voltar à primeira páginaResumo Resenha de Vladimir Safatle, Maneiras
de transformar mundos: Lacan, política
e emancipação, Belo Horizonte, Autêntica, 2020, 176 p. Autor(es) Bruno Carvalho é psicanalista, psicólogo, bacharel, mestre e doutorando em filosofia. Notas 1.V. Safatle, Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte, Autêntica, 2020, p. 162. 2.V. Safatle, op. cit., p. 115. 3.V. Safatle, op. cit., p. 12. 4.V. Safatle, op. cit., p. 34. 5.Idem. 6.Indico que o livro é em certa medida um desenvolvimento do artigo: "Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo de emancipação política" (Estudos Avançados vol.31, n. 91, São Paulo, set./dez. 2017). Neste, curiosamente, ao invés da emancipação, o significante da revolução teve mais destaque. Em torno dessas escolhas talvez se pudesse construir uma discussão, para a qual, contudo, não há espaço. 7.Apontar a preocupação comum de uma época com o problema da autoridade, assim como a descrição do Eu em Lacan como semelhante da personalidade autoritária como descrita pelos estudos da Escola de Frankfurt é, de fato, uma contribuição preciosa. Se, contudo, no caso dos alemães a questão era explicitamente estudada de um ponto de vista marxista e visando compreender a revolução que não se deu, no caso de Lacan, mesmo que o texto seja publicado em 1938, portanto com Hitler e Mussolini já no poder, o discurso científico das discussões antropológicas é o que predomina. Assim, são necessários mais argumentos para afirmar que "Lacan insiste que mutações na estrutura da família moderna desempenharam um papel central no desenvolvimento das condições psíquicas para a emergência do fascismo" (V. Safatle, Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte, Autêntica, 2020, p. 39). 8.Pode-se acompanhar a ressalva feita às feministas nesse ponto, mas seria o caso de considerar a obra lacaniana de forma global (por exemplo, em torno do conceito de Nome-do-pai) para avaliar inteiramente a crítica delas ao primado fálico. Note-se também que o caminho de Safatle privilegia o debate com o feminismo de nossa época, mas seria possível também pensar as respostas lacanianas às críticas feministas e antropológicas contemporâneas de Lacan. 9.V. Safatle, op. cit., p. 74. 10. V. Safatle, op. cit., p. 64. 11. Note-se que novamente a via adotada por Safatle, como no caso acima com o feminismo, é a da defesa de Lacan contra as críticas. A relação de Lacan com Deleuze e Guattari poderia ser abordada também pela via da apropriação - como foi feito com relação a Bataille - enfatizando assim a discussão tensa entre eles. A estratégia de ampliação conceitual, se teve a vantagem de mostrar os debates e consequências políticas da obra de Lacan, padece, por outro lado, de unilateralidade na apresentação de um Lacan muito incompreendido. 12. V. Safatle, op. cit. p. 106. 13. V. Safatle, op. cit., p. 110. 14. V. Safatle, op. cit., p. 127. 15. E. Roudinesno; A. Badiou, Jacques Lacan, passado e presente. Rio de Janeiro, Difel, 2020, p. 42. 16. E. Roudinesco, Lacan: esboço de uma vida e história de um sistema de pensamento. São Paulo,Cia. das Letras, 1994, p. 286. 17. F. Dosse, História do Estruturalismo, vol. 2. Bauru, Edusc, 2007, p. 169-70. 18. V. Safatle, op. cit., p. 31. 19. V. Safatle, op. cit., p. 146. voltar à primeira página
| | LEITURALacan, um pensador paradoxal da emancipação [Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação]Lacan, a paradoxical thinker of emancipation
Bruno Carvalho
Com um título que poderia evocar algo do manual de instruções, Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação porém não tergiversa diante da complexidade do problema que se coloca e, como o autor esclarece ao final, realiza a encomenda de uma introdução curta à obra de Lacan que abordasse a relação com a política. De escrita acessível, na medida do possível um Lacan traduzido não só do francês como do idioleto lacanês. A ideia dos mundos a serem transformados evoca a distinção psicanalítica entre um mundo psíquico e um mundo externo; um vocabulário, contudo, ausente do livro, pois participa de outra linhagem teórica. Para Lacan, com a preponderância dada à enunciação