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lista das entrevistas

Resumo
Realização?Ana Claudia Patitucci, Bela M. Sister, Cristina Parada Franch, Clélia Prestes, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan de Cardoso, Silvio Hotimsky e Tatiana Inglez-Mazzarella Entrevistadora convidada?Clélia Prestes


lista das entrevistas
 ENTREVISTA

Maria de Lourdes Teodoro - Afrobrasilidades, sem hífen

Maria de Lourdes Teodoro - Afrobrazilities, without hyphen

No segundo semestre de 2019, o grupo de entrevistas da Revista Percurso encontrou-se com três profissionais e ativistas do Instituto amma Psique e Negritude para o processo de estudo e realização da entrevista em homenagem aos 25 anos de trabalho e militância dessa instituição que, tão profundamente, conhece as marcas que o racismo imprime nas subjetividades de negrxs e brancxs, as consequências delas para as relações raciais e seu impacto na saúde mental das populações.

 

O diálogo entre nós, marcado pelas tensões que o tema suscita, nos levou a cultivar e realizar o desejo de uma entrevista a ser feita conjuntamente, sobre a temática das relações raciais. Foi a primeira vez, na história de nossa revista, que um trabalho foi pensado, planejado e executado por meio de uma parceria institucional. A partir desse diálogo, assumimos conjuntamente entrevistar a psicanalista e ativista Maria de Lourdes Teodoro.

 

O processo foi marcado por estranhamentos e encontros. Estranho lidar com essa temática a partir dos conhecimentos da equipe da Percurso em relação ao tema, considerados insuficientes, o que levou a essa parceria com o Instituto amma. Estranho não conhecer uma psicanalista com experiências e produções amplas, tão admiráveis, como Lourdes Teodoro. E estranho reinventar o trabalho em meio à pandemia, que impossibilitava encontros presenciais.

 

Ao longo dos meses de estudo e preparação da entrevista, nos vimos mais atentas(o) aos inúmeros casos de violência contra afrobrasileirxs. Os livros, entrevistas e poesias de Lourdes Teodoro fertilizavam discussões psicanalíticas e políticas sobre o caráter pandêmico do racismo.

 

Acompanhamos de maneira mais próxima as manifestações de intelectuais posicionando-se em relação ao racismo, dialogando com outros setores, incluindo o movimento negro, recebendo críticas, por vezes se revendo, e tudo isso também acompanhado de reflexões no grupo sobre como compreendíamos e sentíamos a luta antirracista, as parcerias inter-raciais, a racialização de pessoas negras e brancas, nossos lugares como psicanalistas brancas(os) e negras(os).

 

Enquanto nos inteirávamos da obra e currículo da psicanalista negra escolhida para a entrevista, nascia o encantamento e a vontade de a conhecer mais. Lourdes Teodoro é formada em Letras (Universidade de Brasília?- UnB), onde também foi professora. Reúne experiências de vinculação à Escola Lacaniana de Brasília, ao Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo, da Sociedade de Psicanálise de Brasília, assim como de ativista em favor da anistia e contra o apartheid e o racismo, desde a década de 1960, ao lado de outras grandes figuras do movimento negro brasileiro. É palestrante e autora de diversas publicações no Brasil e exterior. Um exemplo é sua tese de doutorado, com o título "Identidade cultural e diversidade étnica", desenvolvida na Universidade de Paris (Sorbonne), depois sendo lá publicada como livro, em que analisa comparativamente o movimento do Modernismo brasileiro e o de Negritude caribenho e africano. Tem também uma obra sobre Aimé Césaire editada na Alemanha. Os recursos para suas formulações e análises sobre identidades advêm da literatura comparada, etnografia, antropologia e etnopsicanálise. É autora, ainda, de poesias, prosas e ensaios.

 

Em sua busca por conhecimento e garantia de direitos, cruzou o Atlântico, acompanhada por seus filhos, até Londres, com destino a Paris, para se dedicar ao doutorado. Passou também pelos Estados Unidos, onde fez o pós-doutorado na Universidade de Harvard, vinculando arte e psicanálise, e, ainda, atuou e dedicou-se a conhecer culturas em Angola, Senegal, Burkina Faso e outros países africanos.

 

Estranho constatar sua invisibilização no meio psicanalítico, algo comum no caso de outras pensadoras negras nesse campo, como Virgínia Bicudo, Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, entre outras. Uma das expressões do genocídio, que ela analisa na entrevista, e que atinge também as produções teóricas de não brancxs.

 

Então veio a entrevista, um encontro com reflexões potentes, bem fundamentadas e politizadas. Uma história de muita competência e sensibilidade, sempre atenta aos amplos contextos das relações raciais, assim como às nuances de cada subjetividade. Uma trajetória por entre atlânticos, culturas, linguagens, artes, humanidades, desafios, diálogos, resistências, criatividades, inovações.

 

Ao desenvolver seu pensamento, relaciona variadas referências, pertencimentos, estudos, experiências. Transmite seus pensamentos, com a beleza de quem maneja sensibilidade, elegância e sabedoria, em uma conjugação de identidades. Partilha uma verdadeira biblioteca de referências fundamentais, inspirando (re)leituras dedicadas. Lourdes Teodoro reconhece suas inúmeras instâncias de pertencimento, sem se demorar em nenhuma, sem nenhuma desconsiderar, e, com sabedoria política que não caberá na entrevista, afirma-se afrobrasileira, sem hífen.


Esse frutífero encontro entre amma, Percurso e Lourdes Teodoro alimenta nossas esperanças de que a psicanálise e xs psicanalistas se comprometam com encontros genuínos de pessoas de diferentes raças, cores e etnias, consigo mesmas e entre elas.
 
Clélia Prestes e Silvio Hotimsky

 

PERCURSO A senhora poderia nos contar sobre seu caminho pela literatura, poesia, no campo das artes, e também como se aproximou da psicanálise e tornou-se psicanalista?

MARIA DE LOURDES TEODORO A poesia está em minha vida desde muito cedo, desde criança. Trago na memória os poetas que ouvi na infância, em declamações caseiras de minhas irmãs. Comecei a escrever poemas com 14 anos, em Brasília, emocionada com um pôr de sol. Na medida em que a arte é fruto de uma concepção estética das formas, as artes estão em minha vida desde a infância. O modo como se organizava o espaço de minha casa, entre a porta da cozinha e o pequeno muro que a separava do quintal. Tenho uma lembrança muito viva da beleza do jardim de plantas medicinais, das roseiras e do poço. De lá, via-se a grande janela da sala de jantar, à direita da qual havia a máquina de costura. Nela, minha mãe fazia obras de arte em linho ou algodão, ora bordando toalhas com uma técnica que chamavam Richelieu, ora fazendo vestidos elaborados para nós.

Durante a graduação em Literatura Brasileira e Língua Estrangeira Moderna, na UnB, conheci Aimé Césaire, Leopold Sedar Senghor, Mário de Andrade, Oswald, ao mesmo tempo que descobria Cruz e Souza, Rimbaud, Baudelaire, André Breton, Fernando Pessoa, etc. e todos eles me captaram em suas teias, por décadas. Ou mesmo por toda uma vida, como digo da poesia de Césaire. Mais tarde, acredito que a presença das artes chega durante minha licenciatura com os franceses, professores de literatura francesa na UnB, que associavam, às nossas aulas, a música, a pintura, o cinema. Foi muito natural depois disso gostar de visitar os museus pelo mundo.

