desse movimento feminista mais jovem no Brasil e a internet sendo cada vez mais utilizada pelas pessoas jovens, que vão se encontrando, tendo acesso ao que se passa nos Estados Unidos e na Europa. Esse feminismo chega muito pela internet, e ativa todo um interesse da meninada por questões ligadas às relações entre os gêneros e as diversidades de gênero. Então, acho que é um movimento que vem de vários lugares.

Butler é uma feminista, bastante rigorosa, com uma sólida formação em filosofia e que se interessa pela psicanálise. Sempre se interessou, fez análise, chegou a pensar em ser analista. Ela critica e, ao mesmo tempo, ama a psicanálise. Suas críticas são diferentes das que vinham sendo feitas à psicanálise. Nos Estados Unidos temos o Don't Ask, Don't Tell. Quer dizer, temos a presença da homossexualidade ainda que silenciada, mas o próprio silenciamento dela é uma forma de torná-la visível. Em vários lugares do mundo temos pequenos movimentos que culminam nesse grande boom de 2011, 2012 em diante.

 

PERCURSO A entrada da medicina, das possibilidades cirúrgicas, também pensando na transexualidade, ajudou a ampliar esse campo?

PORCHAT Eu precisaria olhar direitinho as datas das resoluções do Conselho Federal de Medicina, mas é difícil dizer o que veio antes, porque esse conselho se propôs a fazer algumas resoluções pressionado pelos movimentos sociais que eram apoiados por profissionais de saúde. Claro que, a partir do momento em que começou a ter um avanço tecnológico e uma visibilização dos caminhos de intervenção, isso fez com que mais pessoas saíssem do armário e considerassem essas possibilidades.

 

PERCURSO O tema da transexualidade abriu intensa discussão no campo da filosofia e da psicanálise em relação à diferença sexual. Para determinada linha de pensamento, como a que segue Marco Antônio Coutinho e Natália Travassos, o aumento de presenças transexuais estaria ligado a uma epidemia histérica, como outras ao longo da história, uma vez que a histeria provoca um questionamento sobre o enigma da diferença sexual e o saber dominante de cada época. Já Judith Butler coloca "as diferenças sexuais" ligadas aos gêneros ininteligíveis, que antes não podiam ser escutados. Como você tem pensado esse debate?

PORCHAT Esse é um ponto nevrálgico quando se discute com lacanianos. As diversas compreensões do conceito de diferença sexual é que vão dar o tom dessa discussão. Por exemplo, na minha opinião, Judith Butler tem uma resposta para isso, com a qual trabalho no Psicanálise e Transexualismo, que saiu publicado em 2014, ainda com o termo transexualismo... porque acho que esse foi o ano da virada, quando esse termo saiu de cena e foi trocado por transexualidade, mas aí o livro já estava publicado.

Judith Butler vai discutir essa ideia da diferença sexual enquanto vazia de conteúdo... acho que em 2000, em um livro dela junto com Laclau e com Zizek, o Contingencia Hegemonía, Universalidad. Para ela, a ideia de que esse seria um conceito que garantiria uma bipartição dos seres humanos, de um jeito que permitiria pensar para além do gênero, não se sustenta como uma resposta do lacanismo. Dizer que homem e mulher são apenas termos do momento, como poderia ser a diferença entre fumantes e não fumantes, que se trata apenas de uma inscrição de dois modos diferentes do ser falante... para ela, essa resposta não se sustenta na medida em que se mantém os termos homem e mulher, com todos os efeitos que isso provoca na organização social. Quer dizer, se a origem da diferença sexual está dada nesses dois termos, por mais que se diga que não é anatômica, isso tem consequências. Não há como se criar a ideia de algo que é diferente um do outro, vazio de conteúdo, que seja, se o ponto de partida necessariamente foi a escolha desses dois termos. Acho que ela responde a isso de uma maneira definitiva. Ela diz: "E portanto, eu não trabalho com essa diferença de dois. Vamos pensar em diferenças sexuais. Poderíamos falar, por exemplo, de genitália externa, de gônadas, cromossomos... vamos para a genética. Existem tantas variações, tantas apresentações de si possíveis, então falemos em diferenças sexuais, pois isso parece mais de acordo com o que de fato nós temos na sociedade". E a resposta insistente de lacanianos foi: "Você não leu bem Lacan...", que considero uma resposta um pouco complicada, porque você está dizendo isso para alguém que tem uma tradição de leitura e que escolheu não aceitar aquela definição dada por aquele pensador: "Bom, ele diz isso, e eu discordo desse pensamento por A, B e C, proponho outra coisa". Então não adianta alguém ficar dizendo: "Olha, você leu errado... se você ler bem..."

 

PERCURSO Como se se tratasse de uma bíblia, da palavra sagrada, como numa religião...

PORCHAT Pois é. Minha impressão, na época, e que mantenho até hoje, foi a de que não faz sentido querer transformar Butler em lacaniana! Se ela tem uma posição diferente, vamos respeitar outro jeito de pensar as mesmas questões.

 

PERCURSO Ela tem uma proposta nova. Esse é o fato. Mas vamos retomar ainda uma parte da pergunta anterior... de o fenômeno da transexualidade estar mais presente no mundo de hoje, e o fato de Coutinho e Travassos considerarem tratar-se de uma epidemia histérica, que recoloca a questão da diferença sexual. Você pensa que, de fato, temos de novo um questionamento sobre a questão da diferença sexual?

PORCHAT Acho que Marco Antônio é bastante fiel à teoria e ao autor que ele tem como referência, e que é fundamental na sua prática clínica. Nesse sentido, acho que está correto no modo de ele pensar, dentro da leitura do texto lacaniano que escolheu, porque também podemos partir para outros momentos do Lacan, e vejo lacanianos fazendo leituras diferentes... Então, dentro daquilo que ele escolhe como marco teórico, ele aplica um modelo de leitura a determinado fenômeno social, e nesse sentido, acho que ele sabe o que está fazendo. Mas creio ser profundamente infeliz! Infeliz para o momento histórico que vivemos, e infeliz também porque, de alguma forma, ele acaba trocando a psicose pela histeria. Troca seis por meia dúzia. Os transexuais não são mais psicóticos, mas todo esse fenômeno é histérico. E perde de perspectiva todo um grupo de pessoas que estão, há anos, batalhando para serem vistas como seres humanos, com todos os respeitos devidos. Acho muito complicado igualar as experiências, principalmente de jovens, como se fossem uma coisa só, como se todo mundo estivesse respondendo a uma oferta da ciência. A ciência oferece e todos saem dizendo: "Eu quero, eu quero..." e, por contágio, você vai ter uma epidemia.