em detrimento ao enunciado (ao ato de dizer, não ao dito), essa cisão não faz sentido. Safatle, no entanto, e talvez por isso mesmo, sugere que não são meras analogias as relações entre as transformações possíveis em uma vida singular e as da vida social. Nesse sentido, seu novo livro realiza mais um esforço de articular os campos da psicanálise e da filosofia. Se em seu mestrado estudara a noção de descentramento do sujeito na obra de Lacan, agora a questão é retomada para pensar as suas consequências políticas. "Foi como paradoxal pensador da emancipação que Lacan apareceu neste livro"[1]. Guiemo-nos pelo fio condutor oferecido nessa declaração de intenção no final do livro e que, por essa razão, deveria ser o metro a partir do qual primeiramente lê-lo. Partamos então da questão da emancipação. O sentido jurídico de emancipação, como maturidade[2] e autonomia em relação aos tutores, que estrutura a definição kantiana de esclarecimento, estava presente nas formulações freudianas quando ele fala em amadurecimento no desenvolvimento da libido, com o primado da genitalidade e consequente valorização do princípio da realidade. Mas não é essa a posição lacaniana. Seu ideal de análise seria o de um sujeito no qual o Eu estaria ausente[3], no qual as ilusões de racionalidade, todas articuladas ao Eu, deveriam ser ao menos desestabilizadas. Emancipação, nesse sentido lacaniano, seria uma emancipação em relação ao sentido moderno de emancipação, ou seja, um distanciamento justamente em relação às ambições e aos ideais que a modernidade construiu para a humanidade. Se eles acabam por se condensar no Eu, então, segundo Safatle, "para Lacan, a possibilidade de vincular a clínica a processos de emancipação passará por estratégias de decomposição do Eu, para que outra forma de experiência de si e de agência possa emergir"[4]. A emancipação seria então, nos termos de Lacan citados pelo autor, "uma experiência no limite da despersonalização"[5]. Tudo se passa como se a filosofia política fosse instada a se posicionar diante das contribuições da psicanálise. Importa sublinhar que é sobre a reflexão acerca da prática clínica ou sobre a direção do tratamento que o núcleo central das argumentações do livro se organiza[6]. Portanto, o interesse do livro não reside apenas nas questões que formula para a teoria política, mas também concerne particularmente aos psicanalistas. Ele se estrutura em uma engenhosa analogia com os quatro conceitos da psicanálise que Lacan apresenta em seu Seminário de 1964. Do quarteto Inconsciente, Repetição, Transferência e Pulsão, passamos para: Identificação, Gozo, Transferência e Ato analítico, e cada qual redundará em um capítulo. Ressalte-se que, desse esquema, os dois últimos dos quatro conceitos já indicam a mencionada preponderância das questões da direção do tratamento. É verdade, porém, que Safatle acrescenta sem desenvolver também o eixo do Reconhecimento. Essa estrutura é um dos méritos do livro, pois cobre as vias principais para pensar a relação entre Lacan e política e fica como orientação prolífera para outros estudos nessa interface. Outra qualidade do livro é a maneira pela qual o esquema é desenvolvido. Por uma certa forma de fazer história da filosofia, os conceitos são analisados por um procedimento, por assim dizer, de ampliação no qual eles são tensionados com outros pensadores de diferentes épocas, bem como o contexto sociohistórico. O conceito de identificação, no primeiro capítulo, é a porta de entrada para pensar o problema da autoridade. De um lado, Lacan é apresentado no contexto mais amplo de outras teorias que, nas décadas de 1930 e 40, pensaram as transformações da autoridade a partir de mutações na família. Reich, Fromm, Mietscherlich, Horkheimer, Adorno e seus estudos sobre a família e a fragilização do pai são aproximados[7] da discussão lacaniana em "Complexos familiares" sobre as consequências do declínio da imago paterna. De outro lado, novamente amplifica-se a discussão sobre a autoridade a partir da prática clínica de outros psicanalistas. No interesse lacaniano pelo tratamento psiquiátrico em grupos de Bion, Safatle encontra uma posição política que defende um lugar esvaziado de poder e afirma que é ela que teria os efeitos terapêuticos. As duas vias se articulam no momento que, diante da fragilização do pai, uma expectativa imediata seria defender alguma forma de sua revitalização. Safatle identifica que essa foi justamente a saída reacionária que a sociedade tomou com o fascismo, mas não foi a saída de Lacan, que procura conservar o lugar do poder como um lugar vazio. Sendo as experiências de poder também uma forma de gozo, a discussão desse conceito se torna inescapável. No segundo capítulo, a amplificação conceitual se dá em quatro momentos. 