Nos anos 1980, entrei no campo das artes quando não consegui ir para a literatura comparada como professora, na UnB. Sofri um acidente de trânsito à época e esse fato não me permitiu superar os bloqueios que precisaria contornar. Acredito que esses "bloqueios" tinham componentes racistas, mas também de ordem política. Minha defesa de tese na Sorbonne havia gerado uma polêmica com o componente brasileiro da banca. Com a porta da literatura comparada fechada, bati à porta das artes. Não me ocorreu morar em outro estado ou país... Tinha vontade de ficar em casa.

A ditadura tinha desfeito o Instituto de Artes, que se resumiu a um Departamento de Desenho. Um nome oco para abrigar as várias linguagens do campo das artes. Queríamos recriar o Instituto de Artes e para isso precisávamos de pessoas com títulos de doutor, mestre, etc. Assim, fui trabalhar com a disciplina de Folclore Brasileiro, que tinha relação com meu doutorado com base na obra de Mário de Andrade e Aimé Césaire. Participei da primeira seleção pública para professores realizada pela UnB e acabei me adaptando bem ao Instituto de Artes. Explorei a temática da identidade cultural, tema do meu doutorado, adaptando-o à disciplina dada por Fernando Bastos, professor de Elementos de linguagem, estética e história da arte, na qual ele trabalhava a filosofia grega. Nessa disciplina, explorei a questão identitária com textos sobre Atenas e seus bárbaros, os Outros, não atenienses. Achei uma disciplina intensa, permitia explorar várias linguagens: literatura, cinema, música. Para uma comparatista, nada melhor! Depois me convidaram para ficar no Departamento de Desenho, com essa disciplina e com o folclore. Essa mudança de área me levou a buscar ajuda, e comecei uma análise pessoal. Me entusiasmei com a eficácia da psicanálise. Anos depois, criei uma disciplina de Introdução à psicanálise no Mestrado em Arte e Tecnologia no Instituto de Artes.

Quando estava em Paris e estudava sobre o racismo no Brasil, também fui à procura de um atendimento psicanalítico, porém desencontrei-me com uma psicanalista branca brasileira. Esse desfecho me pôs no caminho de George Devereux, que se tornou um grande amigo.

De volta ao Brasil, já professora do Instituto de Artes, iniciei minha formação em psicanálise na Escola Lacaniana de Brasília, da qual fui membro fundador. A instituição contava com o apoio da Lacaniana do Rio e José Mário Simil Cordeiro, em Brasília. No retorno de minha viagem para o pós-doutorado, voltado à psicanálise e à arte, a Escola havia se cindido em duas e busquei a ipa como via de continuidade, no final dos anos 1990. Ao chegar ao Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo, órgão da Sociedade de Psicanálise de Brasília, uma professora me advertiu de que Lacan não era bem-vindo. Escutei sua sugestão e enterrei Lacan, covardemente. Vamos ver se o morto ainda fala... Há alguns anos, começou um retorno a Lacan, na ipa.

Após meu pós-doc junto ao Center for Literary and Cultural Studies, de Harvard, e ao W.E.B. Du Bois Institute for African American Research, voltei decidida a assumir a clínica em psicanálise. Minha leitura da obra do Lacan e os seminários semanais que acompanhei no clcs, um deles voltado para a clínica e a teoria lacaniana, reforçaram meu desejo de ser psicanalista. Assim, comecei a atender como voluntária em uma instituição que acolhe órfãos ou crianças cujos pais enfrentam dificuldade temporária. Tratava-se de uma criança de oito anos, um caso já abandonado pela psicologia e pela psiquiatria, um menino afrobrasileiro (assim mesmo, sem hífen) que sofria maus tratos frequentes e, por essa razão, encaminhado à instituição. Uma síntese desse atendimento foi apresentada em um Congresso da fepal: "Sofrimento psíquico de crianças em instituições, funções parentais e aprendizagem".

 

PERCURSO A senhora tem um percurso interessante em diferentes campos de atuação, que inclui também longas temporadas fora do Brasil.

LOURDES Sim, estive na França algumas vezes, como estudante e bolsista do governo francês e, na última vez, fui para fazer o doutorado. Nessa ocasião, viajei primeiro para Londres, onde fiquei por um ano, para aguardar sair a bolsa de pesquisa do governo francês. Isso foi na época do governo Geisel. Eu era ativista pela Anistia Internacional e a insegurança política me levou a deixar o Brasil com meus filhos pequenos. Passamos três horas intensas no serviço britânico de imigração e, somente então, foi possível entrarmos na Inglaterra.

Estive também algumas vezes na África durante minha vida acadêmica. Só a primeira e a última viagens foram de turismo, as demais foram para participar de algum colóquio ou congresso. Desses retornos, ressalto a viagem a Angola, num momento de abertura política, como convidada da Universidade Agostinho Neto e do Instituto Superior das Ciências da Educação de Lubango, para oferecer seminários sobre arte africana, afrobra­sileira e identidade cultural. Em Burkina Faso, estive com Lélia Gonzalez no Colóquio Internacional de criação do Instituto dos Povos Negros.

Minha segunda viagem ao Senegal, em 1986, foi uma experiência marcante. Participei do Colóquio Internacional pelo Tricentenário do Código Negro[1]: vinte especialistas da África, das Américas, da Europa e do Caribe atualizaram a leitura do Código Negro com o objetivo de favorecer o diálogo entre as culturas e de contribuir para a eliminação do racismo no planeta. Muitos dos historiadores presentes haviam feito pesquisa de campo em países africanos sobre o período do tráfico de escravos e era muito impressionante ver como a escravidão havia impactado e ainda impacta as sociedades africanas. Éramos duas brasileiras presentes, uma historiadora e eu. Dois anos antes em Paris, eu já havia participado como comparatista da primeira comissão da unesco que lançou ideias para esse encontro.

 

PERCURSO Como tem sido transitar entre atlânticos, entre países e culturas, entre áreas e instituições diversas, a partir dos seus lugares de pertencimento?

LOURDES Lugares de pertencimento... Lacan me vem à mente, porque nossa linguagem é o chão em que pisamos, é o que nos constitui. Nasci com sangue indígena, negro-africano/sangue brasileiro que resistiu à escravidão, escravo e sangue europeu, senão eu não teria essa aparência que traz um pouco de tudo. Sou isso. Me situo a partir de minha subjetividade, minha experiência, minha história de vida. É claro que há situações em que cabem autodefinições como: ser brasileira, afrobrasileira, sulamericana, goiana/brasiliense, psicanalista, terapeuta comunitária, poeta. Já outras características ligadas à aparência falam por si.

Na Ilha de Gorée, eu falei da identidade cultural afrobrasileira e improvisei um sarau nas escadarias da Casa dos Escravos, hoje um museu. Na minha apresentação, errei a data da independência do Brasil e fui corrigida por minha companheira de viagem! Depois, pensando no lapso, aprofundei o sem sentido da independência em 1822, quando todo o meu povo permanecia escravo...

O pertencimento é esse retorno da minha fala, é onde ela faz sentido, passa por essa possibilidade de vínculo, a partir da linguagem. Ter no Outro mais a Alteridade do que a diferença, que lhe é, todavia, inerente.

É aí que me sinto pertencer, porque é também aqui que eu conheço, descubro, reconheço, acolho, me aproximo do Outro. E nisso, posso estar na casa de minha diarista ou do marceneiro que repara um móvel, ou ainda no Itamarati, quando chega Nelson Mandela ao Brasil, lugares por onde transitei, transito... na Universidade de Harvard, na escola primária no interior de Goiás onde vou fazer um trabalho com crianças, todos esses espaços me constituem com igual importância. Não me sinto mais isso ou mais aquilo, por estar aqui ou ali.

A pergunta me faz lembrar também que minha poesia fala muito dos lugares de pertencimento, por outro viés. De todo modo, o chão no qual eu piso é a linguagem, são minhas ações, meu estilo.