O que vemos é uma série de expressões de gênero que estão podendo dizer: "Eu não estou mais de acordo com as únicas duas caixinhas oferecidas até agora para nós. Não sou isso, e também não sou aquilo. O que eu sou?". Tem todo o trabalho de algumas pessoas que conseguem dizer o que elas são, e de outras que se identificam ou se colam com aquilo que aparece ali na frente delas, como um youtuber dizendo: "Se desde criança você não aceita seu corpo do jeito que ele é, se você sempre se sentiu inadequado, então você é uma pessoa trans". Mas existem várias outras expressões de gênero, e estamos vendo muitos não binários aparecendo, em busca de algo específico.

 

PERCURSO Saindo do lugar de abjeto e reivindicando sua condição de existente, de humano em toda sua diversidade.

PORCHAT Pois é. Acho que essa porteira está se abrindo agora, e quando o Marco Antônio diz o que diz vai na direção de fechá-la. Em vez de olhar para aquilo de novo que vai aparecendo, ele diz: "Vocês são todos a mesma coisa, em uma grande epidemia por contágio. Todo mundo querendo parecer e ser como o outro, fazendo exatamente a mesma coisa que o outro está fazendo".

 

PERCURSO Apaga as singularidades... de novo.

PORCHAT Uma coisa é você dizer: "Está cada vez aparecendo mais gente não conforme ao gênero atribuído no nascimento. Gente que se deu conta de que não se identifica com certo estereótipo de homem ou de mulher e não está sabendo sair disso, ou está parando para pensar que é possível ser diferente disso". Outra coisa é olhar para esse fenômeno, achatá-lo, e dizer que é uma epidemia histérica. Vocês entendem a diferença? Realmente não concordo com a posição dele.

 

PERCURSO Você poderia dar alguns exemplos dessa variedade de comportamentos, de existências não binárias, porque por vezes se tem a impressão de que em determinado momento uma pessoa se considera não binária mas, em momento posterior, ela opta por se definir como homem ou como mulher e, muitas vezes, pela cirurgia, pela hormonização. Como você entende esse movimento?

PORCHAT De uns quatro ou cinco anos para cá, têm aparecido alguns estudos sobre esses grupos que se dizem não binários. Vemos pessoas que fazem esse movimento do pêndulo de, às vezes, buscar uma estabilidade como homem, como mulher e, às vezes, se sentir livres para não ser nem uma nem outra coisa. Vemos, por exemplo, uma pessoa que diz: "Bom, eu sou um homem, um homem trans, mas quero manter o meu útero, quero manter os meus seios, porque talvez queira amamentar... Não sei se vou tomar testosterona ou não, mas é meu jeito de ser homem, quero que me chamem de homem e me falem no pronome masculino...". Acho fascinante os vários homens trans grávidos que estão aparecendo por aí, de uma liberdade impressionante! O que não quer dizer que não sofram, que não tenham problemas, dúvidas, como todo mundo tem. Mas há uma liberdade em dizer: "Nesse mundo, eu me identifico como homem, mas isso não afeta minha paternidade ou maternidade ou parentalidade", seja o nome que queiramos dar.

 

PERCURSO O psicanalista Hansbury acredita que a psicanálise faz um avanço ao deixar a excessiva preocupação com a etiologia da transexualidade e se voltar para a maneira como ela se manifesta. Isto é, passar do Why trans para o How trans. Como foi seu processo como psicanalista em relação a essa questão?

PORCHAT Foi exatamente isso que ele descreve. Passei um bom tempo no why trans. Quais os determinantes, qual a história de vida, o que pode me falar desses pais, dessa família, desses desejos, da própria vivência infantil. E aí comecei a achar situações similares em várias histórias e me peguei querendo estabelecer uma causalidade, estabelecer traços em comum nas histórias de várias pessoas que se encontram como trans. Até que parei para pensar que isso não fazia sentido, e me vi em um dilema. Primeiro, em relação à liberdade de pensar. Mas, afinal de contas, quando trabalhamos na clínica, às vezes não encontramos traços em comum entre um paciente e outro e estabelecemos relações? Só que isso sempre foi feito a serviço das classificações. Criamos categorias e categorias que sempre apontam para uma diferença, com o quê? Com uma normalidade? Quando se cria a histeria, a neurose obsessiva, a fobia... são os grandes quadros. Mas a homossexualidade também foi vista como um quadro, eram pessoas que transavam com pessoas do mesmo sexo... E aonde leva esse tipo de raciocínio quando você trabalha com uma diferença que é a da sexualidade ou do gênero? Durante muito tempo, foi comum estranhar pessoas que se diziam de um gênero diferente daquele atribuído ao nascimento. Mas, quando você vê a quantidade de pessoas que têm esse tipo de experiência e que estão por aí na vida, fazendo o que todos fazem, o que todas as pessoas cis fazem, qual é o sentido de ficar pensando na causalidade? E esse foi meu momento de dar uma parada.

 

PERCURSO Vivemos um pouco desse dilema à medida que fomos fazendo as leituras para esta entrevista, porque esse assunto mexe muito com a forma com que se olha a clínica, especialmente quando temos as etiologias muito turbinadas. Quando, por exemplo, você trabalha com um casal que vê a filhinha de quatro anos que só quer brincar com coisas de menino, usar roupas de menino... Procuramos entender o que está acontecendo naquela relação entre os três (pai, mãe e criança), o que está determinando que essa menina queira ocupar o lugar do pai frente à mãe... enfim, pode ser muito fácil entrar nesse modelo de pensamento clínico da psicanálise. Mas, se você pensar que ser trans é uma possibilidade, talvez não faça esse pensamento da triangulação na relação entre pai, mãe e filho. Talvez tenha um pensamento muito diferente desse.

PORCHAT São duas coisas. Uma é um treino de formação que tem a ver com o que você leu, com suas supervisões, os primeiros casos que você acompanha e com toda a literatura psicanalítica mais clássica que temos. Então o olhar vai exatamente nessa direção. Você está lá, está vendo uma dinâmica familiar, as identificações, o desejo materno, a atitude do pai... enfim, você raciocina nessa direção. Mas faz muita diferença quando você percebe, principalmente entre as pessoas jovens (no ensino médio ou no começo da faculdade), uma facilidade, ou melhor, uma espontaneidade de convivência com as pessoas trans, com as pessoas não binárias, também com gays, lésbicas, sem tanto aquela questão do... "Fulano de tal... olha, ele é homossexual". Você vê uma relação tão espontânea, sem problematizar, sem estranhar que é um gancho para pensar um pouco o futuro. "A sociedade está mudando, e é com outros olhos que tenho que olhar. É de outro jeito que tenho que escutar. Não é com o jeito de quando eu tinha vinte, trinta anos, na minha faculdade, na minha formação, na leitura que eu fiz. Tenho que pensar que muita coisa está diferente, que esses jovens vão ser os futuros analistas". E eles vão estar com uma flexibilidade de pensar o diferente muito diversa da nossa. De pensar diferente não, de pensar o diferente de agora, porque para eles não vai ser o diferente, vai ser o normal deles. Não vai ser nas questões de gênero e nem de orientação sexual ou de prática sexual, que eles vão ler o que poderia ser da ordem do sofrimento. O sofrimento psíquico é sempre de cada um, mas aquilo que lemos como fenômeno social, onde estabelecemos um marco do que chamaríamos, talvez, de patológico, vai ser outra coisa. É muito importante tomarmos esse cuidado com as mudanças que vão acontecendo, e não fossilizar, como analistas, e ficar naquilo: "No meu tempo era assim", porque os tempos estão mudando, não adianta.