1) Pela explicitação de sua gênese em uma interlocução com Bataille. Se este pensava o excesso do gozo como uma experiência de crítica à sociedade do trabalho?- pois alude a experiências não orientadas pelo cálculo da utilidade?-, Lacan mostrará que o capitalismo não é um modo de gozo apenas baseado na renúncia, que ele se funda numa espoliação do gozo: uns gozam mais que outros, a ponto de haver um mais-gozar (um homólogo da mais-valia). 2) Pelo debate com as feministas (Butler, Fraser, Preciado e Wittig)[8]. Safatle defende que a psicanálise não poderia ser vista como uma tecnologia de manutenção da heteronormatividade binária, porque ela de fato é monista, ou seja, a lógica fálica organiza todas as relações: "o patriarcado é uma forma de gozo que implica todos os sujeitos, independente de sua orientação de gênero"[9]. O falocentrismo lacaniano não seria a defesa de uma norma, mas a descrição de uma inadequação generalizada; isso significa que ninguém escapa à alienação. 3) Pelo comentário do caso clínico de Ernst Kris?- o sujeito com inibição para publicação e que gostava de comer miolos frescos?- como exemplo do gozo como operador clínico. A "clínica deverá levar os sujeitos a se relacionarem com um gozo que os atravessa e que os retira de seu domínio de si, sem com isso submetê-lo ao domínio de alguma pretensa naturalidade perdida dos impulsos e paixões"[10]. A intervenção de Kris, contudo, seria incompleta, pois não se analisa o desejo de comer miolos frescos e o gozo oral aí pressuposto, algo que se impõe ao sujeito rompendo suas ilusões de autodomínio e se articula à sua inibição. 4) Pela ênfase na castração como uma experiência com possibilidade criadora. Ao contrário de Deleuze e Guattari[11], que compreendem que a caracterização lacaniana do desejo como falta seria uma restrição, Safatle defende que a impossibilidade da completude pressuposta na falta impõe, ao contrário, uma busca por relações de complementaridade, o que poderia abrir para outros tipos de gozo. Por isso Lacan fala em forclusão da castração no capitalismo, ou seja, que em seu interior não há espaço para nada além da padronização do gozo na busca pelo mais-gozar. No terceiro capítulo, a dimensão política da transferência é ampliada pela discussão da formação das sociedades psicanalíticas. Quando da expulsão de Lacan da Sociedade Francesa de Psicanálise em 1963, no gesto dele de fundação de uma Escola estaria presente não só uma denúncia à burocratização da ipa, a seus critérios de formação de analistas que se mostram deturpados por disputas internas de poder, mas sobretudo a tese de que uma política é posta em ato pelos psicanalistas na formação de suas sociedades e que este é um problema teórico imanente à psicanálise. Safatle nos lembra que a transferência sempre foi uma categoria política, isso fica claro, pois o conceito de identificação de Freud é devedor dos estudos sociopolíticos sobre o fenômeno das massas. O líder das massas, no discurso do mestre, atua no sentido de perpetuar a suposição de um saber sobre o meu desejo. Estrutura-se assim uma relação ilusória de reconhecimento intersubjetivo. Mas, na verdade, Safatle defende que a transferência é uma relação de sujeito-objeto. É por ser portador de um objeto que causa o desejo (o objeto a) que se estabelecem laços de identificação entre o líder e as massas. O discurso do analista porém não escamoteia, assume que os objetos ocupam o lugar de agente, busca justamente extrair qual é o objeto causa do meu desejo e analisá-lo. O saber analítico aparece então