Nessas transições entre os atlânticos, vale ressaltar o tomar consciência do ser cidadã, mesmo estrangeira, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na África. É muito incrível ter certos direitos em decorrência da cidadania, quando funciona! Aquela vivificadora experiência de respeito humano teve um aspecto transformador, enquanto pesquisadora, intelectual, escritora e poeta. Em Paris, conviver em uma residência universitária com dois mil e quinhentos estudantes, convivência realmente pluricultural, representou também uma significativa ampliação de horizontes. Nesse contexto, bem machista, as mulheres eram minoria, e as mulheres negras mais ainda... o trabalho de conquista de espaços e de adaptação era um desafio a ser enfrentado e superado.

 

PERCURSO Sua experiência clínica trouxe aportes ao seu pensamento sobre a constituição da subjetividade?

LOURDES Como disse acima, iniciei minha clínica com o atendimento de uma criança de oito anos que se mostrava agressiva, revoltada, indócil e ainda sem letramento. Ela encontrava muita resistência nos ambientes que frequentava, fosse o familiar, o social ou escolar. Gozava de descrédito por parte de todos. A instituição, após me oferecer um significativo dossiê dos quatro anos de atendimento psicológico e apoio psiquiátrico, me pergunta: "e então, o que a senhora acha?". Entendi que podia conversar com essa criança e apostar na psicanálise. O trabalho foi muito gratificante. Após algum tempo de análise, esse menino me mostrava orgulhoso seu caderno, lendo o que escrevera com caligrafia bem organizada, como se soubesse fazê-lo há tempos. Sua mãe relata que, no percurso até a clínica, ele conseguia ler os nomes das lojas. Também quis contar ao filho o nome de seu pai e prometeu levá-lo para conhecê-lo.

Essa experiência clínica me mostrou que a falta de continência ao bebê no ambiente familiar pode trazer danos à constituição da subjetividade. Mostrou também que uma criança afrobrasileira, com déficits na aprendizagem e no comportamento social, terá poucas esperanças de reconstituição de sua vida libidinal; de deixar falar seu sintoma até fazer dele uma narrativa apaziguadora.

A pergunta também me faz lembrar experiências muito relevantes para pensar o processo de constituição da subjetividade. Fiz a observação da relação mãe/bebê, pelo método Esther Bick, no Instituto de Psicanálise Virgínia Bicudo. Outro olhar nessa direção, experimentei no curso de especialização em diagnóstico e tratamento dos transtornos do desenvolvimento na infância e na adolescência, oferecido pelo cepagia/Bsb e pelo Centro Lydia Coriat, de Porto Alegre.

Observar a relação mãe-bebê pelo método Esther Bick é aprender a olhar, observar, ver e sentir, em silêncio. Contendo as próprias emoções e as emoções à sua volta. No seminário clínico, o grupo e a supervisora nos ajudam a escutar o que observamos. É uma experiência ímpar. Já a observação pelo método Lydia Coriat pressupõe a escuta da linguagem corporal do bebê. Talvez se fique menos atenta aos seus silêncios... De todo modo, as produções de linguagem do bebê são, naturalmente, decorrentes de sua relação com a mãe ou com seus cuidadores. No método Esther Bick a relação é o essencial. Julieta Jerusalinsky diz que: "Supor um sujeito no bebê quando ele não está de fato constituído é uma das operações fundamentais sustentadas pelo Outro encarnado, que implica, nos termos de Winnicott, uma loucura necessária das mães" (2002).

A observação da relação mãe-bebê permite inferir estados de formação da mente, por via de vários mecanismos como a incorporação, assimilação, introjeção, identificações sucessivas, identificações projetivas. É a partir desse real do corpo que mecanismos primitivos como o de incorporação ocorrem no estágio oral do desenvolvimento infantil, quando o comer (a amamentação) não se distingue da incorporação sexual da mãe (o seio materno) e dos impulsos canibalísticos estudados por Abraham. No mecanismo de introjeção, os diversos aspectos do objeto são assimilados e tomados como parte da própria realidade psíquica. Quando uma mãe retira, repetidas vezes, a mão do bebê do seu seio, durante a amamentação, por sentir que gera desconforto, pode-se observar o momento em que o bebê não toca mais o seio. O braço do bebê passa a ficar caído, sem qualquer tensão, ao lado do corpo, durante o restante de sua vida de lactente. Outro mecanismo, bem descrito por Melanie Klein, é a identificação projetiva que permite ao bebê livrar-se de um estímulo insuportável. Quando exitosa, as partes projetadas passam a ser parte do objeto. Por exemplo, uma criança pequena (um ano e oito meses) brinca com peixinhos e tubarões de plástico no consultório. Em dado momento, se aborrece e lança com raiva os peixinhos em um canto. Termina a sessão. No dia seguinte, ela não quer entrar na sala, tem receio; olha atentamente para o canto onde havia lançado os peixinhos. A analista lhe diz: levei todos os peixinhos e tubarões pro mar. A criança faz um leve sorriso, se descontrai e adentra o consultório, levemente desconfiada. Durante a observação de bebê pode ocorrer identificação projetiva entre os diversos objetos em relação: mãe-bebê-observadora. Por esse último aspecto, é uma importante fonte de autoconhecimento do observador.

Podemos ver, na relação fundadora, a passagem que o bebê faz do real orgânico à cultura, do ego corporal freudiano ao simbólico. O simbólico chega para o bebê pelo discurso da mãe, do pai, dos irmãos e familiares, desde o período de gestação, junto com os sons: vozes, melodias. Mas chega, de fato, a partir da "preocupação materna primária" que inclui a continência, a brincadeira, a ilusão, a fantasia. Notamos que a linguagem é antes de tudo musical: ritmos e entonações da língua materna; os primeiros sons e balbucios já em busca de palavras para nomear o mundo.

 

                Nascer

                o corpinho estremece

                leve gemência

                parece sorrir

                súbito abre os olhos

                pela primeira vez

                todo o quarto sorri

                como se fosse agora o nascimento

                [Lourdes Teodoro]

 

Essas experiências emocionais primitivas ganham no campo lacaniano uma leitura diferente, ele não considera particularmente uma relação dual (eu/Outro; mãe/bebê), mas uma relação que inclui pelo menos três: mãe/bebê/falo. É um outro entendimento do surgimento da subjetividade: um inconsciente estruturado como linguagem.

Creio que é a partir desse "inconsciente estruturado como linguagem" que seria possível expandir a compreensão do impacto do racismo na constituição da subjetividade e da identidade. Quando o racismo comparece na relação médico-paciente, durante a gestação, com a redução de anestesia em uma cirurgia cesariana ou com a recusa de contato com a paciente no momento do parto, isso pode causar danos à subjetividade do bebê, a partir do dano causado à mãe. Mas nada nos autoriza afirmar que essa criança tem problemas em consequência de atitudes racistas com a mãe. No entanto, se no tratamento que esse bebê receber na creche, na escola ou em casa (como o demonstrou Virgínia Bicudo em seu estudo pioneiro do racismo em ambiente familiar e escolar) ocorrer um comportamento racista, é bastante provável o surgimento de um trauma, mesmo em idades mais avançadas.

 

PERCURSO A ausência do pai em algumas famílias negras, resultado da marginalização do homem negro, pode provocar uma desproporção entre a autoridade experimentada na vida nacional e na vida familiar?