 

PERCURSO Em junho de 2008, você entrevistou Judith Butler. Uma de suas preocupações era entender a contribuição das psicanalistas feministas e sua lida na questão dos transgêneros. Butler lhe responde tecendo elogios a alguns psicólogos clínicos e comenta que, em sua opinião, os autores importantes no campo da psicanálise ainda não tinham feito grande trabalho. E mais: questiona se realmente estariam interessados em fazer. Como você vê essa questão treze anos depois? Você considera que a psicanálise tem se colocado nesse debate? Quais são os operadores metapsicológicos que ajudam a pensar as questões trans e quais são os conceitos psicanalíticos considerados problemáticos?

PORCHAT Existe um grande movimento com origem na Paris 7 (de onde vieram Laplanche, Fédida...) especificamente em torno do laboratório de pesquisa atrelado ao Departamento de Psicologia, que é o CRPMS [Centre de recherches psychanalyse, médecine et societé], onde está a Laurie Laufer, diretora do centro, o Thamy Ayouch, que já esteve várias vezes no Brasil, a Beatriz Santos, com quem escrevi um artigo, e uma quantidade de orientandos que vêm se formando, e que trabalham muito nessa linha que coloca a psicanálise em diálogo com as teorias de gênero e com a teoria Queer. Há um esforço desse grupo em tentar pensar a metapsicologia. Mais recentemente, um dos pesquisadores que acabou de defender o doutorado, Nicolas Evzonas, tenta pensar uma metapsicologia inclusiva, que é como ele a chama. Eu não saberia reproduzir agora, mas ele tenta, de alguma forma, pensar uma metapsicologia que não faça esse ponto de corte entre um normal e um patológico. Tem também um retorno por meio de Philippe Van Haute, que atua muito com o pessoal do CRPMS. Ele é psicanalista, professor na Bélgica e vai trabalhar com a ideia de uma patoanálise, de que todos nós contemos a possibilidade de intensidades diferentes de adoecimento ou de sofrimento, mas que não há uma divisão marcada, estrutural, entre uma perversão, uma psicose, uma neurose. A primeira coisa é sair de uma perspectiva estruturalista de separação clara entre modos de funcionar.

 

PERCURSO Mas, de alguma forma, isso já vem sendo feito. Essa ideia de que todos temos núcleos diferentes dentro de nós, núcleos mais psicóticos, mais neuróticos. O que você está dizendo está mais relacionado à linha lacaniana, não?

PORCHAT É, porque a grande briga com as teorias de gênero e a teoria Queer é dos lacanianos. Os grandes embates com a Judith Butler foram os lacanianos que fizeram. Por isso essa discussão ficou tão em torno da questão das estruturas.

 

PERCURSO Porque se você pensa na Melanie Klein, ela fala na posição esquizoparanoide, na posição depressiva, não coloca tanto numa questão diagnóstica.

PORCHAT Uma das grandes questões a meu ver é o que fazer com o Complexo de Édipo. Quando a Butler me dá aquela resposta, ao mesmo tempo ela vai falar de um pessoal ligado ao New York Post Doctor School [New York University Postdoctoral Program in Psychoanalysis and Psychotherapy], a Muriel Dimen e o Ken Corbett, por exemplo. Corbett é um analista de crianças que se recusa a trabalhar com a ideia de Édipo enquanto operador conceitual. Ele trabalha muito mais com os desejos infantis, com os desejos parentais. Para ele, não existe um momento originário. Não existe um par originário ou um triângulo. Há, ao contrário, múltiplas relações e registros. Não há um desejo originário. Desejos e estados de gênero se acumulam por meio de uma complexidade caótica. Ele pensa a partir de outro lugar que não o Édipo, que é o que o pessoal da França faz ao recuperar Deleuze para tentar pensar as pulsões à parte de uma organização que vai culminar nas identificações parentais dentro de uma estrutura triangular. O diálogo com Foucault para pensar a sexualidade e as relações de poder, o diálogo com Deleuze para tentar pensar o Édipo como uma construção bastante datada, que dá conta de um modo particular de ser família, e pensar outras possibilidades, esse é o caminho que vai sendo trilhado. Agora, não trabalhar com Édipo, para boa parte da psicanálise, é quase dizer que não tem mais psicanálise... porque é o conceito central do edifício teórico da psicanálise.

 

PERCURSO Não necessariamente, mas a questão da triangulação, da exclusão, essa experiência de ficar de fora, para quem trabalha com criança é muito forte. E aí vem a questão do ovo e da galinha. É essa sociedade que produz esse modo de funcionamento ou esse modo de funcionamento... O que você está dizendo é que nossa sociedade está se transformando e precisamos pensar sobre essa nova forma. É isso que você está dizendo?

PORCHAT Acho que são duas coisas. Uma é que a sociedade está mudando e precisamos conseguir pensar de outro jeito que não olhe para essas mudanças, a priori, como desviantes de um padrão estabelecido ou de um ideal a ser atingido. A outra é que houve pensadores na história da psicanálise ou adjacentes ao mainstream psicanalítico que propuseram coisas que foram muito facilmente banidas como não psicanalíticas. E, no entanto, elas hoje vêm se mostrando interessantes para pensar essa diversidade.

 

PERCURSO Porque o triângulo edípico funciona muito na heteronormatividade binária. Quer dizer, o triângulo só é triângulo porque tem dois e um que é a criança. Se o modelo muda, se é pluri, o modelo edípico não é o único responsável por determinar uma dinâmica.

PORCHAT O mais difícil é que aprendemos assim, fizemos nossas análises nos pensando assim. Pensamos os pacientes durante anos, anos e anos assim. Então, o que é começar a pensar diferentemente?