como simultâneo da sua destituição. Emancipação e transferência se articulam nessa crítica à forma de autoridade da ipa: "toda emancipação possível terá a forma de uma liquidação da transferência"[12], que deve ser entendida como abertura a relações de poder que não sejam de dominação[13]. E as sociedades psicanalíticas deveriam ser um espaço de reconhecimento desse processo. Essa experiência se caracteriza pelo que Lacan denomina de ato analítico. No quarto capítulo, a amplificação desse conceito será pela via do tensionamento histórico com o processo político de maio de 68 e pela discussão da proposta do passe. Este foi pensado como um instrumento de reconhecimento institucional do final de uma análise. Mas se uma análise não é um processo intersubjetivo, e se o ato analítico modifica a relação entre o sujeito e a linguagem, como então esperar sua formalização pela linguagem? Ainda que malograda, essa proposta é apresentada por Safatle como uma tentativa de ir ao núcleo do problema da transferência e de autoridade no interior das sociedades psicanalíticas. Isso seria distinto das realizações de maio de 68, que reatualizaram as possibilidades internas à própria lógica de poder, alterando-se os ocupantes das posições de poder, mas não os lugares e a estrutura do poder?- vai nesse sentido a lembrança irônica de Lacan da acepção astronômica de revolução como retorno ao mesmo lugar. O ato analítico seria o equivalente psicanalítico do acontecimento histórico, da revolução efetiva no plano político, que empreende uma real subversão instaurando uma cisão entre a antiga e nova ordem. Se a clínica visa algum tipo de deslocamento em relação à repetição, seria por meio de algo da ordem da subversão; foi um ato analítico que ocorreu ao sujeito, subvertendo-o. Não uma atitude do analista, mas uma consequência do discurso analítico que reorganiza a relação do sujeito ao seu sintoma, abrindo campo para o que eles possam apontar para novas formas de vida[14]. Acompanhamos os vários sentidos da emancipação no livro. Mas onde residiria o paradoxo na forma como Lacan pensa a emancipação? Segundo Safatle, ele se encontra sobretudo nas contradições da aposta no expediente do passe e refundação de uma escola e apenas em alguma medida com relação a 68, pois se apresenta um Lacan mais subversivo que os militantes. Talvez, contudo, o carácter paradoxal do pensamento emancipatório de Lacan ficasse mais evidente se suas posições políticas, que não se notabilizavam por seu engajamento, fossem discutidas. Roudinesco, mesmo defendendo o lado subversivo de Lacan, não hesita em caracterizá-lo como "conservador esclarecido"[15]: "[...] ainda que quisesse convencer os marxistas a se interessarem por seu ensino, não tinha menor simpatia pelo comunismo. [...] É à social-democracia que dava sua preferência de cidadão, sem apregoar isso publicamente. [...] na realidade ele só conhecia política que servia à sua doutrina"[16]. Há ainda posições mais críticas, como a de François Dosse, para quem Lacan cumpre a função de "curar as feridas do fracasso" de 68 ao anunciar a "hora da revolução impossível", ou melhor, que "na impossibilidade de mudar o mundo ainda é possível a cada um mudar-se a si mesmo"[17]. Safatle, por seu turno, insiste que a transformação dos mundos depende de um "ato que representa uma ruptura gramatical", de uma "transformação da gramática do ‘si próprio' normalmente esquecida pelas dinâmicas revolucionárias"[18]. Ele afirma ainda que buscou pensar "a relação entre ato analítico e revolução a partir de um devir revolucionário dos sujeitos"[19]. Há, certamente, algo que permite a aproximação entre esse devir e a revolução. Essa subversão simbólica é uma maneira possível de descrever algo dos efeitos de uma análise, mas seria a melhor forma de pensar uma revolução? Freud estruturou alguns de seus textos sobre um paralelismo semelhante entre filogênese e ontogênese, mas nunca desenvolveu essa tensa relação. Seu laconismo talvez já não apontasse para os limites de se descrever com os mesmos termos do psiquismo as expectativas de um acontecimento político-social?
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