LOURDES Fritz Gracchus, em Les lieux de la mére dans les sociétés afro-américaines?- pour une généalogie du concept de matrifocalité (Os lugares da mãe nas sociedades afro-americanas?- por uma genealogia do conceito de matrifocalidade), discute essa questão do lugar do pai. E se refere não necessariamente à ausência física do pai, mas à ausência construída pela mãe. É uma situação bem diversa da situação brasileira, ainda que o resultado possa ser comparável. Creio que não se possa negar o impacto do genocídio na vida das famílias afrobrasileiras. Esse é um dado da nossa realidade tanto em 2020, quanto nos anos 1960, ou em 1968, quando Abdias do Nascimento lança Genocídio do Negro Brasileiro. Existe uma ausência do homem negro porque há um genocídio em curso. Durante muitas décadas, parece que se abafou um pouco essa denúncia. Nos iludimos que teria diminuído ou sumido ou que não aconteceria mais. Hoje vemos que acontece de forma violenta, inadmissível. Falamos de racismo, mas deveríamos estar falando mesmo de genocídio e lutando contra ele.

Há, todavia, muitas famílias afrobrasileiras bem constituídas e harmônicas. De todo modo, cabe à mulher transmitir ao filho/ à filha o nome do pai; isso passa pelo fato de ter ela mesma internalizada a figura paterna para efetuar essa transmissão.

 

PERCURSO Como você pensa o processo de constituição da identidade?

LOURDES A formação da identidade de uma criança passa por uma ruptura com a unidade dual (espaço-tempo) que a prende a sua mãe. Georges Devereux observa que, para afirmar sua independência em relação à mãe, a criança encontra no dizer NÃO a separação que marca a própria gênese de sua identidade. Isso corresponde a um verdadeiro segundo parto (psíquico). Quando a "fase do não" entra na vida da criança pequena, o processo de subjetivação já ocorreu e muitos mecanismos já foram vivenciados por ela, como incorporações, projeções, identificações. Depois de Freud, com a identificação primária, Lacan, Klein, Winnicott, Bion, Françoise Dolto descrevem esses mecanismos com nuances diversas, todos nos ajudam a compreender o processo de subjetivação.

Para a constituição de sua identidade no espaço, a criança desenvolve a consciência de um Eu corporal coerente, quando não é constrangida a "hierarquizar" seu corpo entre partes "vergonhosas" e partes puras. No que diz respeito à sua identidade no tempo, a imposição de um ritmo que não é o da criança leva-a a violentar o tempo que lhe é próprio. Como consequência, a criança perde a continuidade de si no tempo. Essa dissolução de continuidade no sentido do si próprio através do tempo é comparada, por Devereux, à condição do escravo, a quem as diversas ordens consecutivas do amo subvertem o controle de seu próprio ritmo de trabalho. O escravo não tem tempo para si mesmo. No filme Doze anos de escravidão, o proprietário da fazenda, ressaltando seu poder, convocava seus escravos para tocar e dançar no meio da noite.

Para Devereux, quando o processo de educação da criança for similar à relação de poder amo-escravo, produzirá um número importante de traumatismos de ordem psíquica. Se os pais reprimirem em demasia as manifestações da individualidade dos filhos, o resultado aparecerá na clínica como temor de ter sua própria identidade, buscando eliminá-la. Tornam-se "seres culpados". Acrescenta que o negativismo destes pacientes representa uma identificação com o inimigo, já que reproduz o negativismo dos pais para com toda manifestação da individualidade da criança.

A definição de identidade dada por Devereux permite pensar melhor o que ocorre nessas circunstâncias de formação cultural: "A constituição de uma identidade integrada é um problema que não pode ser frutiferamente abordado se não se precisar imediatamente que: compreender-se, conhecer sua própria identidade; compreender, conhecer a identidade do mundo externo; ser compreendido, ter uma identidade conhecida constituem uma só configuração, caracterizada por uma reciprocidade e complementaridade perfeitas dos três elementos em questão. Da mesma forma, no polo oposto, não se compreender, não compreender a realidade e não ser compreendido formam igualmente uma configuração integral"[2].

Pode-se observar que a reciprocidade e a complementaridade cessam de ser simultâneas quando os três elementos da definição concernem, não mais a um indivíduo, mas a uma sociedade determinada. É de maneira ideal que se pode encarar a constituição da identidade integrada de um indivíduo, considerando-o em seu meio natural, sem que os elementos de base (pertinência racial, étnica, linguística, religiosa, cultural) intervenham como fatores de conflito da identidade. Assim, temos o seguinte esquema: a constituição da identidade passa pelo autoconhecimento, amplia-se quando há conhecimento do Outro (mundo exterior) e se afirma quando a identidade que se atribui é aceita pelo Outro.

 

PERCURSO Como o modelo social, também caracterizado pelo racismo, interfere nesse processo?

LOURDES Devereux teoriza que, se no contexto europeu a criança branca afirma sua identidade contra mundum, a sociedade branca, ao acolhê-la enquanto igual, sob os planos biológico, psicológico, profissional, permite-lhe, na maioria das vezes, restabelecer seu equilíbrio num espaço e num tempo igualmente controlados. No mesmo sentido, diversas sociedades africanas, através de seus sistemas de educação, asseguram a formação da identidade em direção ao mundo e não contra ele. No momento da puberdade, os ritos de iniciação tornam possível o controle dos instintos e da vontade, assim como o desenvolvimento da coragem moral e da resistência física. Práticas que garantem a preservação de seus valores humanos (senso da fraternidade, coesão social) e de suas responsabilidades (obrigações sociais), necessários à preservação do grupo, da sociedade ou do país.

Em meu livro[3], formulo que: "Durante o estádio em que o processo psicológico dominante é a identificação, todo ser ou toda coisa que entra no espaço vivido pela criança se integra automaticamente ao ‘grupo interno' ou à ‘cultura do grupo interno' e é desde logo considerado ‘bom' e ‘justo'. [...] No entanto, a identificação, enquanto técnica principal de adaptação, cede pouco a pouco sua posição dominante ao mecanismo de projeção. É nesse estádio que a personalidade individual tem nascimento e o ‘sistema' torna-se ‘fechado'. Os indivíduos e os objetos novos são, por conseguinte, automaticamente consignados ao grupo exterior e à sua cultura e frequentemente qualificados, automaticamente, de ‘maus' ou ‘errôneos'. Assim, MacCrone com razão salienta que, no caso dos preconceitos raciais, nós projetamos sobre o grupo exterior nossos próprios desejos recusados e rejeitados e, portanto, caracterizamos este grupo em função de nossas pulsões repudiadas". (p. 84)

 

PERCURSO A senhora propõe uma extrapolação dos mecanismos psíquicos individuais, de projeção e identificação, aos processos coletivos. Como pensa essa extrapolação para a compreensão do conceito de identidade étnica e de que forma o superinvestimento desse tipo de identidade pode se tornar um aniquilamento real da identidade do indivíduo?

LOURDES A identificação é função do contexto sociocultural. É dentro do contexto de socialização que o indivíduo logrará identificar-se como ser humano em meio a seres humanos e, num nível individual, estabelecer sua singularidade. Compreender sua diferença em relação ao outro faz parte da própria identidade. Ser idêntico exige antes de tudo a compreensão de si da parte daquele que se diz idêntico ao outro. O fato de sofrer colonização fará com que os colonizados se conheçam, primeiramente, através do discurso do colonizador para o refletir em seguida "por si mesmos e para si mesmos", como diz Aimé Césaire.