 

PERCURSO Como duas perspectivas de psicopatologia. Uma marcada ainda pela normatividade. E outra, marcada pelo sofrimento. Resultam também em tratos diferentes, mesmo dentro da psicanálise.

PORCHAT Sim, o que faz a questão recair sobre o analista e que escolha ele faz na sua prática, se é a perspectiva do sofrimento ou da normatividade. Por isso vários dos escritos atuais, do Thamy Ayouch ou do Hansbury, têm a ver com a contratransferência ou com os aspectos da teoria que o analista escolhe para seu olhar, para sua prática. Mas ainda acredito que isso não garante.

 

PERCURSO Isso não garante e isso não se define pela escola. Como é que você pensa?

PORCHAT Há escolas mais rígidas conceitualmente do que outras. Mas o recorte que se faz das teorias é, em última instância, do analista. Mesmo dentro de uma escola, não só o recorte, mas também a posição de idealização de um mestre também diz respeito ao analista.

 

PERCURSO Que conceitos você considera que ainda seriam úteis? Por exemplo, a castração simbólica parece um conceito interessante que valeria, digamos assim, para qualquer constelação familiar ou qualquer situação de sofrimento quando se trata de questões relacionais.

PORCHAT Concordo. Para mim, é muito difícil pensar sem essa ideia. Agora, eu me interesso, de qualquer forma, por novas produções dentro do campo da psicanálise, ainda que proponham uma crítica a um termo como a castração, por exemplo. Interessa-me saber o porquê. O que mais me incomoda é quando há uma espécie de passar régua que... "Bom, sem tal conceito não é psicanálise". Escutei uma vez: "Mas então isso é uma psicanálise butleriana". E daí? Quem diz o que é psicanálise? Quer dizer, quando Winnicott começa a propor outras coisas, ou Balint ou Ferenczi, ou vêm outras pessoas... o que é preciso para aceitarmos que isso possa também ser psicanálise? Às vezes, tem que passar 30 anos para que determinado autor seja reconhecido por fazer uma psicanálise legítima, depois de ter ficado banido durante muito tempo porque propôs uma técnica um pouco diferente, uma técnica ativa ou qualquer coisa assim.

 

PERCURSO E você observa que há contribuições atuais significativas? Não só de resgate, de psicanalistas...

PORCHAT Acredito que sim e fiquei, não sei se contente é a palavra, mas fiquei surpresa ao ver que um pessoal da IPA tinha criado, há uns dois, três anos, um grupo de gênero e sexualidade com pessoas de Israel, do Canadá, da Europa, da Argentina e também uma pessoa do Brasil. Em 2019, eles fizeram um colóquio em Bruxelas. Era um colóquio fechado, e fui convidada pelo Nicolas Evzonas, que defendeu o doutorado sobre transi­dentidades e que falou sobre essa metapsicologia superinclusiva. Achei interessantíssimo, um grupo dentro da IPA, muito fértil, muito livre para pensar essas questões dentro da psicanálise, trabalhando com Bion, com Winnicott, com Klein, com Deleuze. Havia lacanianos também. Não precisamos ficar com a ideia de que alguns grupos psicanalíticos, por serem de determinada instituição ou de determinada escola, serão necessariamente fechados. Não, de jeito nenhum.

 

PERCURSO As experiências contratransferenciais relatadas por psicanalistas que trabalham com trans são de estados confusionais, de desfazimento e queda, que remetem a estados primitivos do desenvolvimento da psique. Você poderia nos contar como é sua experiência contratransferencial na clínica com trans e como pensa a transfobia na clínica?

PORCHAT Acredito que ainda existam, sim, analistas com esse tipo de experiência contratransferencial. Creio que isso vem mudando à medida que um número maior de analistas vai entrando em contato com pessoas trans, também fora do setting analítico, e aproximando sua compreensão teórica dos estudos de gênero. Há uma nova geração de analistas recebendo cada vez mais pacientes trans nos consultórios, o que muda um pouco essas reações contratransferenciais na clínica. Ainda assim, penso que é uma clínica que afeta e que mexe bastante. Já são alguns anos de pacientes trans e, quando falamos desses pacientes, nos referimos a um conceito guarda-chuva: abarca travestis; pessoas transexuais que já fizeram sua transição; pessoas que manifestam o desejo de fazer a transição mas ainda não começaram e não sabem se vão fazer ou não; pacientes que se dizem não binários ou simplesmente trans, e você não sabe o que isso quer dizer para essa pessoa, porque a frase "eu sou trans" tem diferentes significados para cada um.

Não quero generalizar, mas, por exemplo, pensando na experiência de um paciente que chegou como homem e sempre se relacionou com mulheres, mesmo depois de ter feito a transição. Ele dizia, em um primeiro momento, que amava tanto as mulheres por quem se interessava, mas amava tanto, que era quase como se ele quisesse ser essas mulheres. Isso foi há muitos anos e eu não entendia direito, pensava que era uma coisa quase simbiótica, de querer se juntar, se tornar um. Até que, em certo momento, ele anunciou que desejava ser mesmo uma mulher e que ia começar a pensar nisso mais seriamente. Eu tive uma reação... não dá para falar que foi de não aceitação, mas foi uma reação de não concordar, de achar que não era o momento. E não falei nada, porque já estava em contato com a literatura sobre transexualidade e sobre clínicas de pessoas trans, que me impediu de fazer qualquer manifestação que pudesse apresentar discordância com o que ele expressava. E ele seguiu o caminho, se tornou uma mulher, fez uma cirurgia e continuou mantendo contato comigo à distância, porque saiu do Brasil. Foi interessante perceber que, se eu tivesse ido por aquilo que eu estava sentindo, sem uma preocupação de certo policiamento... porque acho que era da ordem da transfobia, não no sentido de violência, mas era uma transfobia porque era um incômodo muito grande com a possibilidade de que essa pessoa estivesse fazendo uma transição. Era uma pessoa que tinha um grande sofrimento por várias causas. Então, comecei a pensar: isso é uma atuação? Isso vai dar no quê? Qual vai ser o próximo passo? Será que essa pessoa vai se matar depois? Quer dizer, todas essas coisas que lemos, que muitos analistas puseram em prática, me passaram pela cabeça. Mas consegui me calar e foi importante me calar, porque essa pessoa fez a transição, ficou muito feliz, continuou namorando mulheres, se casou mais de uma vez.

Então, a transfobia pode ter relação com falas ou intervenções violentas por parte do analista, mas acredito que tem muito a ver com um preconceito enraizado. Não vem só de uma teoria que passou muitos anos falando em psicose ou em algum tipo de patologia narcísica, como a linha do Stoller, por exemplo. Se relaciona com uma cisnormatividade do nosso mundo, de como estamos organizados e isso está infiltrado em nós. Nós, cis, pensamos dessa maneira.