Estou inteiramente de acordo com Devereux quando afirma que a identidade étnica nada tem a ver com os modos de comportamento. Em sentido estrito, ela não é nem mesmo um modelo ideal, é simplesmente um meio de triagem e de etiquetagem. Negro, por exemplo, é uma operação que enumera a identidade do sujeito afrobrasileiro. Esse termo é a redução da identidade ao seu signo mais aparente, a cor da pele, utilizado pelos escravocratas para nomear os africanos capturados para o tráfico. Em um primeiro momento, foi usada como protesto contra o projeto eugenista de branqueamento; passado esse momento, perde sua funcionalidade para o indivíduo. Todavia, há aspectos da identidade étnica que podem funcionar de forma positiva, e outros que desfavorecem a identidade da pessoa, do sujeito humano, ou do grupo étnico, por roubar-lhe exatamente características que o inserem na cultura, no sistema simbólico ao qual pertence, à sua nacionalidade como cidadão ou cidadã.

Me ocorre uma cena do documentário "Claude Lévi-Strauss", de Maria Maia, em que um índio Bororo, de Mato Grosso Central, descreve um ritual de sepultamento; ou quando Dona Procópia, do Quilombo Kalunga, me falava de seu povo na relação com os de fora que supunham que os Kalunga não tivessem identidade: "Mas nós tava tudo representado", me dizia sorrindo. Quando um Bororo diz que o Outro, o que não faz parte de sua aldeia, é "diferente"; ou quando Dona Procópia afirma: "Nós estava tudo representado", nos deixam perceber seu pertencimento inquestionável ao seu mundo, a sua "identidade étnica".

Já na situação brasileira (não indígena e não quilombola), urbana ou rural, não encontramos a harmonia encontrável no Quilombo ou no povo indígena. Quando no contexto da sociedade patriarcal colonial, hoje capitalista da pós-modernidade tardia, há a supremacia econômica/racial ancorada em todas as formas possíveis de desigualdade social, a afrobrasilidade ainda está em construção. Os afrobrasileiros, explorados e excluídos social, econômica e culturalmente, tendem a afirmar suas identidades por via de um superinvestimento em sua personalidade étnica, uma vez tomada a consciência da exclusão.

É nessas circunstâncias que traços culturais, indumentária, adereços, instrumentos musicais, músicas, línguas iniciáticas, fragmentos de uma memória coletiva, ainda difusa, passam a ser reivindicados, supervalorizados e ressignificados. A supervalorização desses símbolos expressa a personalidade étnica e, ao mesmo tempo, pode apagar, de certo modo, o valor da identidade étnica. Isso porque muitos desses símbolos não promovem, necessariamente, a força política buscada para o grupo. Nem todo o grupo étnico?- no caso afrobrasileiro?- faz as mesmas escolhas nesses vários campos.

A ocupação dispersiva da população afrobra­sileira torna esse processo bastante complexo. De um modo geral, aquelas dos estados litorâneos, sobretudo os que tiveram portos de desembarque dos africanos que chegavam já como escravos, têm uma presença maior de tradições religiosas de origem africana. Tais tradições são menos presentes no centro-oeste, no norte e no interior do sudeste.

No contexto afrobrasileiro, não creio que possamos generalizar esses mecanismos, dadas as diversidades regionais, grupais, familiares. Vale lembrar Gilberto Freyre sobre o peso da família na sociedade patriarcal colonial brasileira. O que ele diz em relação aos ricos fazendeiros escravagistas se torna válido também para muitas famílias afrobrasileiras. Às vezes, as normas internas de uma família que mantém seus valores culturais por mais de um século se superpõem a alguns mecanismos sociais de controle.

Um exemplo é o mecanismo de branqueamento. Não podemos afirmar que todas as famílias afrobrasileiras aderiram ao branqueamento, por "identificação" à população branca ou por desejo de crescimento social e econômico. No entanto, a pressão social no sentido de afastamento dos traços culturais que assinalam a origem africana é bastante intensa. O convite, e até a ordem para alisar os cabelos para se manter um emprego foi, durante décadas, um imperativo do branqueamento compulsório. Mas nem todos aderimos a ele.

Em A tradição afortunada, Afrânio Coutinho vê de maneira análoga as consequências da dominação colonial sobre a psique no brasileiro. O prestígio português atuava fortemente na mente dos brasileiros, criando um sentimento de inferioridade que os levava a exaltar tudo que era oriundo da Metrópole, reduzindo ou impedindo a valorização do que fosse nacional.

Há muitas formas pelas quais a população branca brasileira faz hiperinvestimentos de sua personalidade étnica. Na imagem do corpo isso se revela, mas também na arquitetura, nos templos dos shoppings...

Seguindo o mesmo modelo, grande parte dos afrobrasileiros constroem uma imagem de si a partir do modo como foram vistos pelos brancos. E é a consciência política da inferiorização, da exclusão, que dará origem ao movimento de reivindicações de equidade, de direitos, de respeito.

Se os brancos do Brasil conhecem a afirmação da identidade igualmente em direção ao mundo, a estrutura social, ao enquadrá-los enquanto iguais, deveria permitir-lhes restabelecer o equilíbrio num espaço e num tempo que lhes garantiriam o pleno florescimento. Todavia, esse espaço e esse tempo, não podendo ser controlados por uma parte do povo, lhes escapam tanto quanto aos afrobrasileiros e aos índios, pois tais dimensões lhes são comuns. Sem conhecer as pressões capazes de levá-los a se sentir responsáveis pelo futuro da sociedade, os brancos talvez desenvolvam uma relação com a nacionalidade bem difícil de ser compreendida, por enquanto...

Deve-se ressaltar que, considerado o caráter dinâmico da identidade, o fato de o "sistema" de organização da personalidade se tornar fechado com o mecanismo de projeção não pressupõe a sedimentação da identidade pessoal. Embora uma tal observação pareça evidente, ela é necessária no caminho de derrubada dessa projeção, como caminho de uma identificação consciente, como propus em meu trabalho aqui citado, em que se engajaram escritores como Mário de Andrade. Ademais, a projeção como tática de adaptação ou de sobrevivência é um processo psicológico mais ou menos conscientemente vivido.

 

PERCURSO Neusa Santos Souza diz que: "ser negro é tornar-se negro". Como a senhora pensa essa afirmação?

LOURDES Ainda não conheci toda a obra de Neusa Santos Souza. Tornar-se negro é uma obra importante na história da nossa identidade étnica enquanto projeto social de construção de "identificações conscientes", concebidas em direção às nossas verdades e ideais próprios. Acredito que, depois de dar esse passo que é reconhecer, aceitar, internalizar de forma positiva a origem africana, o passo seguinte seria de ordem política: investir nas conquistas dos territórios a que temos direitos, das várias profissões que podem nos atrair no mercado de trabalho, de salários justos, de educação de qualidade para todos nós. A luta mais complexa e dura a ser travada: a da segurança para os cidadãos e cidadãs afrobrasileiros. Nunca esgotaríamos nessa entrevista essas terras áridas a serem lavradas. Mas é como Frantz Fanon observou no ensaio de 1952 "Antillais et Africains", em que conclui que o Antilhano teria caminhado de uma ilusória imersão no branco para uma ilusória imersão no negro. Segundo Fanon, a criança antilhana, quando vivencia uma relação acolhedora na fase de constituição de sua identidade corporal, conhecerá a ambiguidade no momento da identificação, e o mecanismo posterior de projeção implicará a negação de si.

 

PERCURSO A senhora coloca o Modernismo como marco maior da identidade brasileira, quando se inicia um discurso próprio sobre o que é a brasilidade. Nesse sentido, a procura de uma identidade se tornaria um projeto, uma busca pela cura. Como isso dialoga com o projeto de branqueamento vigente na sociedade brasileira, que sugere a mestiçagem como um meio para se chegar a um Ideal do Eu branco?