E, à medida que não fiz nenhum tipo de intervenção no sentido de discordância, essa pessoa foi fazendo sua aproximação com o mundo feminino, foi recuperando uma série de memórias, encontrando uma narrativa mais prazerosa sobre ela mesma que, em todo o primeiro tempo de análise, de uns três, quatro anos, estava soterrada. Era uma pessoa que bebia muito, fumava muita maconha e sempre ultrapassava os limites do cuidado consigo próprio. E aí virou: começou a se cuidar mais, a conseguir sustentar as relações por mais tempo, até que acabou casando. Então, foi uma coisa muito esquisita perceber essa coisa tão visceral que é a perspectiva cis de ser.

 

PERCURSO Você poderia falar um pouco mais dessa clínica? Temos percebido maior frequência de pessoas que chegam com mais clareza em relação a fazer a transição. Como você pensa o trabalho de análise frente à complexidade dessas conflitivas e a urgência por tomadas de decisões - a hormonização, a mudança de nome, a cirurgia de transição - uma vez que o processo de análise demanda um tempo que não se tem ou não se quer ter? Como você tem observado a permanência desses pacientes em análise?

PORCHAT Para a maioria das pessoas trans que querem fazer a transição com intervenção hormonal, cirúrgica, isso é uma espécie de pedra, de rocha no sapato. Enquanto essa questão não sai da frente, muitas vezes a vida não flui. Para algumas pessoas, a clareza é tão grande, há tantos anos...

Mas vamos voltar um pouco. Uma coisa é alguém que vem pedir um laudo para uma cirurgia. É muito difícil começar um processo analítico quando a pessoa vem com algo muito específico. Se você é um psicólogo, pode fazer um laudo porque tem CRP. Como analista, não faz o menor sentido dar um laudo. Você está lá para oferecer outro trabalho, para saber o que a pessoa veio buscar. Então, vamos limpar um pouco a área. Se é para fazer um laudo, é de um outro lugar que vai trabalhar. Você também não vai deixar uma pessoa quatro anos em análise se ela quer logo um laudo, porque ela sai depois de dois meses e vai arrumar em outro lugar. Ela não vai ficar esses quatro anos. Acho que se pode fazer a proposta de oferecer uma escuta e essa pessoa pode topar ou não, e ela que resolva o que vai fazer com o pedido de laudo dela.

 

PERCURSO O profissional que faz um laudo observa o quê?

PORCHAT Isso varia muito. Existem algumas questões: como a pessoa vive a sexualidade dela, como se expressa enquanto gênero, como se relaciona com o ambiente à sua volta, que tipo de prejuízo ela está tendo enquanto não recebe hormônios. Às vezes, não está conseguindo trabalhar, estudar, se relacionar, ou tem vergonha do corpo. Vai tomar banho e tem partes do corpo nas quais nem toca, de tantas questões que tem com essas partes. Ela se diz no feminino ou no masculino? Mas é claro que, com três ou quatro encontros, se percebe que muitas já decoraram o que devem falar para que um psicólogo ou um psiquiatra faça um laudo. Então, você começa a pensar em qual é a sua posição ao fazer esse laudo, porque se ela vai a um ambulatório, vai encontrar um psicólogo que trabalha direto com esse tipo de avaliação junto à equipe geral do ambulatório. E lá eles têm os próprios critérios. No começo, durante um, dois anos, fiz alguns laudos e depois parei. Não via muito sentido em fazer, a não ser em uma situação específica em que a pessoa já está se hormonizando por conta própria e isso claramente não está bem para ela. Nesse caso, ter o laudo é o modo de ela conseguir acessar um endocrinologista, com quem vai fazer uma hormonização controlada.

 

PERCURSO Nessa situação, o laudo seria para proteger a vida? Porque se automedicar é uma coisa complicada.

PORCHAT Ainda mais com hormônios.

 

PERCURSO Você tem visto muita gente se automedicando?

PORCHAT Por conta própria? É comum, porque é muito fácil. Tanto comprar na farmácia, como conseguir clandestinamente, no caso da testosterona. Os hormônios femininos você compra na farmácia. São as cartelas de pílula que são tomadas em quantidade muito alta. Os hormônios masculinos se compram de modo clandestino. Então, o cuidado é pensar que cada pessoa trans traz uma história diferente. É muito complicado você dizer que a clínica com essas pessoas é assim ou é assado. Isso não faz muito sentido. Esse é o grande perigo, você partir do princípio de que a pessoa quer se hormonizar ou de que quer fazer uma cirurgia. Às vezes, ela não sabe que pode ou não querer algumas coisas, que não é porque não se identifica como homem, mas se identifica como mulher, que necessariamente tem que tomar hormônios.

Um cuidado que tenho é, a cada passo ou a cada certeza que ela traz do que é ser trans, eu problematizo, pergunto. Já tive pacientes, por exemplo, principalmente na clínica da Unesp, que aos dezoito anos de idade chegam e dizem: "Eu vim aqui porque o meu amigo falou que sou trans, então quero tomar hormônio". "Bom, por que você é trans?". "Ah, porque eu sempre me senti um menino". "E por que você tem que tomar hormônio?". "Porque o meu amigo falou que, se somos trans, temos que tomar hormônio". Então, é uma clínica que varia tanto quanto qualquer outra, e não se pode cair no estereótipo de achar que é um tipo e, por ser um tipo, devemos esperar comportamentos parecidos, fantasias parecidas ou um tipo de transferência parecida. Não faz o menor sentido.

 

PERCURSO Seria possível pensar que o que muitas vezes é considerado como resistência do analista frente às mudanças corporais de seus pacientes seria, ao contrário, uma abertura para se pensar o corpo como pulsional e o desejo para além dos limites do corpo? A análise ajudaria a ampliar um pouco essa necessidade imediata de mudança corporal, pensando que tem algo que é para além dos limites do corpo? O que é resistência do analista e o que é uma escuta de alguma questão?

PORCHAT Acho essa pergunta interessante, porque um dos caminhos que tomei para pensar a questão das identidades trans - hoje não falo mais transexualidade, falo identidades trans, porque podem ser várias - foi a relação que a psicanálise e os psicanalistas têm com o corpo. Acho que os analistas costumam encarar bem o corpo pulsional, com as várias possibilidades de prazer, mas até a página dois.

Quando temos intervenções no corpo que sirvam como forma de representar alguma coisa e que evidenciam que a opção sendo feita não é fazer uso da palavra, mas marcar alguma coisa no corpo, isso estremece o pensamento psicanalítico. Vi a reação de alguns psicanalistas diante de pessoas que fazem muitas tatuagens, aquelas que fecham os braços, por exemplo. Ou que fazem muitos piercings. Ou ainda aquelas bolas que entram, tem um nome, inclusão, não lembro bem, a pele fica parecendo toda ondulada porque colocam bolas por baixo dela. Ou que implantam um chifrezinho. Essas coisas não tão comuns mexem demais com os analistas. Quando se entrevistam essas pessoas, dizem que tem um significado, sim, que é para marcar alguma coisa ou então elas não sabem, queriam fazer porque queriam.

Por que isso incomoda tanto a psicanálise? Poderíamos dizer: "Bom, de alguma forma priorizamos a capacidade de elaboração, de poder falar sobre alguma coisa". Mas percebemos que muitas pessoas estão falando diferentemente.

Então, tentei fazer esse caminho para pensar se as intervenções de gênero não poderiam ser também válidas e legítimas como meio de resolver também alguma questão.

 

PERCURSO No Grupo de Trabalho Generidades: Identidades, Gêneros e Desejos, do Departamento de Psicanálise, Júlia Clara de Pontes, contando sobre sua pesquisa na área, fala que, muitas vezes, a cirurgia e a hormonização resolvem questões psíquicas. Claro que depende do caso, mas é como se a transformação do corpo aliviasse determinado sofrimento.

PORCHAT Então, é aí que, pelo menos no campo lacaniano, se aproxima a essa ideia de psicose, como se houvesse um tipo de intervenção que seria um equívoco.

 

PERCURSO Mas, segundo ela, esse tipo de intervenção é uma forma de sair do sofrimento. Podemos pensar que, teoricamente, a ideia é que haja uma fusão, como se não existisse distância entre sujeito e corpo.

PORCHAT Creio que esse é um jeito de pensar. Outro modo é o privilégio concedido à palavra em relação às demais possibilidades de experiência humana e de transformação. Como se a transformação só pudesse vir através da palavra.

 

PERCURSO Tem uma hierarquização.

PORCHAT Exatamente. Tem uma hierarquização que acredito ser muito preciosa para a psicanálise, mas percebemos que nem todas as experiências humanas são dessa maneira. A questão é se temos direito de julgar e dizer: "Bom, então é uma experiência menor". Uma experiência de alguém incapaz de elaborar por meio da palavra. E o que estamos vendo é que não, não é verdade.

 

PERCURSO Para algumas pessoas, a intervenção resulta na diminuição do sofrimento, mas também acontece o contrário. Há casos de transição que levam ao suicídio. Como as pessoas lidam com a pós-transição e a representação de si, a visão que têm do próprio corpo, quando há idealização e que é confrontada com a realidade?

PORCHAT É algo que vem sendo analisado. Há uma questão estatística com que sempre devemos tomar cuidado, pois acontecem em algumas situações, ganham o primeiro plano e, então, desconsideramos todo o resto de intervenções bem-sucedidas. Casos mal-sucedidos acontecem em vários âmbitos, e não podemos começar a análise por eles. É uma situação delicada, não vou negar. Uma situação delicada de acompanhar alguém em um processo de transição, quando é possível acompanhar.

Vejo com muito interesse a ideia de que haja mais analistas trans que possam falar de suas experiências e da experiência de análise e acompanhamento de pessoas trans em um processo de transição, porque penso que nosso olhar é muito enviesado. Temos que fazer um esforço brutal para deixar de lado o viés de sermos pessoas cis. Olhamos, por exemplo, para uma experiência que culminou em um sofrimento e, eventualmente, em um suicídio, quase com um certo "enfim, isso podia acontecer". Esse é nosso viés. Acredito que, se tivéssemos uma pessoa trans acompanhando essa outra pessoa e podendo falar do que se passou ali, poderia ser interessante. Aprenderíamos muito.

 

PERCURSO Um grupo de analistas atentos, como existe em relação ao racismo. Preciado e outros autores destacam que se existe uma coisa que fazemos, atualmente, é mexer no corpo. Mas querer recuperar a juventude com as plásticas, botox, tudo bem. Agora, modificar o corpo para se tornar mulher, por exemplo, não pode.

PORCHAT Creio que o grande trabalho da psicanálise passa pelo fato de que as coisas estão mudando muito mais rápido do que mudavam antes. Então, por exemplo, a homossexualidade atravessou boa parte do século como patologia para a Associação Psiquiátrica Americana. Só nos anos 1970 ela deixou de ser considerada uma doença. De 1970 para frente, começa um movimento na psicanálise de olhar de um jeito diferente para a homossexualidade, mas, durante muitos anos, ela foi banida da própria Sociedade de Psicanálise. Houve um tempo para as coisas acontecerem. A questão trans chegou mais rápido, a internet já estava aí. Vai entrando por todos os poros e temos que nos haver com isso muito rapidamente.

 

PERCURSO Não haveria uma distância entre as experimentações de adolescentes com o corpo, inclusive com o uso de hormônios, que poderiam ser pensados como as drogas da atualidade, e o desejo de transição de gênero? O consentimento e engajamento familiar e social não minariam essas experiências enquanto possibilidades de experimentação, questionamento e mesmo transgressão?

PORCHAT Penso que esse é um dos grandes desafios do momento para o trabalho com adolescentes, com adultos jovens, porque temos que dar conta de muitas peças em jogo. A ansiedade dos pais, por exemplo, com a preocupação de uma definição rápida: "Meu filho, minha filha é trans, o que eu tenho que fazer, já?"; "se é para ser menina, então ok, vamos hormonizar já, vamos fazer cirurgia já". Eles não dão conta do próprio desconforto e sofrimento. Tem também o lado da escola, que chama o pai e diz: "Olha, o seu filho é trans, vá procurar um endócrino, vá procurar um serviço para a coisa se resolver". "A coisa" tem que se resolver logo.

O próprio adolescente, muitas vezes, quer tudo para ontem e tudo é muito intenso. A certeza é muito grande, embora, no dia seguinte, possa ser uma certeza contrária àquela. E, diferente de outras questões adolescentes, a sociedade está falando muito disso e os pais ficam muito ansiosos, porque não é simplesmente a troca de uma banda de rock por uma seita e depois por um esporte radical. É algo que mexe no gênero e isso mexe com a família inteira.

 

PERCURSO As famílias fazem um luto da menina sonhada ou do menino sonhado?

PORCHAT Tem um luto enorme, mas penso que vocês colocaram um ponto anterior, que é sobre a diferença entre uma experimentação adolescente de gênero e hormônios e uma transição de alguém que sustenta esse desejo por mais tempo, talvez por um longo tempo e, de fato, se encontra, se realiza como do outro gênero, como um transexual.