LOURDES Na leitura que faço do Modernismo em Identidade cultural e diversidade étnica?- Negritude africano-antilhana e Modernismo brasileiro, trabalho a questão da identidade conflituosa ao analisar Macunaíma?- o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, e as peças de teatro de Aimé Césaire, A tragédia do Rei Cristovam, Uma tempestade e Uma temporada no Congo. Em todas essas obras ocorre o mecanismo que identifiquei e conceituei como identidade conflituosa, onde se observa que a pessoa quer conscientemente alguma coisa, mas parece que, em algum lugar, não é bem isso o que quer. Ela crê precisar de tantos recursos que observou no Outro, que acaba por não conseguir manter uma atitude lúcida e combativa até o fim. Ciência e Natureza, religião e magia, pompas reais e virulência delirante... e... os Negros e Mestiços nem sempre se dão as mãos... Macunaína, Maanape e Gigué estão lá, esperando serem lidos. Macunaíma, já "branco, de olhos azuis", guarda sua "consciência" para seguir em busca de seu bem mais precioso: seu talismã, que "estaria na casa do gigante". Eles deixam em suas obras o impacto resultante da imposição de um Ideal do Eu. Esse Ideal do Eu parece não levar a lugar nenhum, não funciona.

 

PERCURSO Quais são as marcas na criança negra dos traumas da escravidão, da falta de oportunidades na pós-abolição, e da longa história de marginalização, de exclusão, de diminuição de valor?

LOURDES Não é possível afirmar que todos os descendentes de um grupo étnico que viveu determinada experiência histórica traumática revivam essa experiência. Vários fatores podem nos ajudar a olhar para isso. Muitas famílias, brasileiras ou não, afrobrasileiras ou não, são cheias de "não ditos". Os não ditos podem trazer problemas? Sim, muitas vezes. Não posso dizer que sempre trazem, pelo simples fato de que cada um de nós tem seu próprio funcionamento psíquico e uns desenvolvem, melhor que outros, recursos para lidar com seus problemas.

É possível supor que os indivíduos brasileiros brancos não conheçam traumas de nascimento enquanto grupo étnico? Os tataravós terão vindo de Portugal? Eram presidiários? Eram alcoólatras, assassinos, ladrões? Marinheiros? Pertenciam àqueles grupos que tiveram sua liberdade em vez de cumprir prisão, na condição de aceitarem vir para povoar o Brasil? Pessoas de origem alemã seriam descendentes de nazistas? Isso ainda é motivo de orgulho ou de vergonha? Uma família de judeus que fugiu do nazismo, que passou por muita humilhação, foi traumático? Talvez sim, talvez não. Como essas vivências são transmitidas? Ou fazem parte dos "não ditos" que permitem outras alternativas?

Antes de ser contatada para essa entrevista, estava lendo A história como trauma, de Márcio Seligmann-Silva, um texto muito interessante sobre a Shoah como trauma. Penso que a Shoah, o tráfico de africanos, e a escravidão decorrente, são horrores diferentes. Considero a escravidão dos africanos a mais sórdida e mais violenta experiência da história moderna. Foram três séculos e quarenta e seis anos de sujeição de um povo, mas não posso afirmar nem que haja "trauma da escravidão", nem que esse trauma faça parte da educação de todas as crianças afrobrasileiras ou que tudo isso marca uma criança negra. Posso afirmar que pode haver em muitos grupos afrobrasileiros o trauma da escravidão, que pode marcar uma criança afrobrasileira. Posso afirmar que quanto menos quisermos reconhecer esse passado, tanto mais ele nos acossará, como sombra. Como conclui Claudia Gallo, em seu texto "Recordar ou apagar", na Percurso 58, cabe ao sujeito ressignificar seu próprio percurso através de suas memórias.

Nem todas as crianças afrobrasileiras passam pelo mesmo tipo de consciência racial, de pertencimento histórico, de pertencimento ao povo que foi escravo. Muitas delas vão aprender isso depois, já grandinhas. Essas informações costumam chegar na escola primária, nas comemorações do 13 de maio ou agora, no 20 de novembro. Datas difíceis para elas. Poucas são as professoras e os professores que sabem quão importante será dar a essas datas o caráter restaurador de sua imagem: um pertencimento étnico que dignifique, que estimule a ousadia, a curiosidade, a criatividade voltada para ciência, lazer, esporte, artes (em África e na diáspora).

Em uma escola primária em Brasília, as crianças se sentavam no colo da professora para fazer uma fotografia de fim de ano. Iriam mudar de professora e de sala, era uma foto de lembrança. A garota que viveu essa experiência é quem conta. Quando chega sua vez, a professora diz: "agora vai queimar o filme". Essa menina, hoje estudante de História, ainda se emociona ao narrar o fato. Feminista e ativista, ela oferece um workshop no qual propõe práticas pedagógicas para uma educação não racista. Esse é um exemplo de violência que a criança negra pode sofrer na escola, com impacto em sua identidade e em sua autoestima. Ainda que tenha constituído uma identidade saudável, positiva, em casa e no meio familiar, ao chegar a esse espaço social pode ser violentada muitas vezes. O adolescente e o adulto também.

 

PERCURSO Como a senhora acompanha o atual debate sobre a branquitude e o pacto narcísico que carrega, destacando a importância de se evidenciar e falar sobre as vantagens estruturais de ser branco?

LOURDES As vantagens estruturais da branquitude vêm de longe. Podemos dizer, sem risco de erro, que essas vantagens (previstas em leis) são as cotas para os brancos, depois para os imigrantes. Elas nunca deixaram de existir desde nossa fundação. Terras concedidas, educação obrigatória, universidades exclusivas, áreas do conhecimento reservadas aos brancos. No funcionalismo público, existem certas funções que não dependem de aprovação em concurso público. As vagas não são preenchidas, necessariamente, pelos que se prepararam para o cargo. Embora isto seja excepcional, é uma exceção reservada, tradicionalmente, a pessoas brancas.

A propósito, ouvi do Professor Ronaldo Castro, que conheceu pessoalmente Virgínia Bicudo, que o pai dela foi aprovado em medicina e, quando viram que ele era afrobrasileiro, disseram-lhe que não poderia fazer o curso por sua pertença racial. Ele teria se dedicado então a preparar candidatos brancos para fazerem aquele exame. Quantos universitários afrobrasileiros relatam que um determinado professor lhes disse: "aqui não é lugar pra você"? Infelizmente, alguns acreditam e abandonam... Hoje, posturas racistas começam a ganhar uma resposta mais construtiva. O negro brasileiro começa a dizer não e enfrentar situações adversas com criatividade e firmeza. Afinal, a resistência à escravidão até aqui é um legado a ser honrado com coragem e criatividade, que só pode nos encorajar.

Recentemente uma empresa paulista decidiu promover o acesso de afrobrasileiras e afrobra­sileiros à posição de ceo's em seu time. Ser um diretor/diretora geral ou presidente de uma grande empresa é raro entre os afrobrasileiros. É difícil considerar honestas as reações de pessoas brancas, que viram essa medida da empresa como sendo "racista". Tais reações me parecem mais cínicas, perversas do que realistas. Cento e trinta e dois anos após a Abolição da escravidão, inúmeras posições foram e continuam sendo ocupadas exclusivamente por brancas e brancos. Como alguém pode considerar racismo favorecer os excluídos?