 

PERCURSO Então, existe o tempo de fazer a transição, que vai dando conta desse luto para todos?

PORCHAT Se for uma transição, sim. Por isso é difícil manejar esse momento, porque é muito fácil o adolescente tomar hormônio, mesmo que seja escondido, e ter uma mudança de corpo. O mais importante é, portanto, trabalhar com os pais junto com esse adolescente, para que esses pais possam sustentar uma indefinição. E trabalhar também com o endócrino.

 

PERCURSO Pensamos na questão do consentimento e em como os pais vivem a transição, numa época em que há um consentimento social maior. Isso dificulta o trabalho de segurar tanto os pais quanto os filhos na travessia, até para poder dar o tempo para saber se é o que querem ou não?

PORCHAT É aí que reside a delicadeza, um pouco da experiência, porque, para alguns jovens, a transição é algo que já está em andamento há muito tempo, ainda que os pais saibam há pouco tempo. E esse jovem está em um sofrimento muito maior, e pode partir para coisas mais drásticas. Conseguir avaliar isso é fundamental. Para outras pessoas, que estão em um movimento mais recente, pode-se conseguir prolongar um pouco mais esse tempo para que uma decisão mais madura, mais negociada, mais conversada, possa ser tomada.

Então, acredito que não dá para dizer que funciona desse ou de outro jeito. Vai muito de perceber como essa adolescente ou esse adolescente está funcionando. E, óbvio, qual vínculo cria com você para apostar num tempo de maturação da ideia. Quando não é possível, pois a coisa já chega muito adiantada, muito pronta, e se a pessoa vai começar uma transição, não tem conversa. O máximo que se consegue fazer é propor continuar conversando, se ela quiser, e conversar com os pais. E aí já é muito mais um trabalho de luto, junto a esses pais.

 

PERCURSO Você também falou dos pais que querem resolver a transição rapidamente. É como se eles quisessem atropelar esse luto?

PORCHAT Às vezes, tem um pai que quer resolver já, e uma mãe que não está aceitando a situação de jeito nenhum. Então, de um lado, existe um luto que não quer ser feito e, de outro, um "não estamos nem falando em luto, porque não existe isso".

 

PERCURSO E o trabalho com o endócrino? É importante essa parceria, não?

PORCHAT Eu vejo o endócrino como uma peça fundamental do jogo, porque o discurso dele faz muita diferença. A possibilidade de hormonizar, mas com calma, com reavaliações periódicas, para saber por onde a coisa está indo, se é que está indo, se deve ou não deve ir. É uma figura-chave.

E a conversa com o médico é uma construção. Há endócrinos que, hoje, se associam muito aos movimentos ativistas. É uma endocrinologia de muito favorecimento desse processo, de muita empatia com a causa. Mas também são médicos que vêm tendo cada vez mais experiências com muitos pacientes, então são capazes de perceber alguns movimentos de pessoas que estão mais inteiras para fazer uma transição e outras que estão ensaiando a questão.

E já trabalhei com endócrinos que têm uma preocupação muito mais pragmática: "Os pais consentiram, vamos fazer"; ou se a pessoa quer, "vamos fazer".

Então, penso ser importante sensibilizar o endócrino para a ideia de que há momentos nesse processo, de que não necessariamente você engata a primeira e vai até o fim, pode haver momentos de parada, de dúvida, de retrocesso, e pode permitir que isso seja possível. Não depende só de ser possível na análise, mas também se é possível nessa equipe.

 

PERCURSO A relação da psicanálise com a política é um tema que você trabalha, e tocou nele quando se referiu às relações com os ativistas, com pessoas que estão lutando nessa expansão das noções de identidade, de projetos, de transformação das subjetividades. O que você pensa que possamos ter como norte para a psicanálise em termos de trabalho político?

PORCHAT Espero que esse seja um caminho sem volta. A psicanálise foi provocada e obrigada a sair das quatro paredes. Acho que houve essa provocação e que muitos analistas se sensibilizaram a responder, a dialogar, deixando de patologizar, a priori, as experiências homossexuais e trans. E, nesse sentido, fazer modificações na teoria, se tivessem que fazer, ou ampliar seus espaços de atuação.

Mas acredito que apareceu também outro movimento, que foi o de questionar a psicanálise quanto à própria construção da teoria sobre determinado modelo de ser humano: branco, heterossexual, cisgênero, europeu. Questionar se muitos dos conceitos não foram pensados relacionados a esse modelo de ser humano. E se não haveria outro jeito de pensar. Resumindo: é possível falar em universal psíquico ou não? O que fazemos com a ideia de universal psíquico? Aparece uma psicanálise agora, que é essa psicanálise que vai dialogar com as teorias pós-coloniais, decoloniais ou mesmo com as questões raciais, que vão problematizando isso.

Quando uma série de analistas negras e negros começam a aparecer e dizem: "Olha, tem coisa aqui que vai ter que ser pensada de um modo diferente", penso que a psicanálise não escapa mais. Analistas homossexuais que saem do armário e questionam alguns textos. Ou as mulheres feministas que, desde Gayle Rubin, na década de 1970, assim como as psicanalistas argentinas, na década de 1980, apontam as relações de desigualdade entre homens e mulheres que aparecem em alguns momentos das teorias psicanalíticas. Acho que é um caminho um pouco sem volta.

 

PERCURSO Como você analisa a contribuição LGBTQIA+ para a ampliação do conceito de família? Como essa ampliação pode contribuir também na educação das crianças cuidadas a partir dessas relações amorosas?

PORCHAT Bom, aí vamos direto para o texto da Butler, pois se o parentesco é sempre tido como heterossexual, ela acaba chegando à ideia de família como algo que sai do biológico. Família é um grupo reunido para cuidar das pessoas entre si, mas cuidar principalmente de crianças, onde há cuidado, afeto e transmissão. E que a essas crianças possam ser transmitidas toda uma organização social, a diferença entre gerações, a ideia de alteridade. Enfim, aquilo que faz nossa sociedade funcionar, mas funcionar dentro da ideia de respeito e cuidado, não no sentido de valores religiosos, por exemplo.

A comunidade LGBT ensina muito, porque é nessa base que essas pessoas funcionam enquanto família. Funcionam não só porque muitas foram expulsas de suas casas, tiveram que encontrar quem as acolhesse, se organizar para sobreviver, se sentir amadas, ter filhos, nas configurações das mais diferentes.

E é engraçado, porque essas famílias diferentes já existem há muitos anos. É como se a psicanálise agora dissesse: "Há outras formas de famílias". Já estão aí, estão aí há décadas e décadas. São famílias com duas mulheres, com dois homens, com três mulheres e um homem, enfim...