Fui convidada por uma família para ajudar numa situação de racismo contra a filha adolescente em uma escola em Brasília. Três dias após uma experiência traumatizante na sala de aula, a garota manifestou desejo de suicidar-se. Após várias conversas com a mãe e com a filha, produzimos um relato tão rigoroso quanto possível. Solicitamos uma conversa com a direção e com a professora responsável pelo ato racista. A professora reconheceu a precisão da descrição, mas não reconhecia onde estava o racismo em uma brincadeira que ela "costumava fazer, para preencher o horário vago". Era um jogo de adivinhação: duas adolescentes ficavam de costas para o quadro, onde a professora escrevia o nome de uma personagem que correspondia a cada uma delas. Com a ajuda da turma, as jovens deveriam adivinhar a sua personagem. Uma afrobrasileira e uma loira eram as amigas e voluntárias na brincadeira. Atrás da jovem loira a professora escreveu "Barbie" e da jovem afrobrasileira escreveu "King Kong". Alguns estudantes gritaram que havia racismo ali. A jovem afrobrasileira tentou adivinhar, mas "não queria acreditar que a professora tivesse feito aquilo com ela", até não ter mais como não saber; então disse King Kong. Sentou-se em seu lugar. A professora explicou que era apenas uma brincadeira. A jovem não falou mais por três dias. Foi esclarecida sobre o fato de ser esta uma situação de racismo, de racismo ser crime, sobre seus direitos, etc. Eu e sua mãe perguntamos o que ela queria que fizéssemos. A jovem escolheu que eu falasse de racismo com a turma e que a professora pedisse desculpas diante de todos. Assim foi feito com a presença do diretor da escola. King Kong quase sempre contracena com uma frágil e jovem loira, transmitindo a ideia de horror e de perigo mortal.

Por um lado, King Kong e, por outro, as oposições às cotas para afrobrasileiros podem ser tomados como paradigmas dos privilégios da branquitude e dos esforços para sua manutenção. É mais que hora de se implementar cotas para os afrobrasileiros e para as afrobrasileiras em vários campos, inclusive na formação de psicanalistas.

Nesse debate, tem sido importante ver cada vez mais a presença de profissionais, ativistas, pensadores e pensadoras afrobrasileiros trazendo seus olhares sobre questões candentes que nos dizem respeito.

 

PERCURSO Como a senhora pensa os questionamentos feitos à psicanálise em relação ao racismo?

LOURDES Talvez a leitura mais atenta sobre essa questão apareça na entrevista dada pelo Instituto amma Psique e Negritude à Revista Percurso 63. Li com muito interesse o livro que esse importante grupo produziu sobre esse tema[4]. Temos muitos pontos consensuais e algumas visões diferentes quanto à escuta de práticas racistas na clínica.

Em relação ao olhar da psicanálise, enquanto campo teórico, sobre o racismo. A psicanálise é um campo quase que específico de uma classe social que faz parte da branquitude. Somos poucos os afrobrasileiros e afrobrasileiras nesse meio. A formação costuma ser longa e cara. Para que os poucos sobrevivam nesse meio, precisamos estar muito atentos para não nos alienarmos nem nos abandonarmos. Parece difícil para quem nunca experimentou a exclusão, a subalternização, admitir que o analisando fale de racismo. Penso como René Major: "A hospitalidade, tanto para com o que é familiar quanto para o que é estranho, é a razão de ser da psicanálise". Se o analista ou a analista não podem escutar queixas de racismo, provavelmente está precisando de uma reanálise, como recomendava Freud.

E para falar de racismo na teoria seria preciso, no mínimo, saber escutá-lo. Mas é bastante possível psicanalistas brancas e brancos falarem de racismo, sem que tenham consciência das próprias atitudes racistas ou, então, fazerem tábula rasa delas.

A fundadora de nossa Sociedade advertia: "O fator isolamento [do psicanalista] como defesa também é anacrônico e restritivo no sentido de não contar com as vantagens de um trabalho em concerto interdisciplinar. Freud pensou psicanaliticamente sobre assuntos referentes à Biologia, Arte, Religião, Antropologia, Sociologia. Desta abertura mental, os psicanalistas foram retirando-se cada vez mais, com uma atitude restritiva com repercussões até na seleção de candidatos, limitando-a quase que exclusivamente aos médicos. Quanto aos prejuízos desse isolamento de casta, nos defrontamos com um acervo de conhecimentos desprovidos de uma sistemática metodológica e com a perda de colaboração de elementos capazes de valiosas contribuições"[5].

Algumas atividades da spbsb costumam dar oportunidade para se falar de relações raciais ou de racismo, a partir, por exemplo, de filmes que discutimos publicamente.

A pandemia da covid-19, em 2020, me trouxe algo novo: o desafio do atendimento on-line a vários analisantes afrobrasileiros, encaminhados pela Rede Solidária da spbsb.

 

PERCURSO A senhora foi muito ativa em todo o debate que antecedeu a Constituição de 88, inclusive na elaboração de muitas propostas, especialmente no campo da Educação. Como avalia esse processo e seus desdobramentos nesses 30/40 anos?

LOURDES Creio que minha participação na luta contra o racismo tem sido intensa, absolutamente dedicada, consciente e um tanto ineficaz, porque carregada de uma certa impaciência e exigência. Penso que, como ativista, errei por não ficar junto desses que erram, para errar junto e tentar contribuir de uma forma criativa. Tenho consciência da existência do racismo há muito tempo, ainda antes de 1978, antes do assassinato do Robson Luis, em São Paulo... Era uma questão que me preocupava desde muito cedo. Sinto que o momento mais forte na história do movimento negro recente, chamando de recente esses 30/40 anos, é anterior a esse lado atual tão oficial, tão junto do poder.

Estamos sendo objeto de um genocídio. Quando escrevi a primeira versão do ensaio "A intensidade do branco no espectro cromático", percebi que o país de que eu iria falar em minha tese estava esquisito, não parecia nos incluir. Ainda não tinha essa leitura do Brasil. Eu tinha ilusões sobre o Brasil. Não que eu acreditasse em democracia racial, mas achava que, como afrobrasileiros, pertencíamos mais do que de fato pertencíamos. Compartilhei a primeira versão desse texto com colegas, alguns do Coletivo pró-PT e outros de universidades norte-americanas. Eles reagiram, dizendo: "Não, Lourdes, vamos deixar isso para lá, isso não é uma questão. A questão é socioeconômica". Muitos ainda pensam assim. Isto é o que Lélia Gonzalez chamou de denegação do racismo. O racismo não tem a ver com economia, ele é um projeto de extermínio. No conceito de civilização brasileira e na lei Afonso Arinos contra o racismo, verificamos uma origem da extrema ambiguidade revelada no paradoxo do racismo brasileiro: pessoas racistas podem expressar publicamente ideias humanistas, de necessidade de promover a igualdade. Acho que a questão do racismo precisa ser conduzida de outra forma. Precisa ser pensada por todos nós. Se nossa presença é traumática para o modelo ideal de sociedade que se queria branca, precisamos elaborar nossos traumas para superar o racismo.

 

PERCURSO A senhora fala da implicação pessoal com a conflitiva escravidão/liberdade como fator importante no processo de transformações mais amplas, inclusive na responsabilização do Estado e da sociedade pelos crimes contra a população negra. Quais ações favorecem esse processo de implicação pessoal e plena liberdade?

LOURDES Sim, essa me parece uma questão importante. Esse escravo dentro de cada um é uma das coisas mais frequentes que podemos ver, inclusive nas situações de racismo. Dificilmente a prática racista vai ter sucesso se nós não contribuirmos com ela. Não me excluo nessa avaliação. Nem sempre é possível contestar, denunciar. E aqui o pacto narcísico branco fala alto. Mas temos que nos tornar mais capazes de denunciar e combater o racismo.

Claro que existem situações de força física, as violências policiais. Aí, já não é a mesma situação. Diante de um ladrão é melhor ceder, para sobreviver. O mais importante é nos perguntarmos, sistematicamente, em cada situação de racismo vivida: qual foi minha parte nessa violência contra mim? Talvez, só nas situações de violência policial, nada tenhamos feito para ajudá-los. Face a atitudes racistas, é fundamental que as afrobrasileiras não abram mão de seu desejo. Resistam como uma quilombola, mas inovem: rompam os limites do quilombo, se incluam, se apropriem de todas as nossas paisagens.