Então, é muito esquisito, quase como se estivéssemos tentando dizer: "Olha, tem uma coisa nova para a gente aprender". Na verdade, é assim: "Tem coisas velhas que precisamos acordar e ver que existem para entender que a sociedade funciona fora de um modelo de família nuclear burguesa, há anos". Só que não chegam à psicanálise por medo de um olhar discriminatório.

Quando vocês perguntam o que essas famílias têm a ensinar sobre a educação das crianças, acredito que o maior contato possível que as crianças tiverem com a diversidade é o melhor que podemos fazer por elas. Todo tipo de diversidade, em todos os sentidos: raça, gênero, classe social, tudo. Não protegê-las daquilo que é diferente delas e de um certo ideal narcísico dessa família. Não evitar, não proteger, não colocar uma barreira de cristal, senão ficamos reproduzindo um mesmo, extremamente preconceituoso e violento, porque, no encontro com essa alteridade, se perde, teme se perder, teme ser aniquilado, teme perder as bases.

 

PERCURSO Podemos pensar de que psicanálise estamos falando, não é? Você falou sobre a existência, há tempos, das diferentes formas de configurações familiares, o que lembrou o livro de uma analisanda do Freud (Hilda Doolittle) que se chama Por Amor a Freud. Ela teve uma vida amorosa e familiar bem distinta da clássica burguesa: casou-se com um poeta, de quem se divorciou; teve uma companheira, que era casada, com quem viveu por toda a vida, formando um trio conhecido no meio intelectual da época, e eles criaram a filha que Doolittle teve com um amigo. É interessante, pois ali está o testemunho de que escutar a sexualidade, os afetos e as relações em sua diversidade está na origem da clínica psicanalítica. E isso se desdobra depois de Freud em como cada psicanalista vai fazendo disso sua prática...

PORCHAT Acaba, creio, passando pelo analista. Por exemplo, fiquei muito contente entrevistando a Ana Maria Fernández, analista argentina. Ela contou que, desde a década de 1980, se reunia com um grupo de mulheres analistas, sociólogas e historiadoras, para ler Freud em um trabalho de separar um pouco o joio do trigo. Quer dizer, quais textos de Freud eram muito potentes, vários, e outros realmente empacavam em uma questão de gênero, da forma de olhar a mulher, de pensar os destinos da mulher. Na forma de ter um homem falando sobre as experiências da mulher, mas de um jeito que, talvez, não fizesse muito sentido para aquilo que analistas mulheres, mesmo um pouco depois do Freud, já tinham dito. Então, uma liberdade de poder dizer: "Isso não serve". E me vi, em minha formação de analista, quantas vezes tendo que ler esses textos e vendo professores dizendo: "Bom, isso é assim, esse é o jeito de se pensar o feminino aqui, a construção da subjetividade feminina". Como se fossem verdades.

E é tão maluco perceber essa repetição do mestre em todos os seus aspectos, como se ele não errasse, como se não pudesse pisar na bola em relação a algumas questões atravessadas pelo social ou até por aspectos dele mesmo, Freud. Quer dizer, ele podia ter uma escuta incrível, como vocês apontam, e ao mesmo tempo escrever um texto que fosse uma pisada na bola para falar da mulher.

Mas temos a liberdade de pensar. E acredito que isso tem a ver um pouco com a filosofia. Não é porque o autor disse, que é verdade. Podemos discordar de algumas coisas da obra dele e isso não quer dizer que se está recusando a psicanálise. Então, isso sempre me intrigou nos analistas.

 

PERCURSO Freud é brilhante, um gênio mesmo, essa escuta, essa abertura, a tolerância. Mas também não precisamos ficar salvando o Freud, o Lacan ou quem quer que seja. Temos que partir do que é possível, e ir avançando...

PORCHAT Mas isso é algo que eu vejo, até hoje, muitos analistas fazendo: salvando, salvando, salvando o Freud em todos os textos.

 

PERCURSO Para finalizar, você gostaria de incluir algo que não colocamos?

PORCHAT Penso que é interessante me situar, nesse momento, na psicanálise. Passei um ano fazendo pós-doc na França em 2019, e lá encontrei pares que se permitem aproximar a psicanálise do Foucault e do Deleuze, sem achar que, por isso, é menos psicanálise. E encontrei uma interlocução entre Lacan e Foucault fortíssima, que eu desconhecia. Vi, um pouco, o Birman fazendo aqui. Essa interlocução existiu na época em que eles, tanto Lacan quanto Foucault, estavam ativos.

Muitos analistas pensam, hoje, algumas questões do Freud e do Lacan a partir do Foucault e do Deleuze, sem que isso receba qualquer tipo de crítica do tipo: "Bom, então você é esquizoanalista, porque se aproximou do Deleuze" ou "Foucault não gosta de psicanálise, então você não gosta também". Esse tipo de comentário era muito comum.

Essa liberdade de poder se aproximar e se distanciar de alguns outros autores que não são necessariamente psicanalistas, mas que pensaram a psicanálise e nos ajudam a pensar alguns aspectos da psicanálise, me parece fundamental nesse momento. Temos um Ken Corbett, winnicottiano de formação, mas que se aproxima depois de vários autores dos estudos de gêneros. Temos a Laurie Laufer, na França, diretora do CRPMS, lacaniana de formação, muito próxima do Jean Allouch que, por sinal, se aproxima muito do Foucault e dos estudos gays e lésbicos americanos.

Essa psicanálise continua produzindo seus efeitos, formando analistas e aberta a todo esse mundo novo de pacientes que vem chegando. Pacientes novos, porque saíram finalmente do armário, muitos deles, e puderam se aproximar da psicanálise, porque essa psicanálise também está se dizendo mais aberta, não é uma psicanálise que vá dizer: "Bom, então, querido, quatro vezes por semana porque precisamos dar um jeito na sua questão de gênero". E é novo também porque, por exemplo, pessoas não binárias chegam e se dizem não binárias, mas antes talvez dissessem: "Talvez eu seja transexual". Agora, elas dizem: "Não, eu não sou transexual, mas tem alguma coisa aí que, para mim, ainda não está definida ou não é para se definir. O que o mundo oferece hoje para mim não me traduz. E, então, vou me dizer não binária. Tudo bem para você?".

E, de repente, a gente vê que na Austrália, na Suécia, na Alemanha, nos Estados Unidos, algumas pessoas estão conseguindo seu registro como não binárias. Há uma mudança no mundo acontecendo, não dá para negar. Pensar essas novidades só dentro de um campo psicanalítico fechado dá trabalho, então acredito que as interlocuções vão arejando a psicanálise para poder, enfim, dar conta disso que está mudando.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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