 

PERCURSO A senhora tem interesse pelo trabalho de terapia comunitária...

LOURDES Sim, muito. A Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa foi criada pelo psiquiatra cearense Adalberto Barreto. Fiz a formação com ele em Fortaleza. Ele também foi aluno do Georges Devereux. A terapia comunitária está voltada para o sofrimento humano e não para patologias específicas. Está aberta a todas as classes sociais.

A tcsi tem os seguintes princípios: quando a boca cala, o corpo fala; quando a boca fala o corpo sara; se o grupo tem problemas, o grupo tem soluções; há uma relação de horizontalidade entre os participantes que só podem falar em nome próprio e de si próprios. Ninguém resolve o problema de ninguém. Mas cada pessoa é fortalecida, no sentido de buscar a solução do próprio problema. A metodologia e as técnicas de como conduzir essa roda são muito bem definidas.

 

PERCURSO Nas situações de catástrofes, incluindo as históricas, há psicanalistas que defendem que os processos individuais são insuficientes para tratar das questões traumáticas e seus impactos. A terapia comunitária seria um dispositivo terapêutico e restaurativo dos efeitos do racismo brasileiro?

LOURDES Não tenho dúvidas de que a terapia comunitária pode ser muito benéfica para a abordagem do racismo e para fazer o trabalho terapêutico restaurativo das relações raciais. O cuidado será no sentido de fazer rodas temáticas, de modo que os envolvidos, terapeutas e público, falem do tema proposto. Por exemplo, a ocorrência de racismo em ambientes de trabalho que provoca desgastes físicos e emocionais. Na pandemia isso se agudizou. O professor Adalberto Barreto e sua equipe, toda segunda e sexta-feira, mantêm duas rodas, desde o início da pandemia. Essas rodas acontecem em muitos Estados e no df, e têm sido muito importantes. Assim como seriam em qualquer situação de catástrofe.

Claro que muitas pessoas precisam de um atendimento individualizado. Mas também podem se beneficiar da roda de tcsi. Como tudo é tão frágil e tão relativo, o bem-estar, o mal-estar... uma coisa muito pequena pode causar um sofrimento profundo. Desconstruir impressões, repensar sua parte naquilo de que te queixas, tudo isso pode ocorrer de forma amorosa e em um ambiente acolhedor do sofrimento e de trocas.

 

PERCURSO Lélia Gonzalez analisou que o caráter central da neurose brasileira é o racismo, a negação da diversidade racial e de nossa amefricanidade. É possível mudar estruturalmente uma sociedade racista?

LOURDES Lélia Gonzalez trouxe muitas contribuições importantes em suas intervenções e textos sobre o racismo. Nos conhecemos durante o curso de Conscientização da Cultura Afro-brasileira, na puc-São Paulo.

Acredito na possibilidade de mudança. Mudanças pensadas, organizadas, bem conduzidas. No caso do racismo no Brasil, talvez seja melhor não pensar tanto na sua "estrutura", mas no racismo estilo "pão nosso de cada dia", livrai-nos hoje... Como agir em uma situação de racismo na escola, no comércio, no parque, no trabalho, na rua. Questionar certezas sobre supostos racistas. Buscar parcerias, apoios, compartilhar experiências sempre se mostrou um bom caminho.

Creio que se deve enfatizar a busca de diálogo com os órgãos responsáveis pela segurança pública, buscar esclarecimentos e produzir conhecimento nesse campo. Começar de baixo para cima, trabalhando grupos de pessoas que aprendam a não contribuir com os racistas.

 

PERCURSO Quais ferramentas a psicanálise e a arte poderiam oferecer para o enfrentamento e a elaboração do racismo em dimensões pessoais e coletivas?

LOURDES Creio que Freud nos deu indicações preciosas nesse sentido quando fala da importância do conhecimento da cultura, da arte e da literatura, para escutar o analisante. Conhecer a cultura brasileira inclui conhecer o racismo brasileiro, as religiões brasileiras.

Há pelo menos dois meios para conhecer o racismo brasileiro: a teoria dos intelectuais afrobrasileiros e a teoria dos intelectuais brancos. Uma outra possibilidade é buscar conhecer exemplos de situações de racismo, para conseguir escutá-las na clínica.

Se muitas das lideranças do movimento negro pudessem fazer análise pessoal... essa luta, por certo, daria um salto quântico. Imagine que viessem todos fazer análise porque querem liderar esse movimento. Querem liderar uma mudança. Já imaginou? Seria outra história. Individualmente, começa por aí. Claro que é desejável que todas as pessoas que desejem fazer análise possam fazê-lo.

A psicanálise tem também a experiência de Wilfred Bion em trabalho com grupos, por exemplo, que pode ser bastante eficaz para se trabalhar as relações raciais.

A arte pode fazer muitíssimo no campo social, pois tem capacidade de provocar interrogações, emoções, apaziguamentos. Em uma entrevista ao Jornal do Romário?- brasiliários.com, falo de uma performance em Salvador que me tocou muito. Foi de uma artista negra, em uma livraria com um jardim circular na saída. As pessoas vão saindo e a artista está dentro de um saco de lixo preto, só se enxerga o saco de lixo, parado. Então ela começa a se movimentar. De repente, com os movimentos, você começa a sentir alguém se asfixiando dentro do saco. É uma performance muito impressionante. Dá ideia da exclusão, da compressão, da redução do ser humano. Na verdade, só tem um tom negro ali, uma cor em movimento, não há uma pessoa. É uma criatura asfixiando-se dentro de um saco de lixo. Foi uma das expressões mais fortes do não ser. As pessoas iam saindo, conversando e de repente paralisavam em volta da performance para assistir até o fim. Isso é arte, que é o que te convoca, te põe em estado de perda, que mexe com você. Foi uma maneira de falar de alguma coisa que nos diz a todos nós, particularmente a nós, afrobrasileiros, mas a que pessoas brancas também não ficaram indiferentes. Essa arte pode ter vários sentidos, pode ser um esforço desesperado, um desejo de libertação, de ter espaço, de ter voz. Tudo está ali, dentro daquela impossibilidade de vida, através da qual expressa a asfixia provocada pelo racismo naquele saco de lixo enorme. Pode expressar também que a redução ao ser negro é nadificante. Retira pertencimentos, sobretudo o pertencimento ao seu país. A jovem da performance é uma artista afrobrasileira, das melhores!

Penso que o que não favorece o combate ao racismo é ficar oferecendo, eternamente, o discurso racista do branco na bandeja do artista negro. Para condenar o racismo ou denunciá-lo, muitos ativistas têm repetido, sistematicamente, o que vem secularmente sendo dito, contra ou sobre nós, pela branquitude. O resultado, portanto, é um "tiro no pé", que podemos evitar. A arte é para provocar nossa criatividade. É uma proposta de diálogo. Por isso é tão necessária e vital.

Quando pensamos em como mudar o racismo estrutural no Brasil, vale registrar uma contribuição ímpar, que podemos apreciar no documentário "Afronta?- Descolonize o pensamento", com direção e roteiro de Juliana Vicente. É uma obra-prima no campo do documentário. Esses jovens deram um basta na identificação com o agressor. Eles reconhecem a importância da ancestralidade africana, fazem o reconhecimento da escravidão como tempo a ser olhado, incorporado, elaborado, superado. Observam, no cotidiano, o privilégio branco que permanece e não abrem mão de seu desejo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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