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Resumo
O projeto Santinho foi criado com o objetivo de promover, por meio da escuta psicanalítica, um dispositivo de ritualização da despedida dos mortos pela COVID-19. O projeto está orientado por três diretrizes: a perspectiva do luto como um trabalho clínico, partindo da tradição psicanalítica freudiana do trabalho do sonho como protótipo do trabalho psíquico e formação do símbolo; o luto como um trabalho que é também político, em função do caráter indissociável entre sua dimensão psíquica e coletiva; e, por fim, o luto como um trabalho estético, na medida em que são também indissociáveis a experiência estética e a formação simbólica.


Palavras-chave
trabalho de luto; trabalho político; trabalho estético.


Autor(es)
Marilia? Velano
é psicanalista, coordenadora do projeto Santinho, professora do Departamento de Psicanálise com Criança do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda do ipusp.

Sonia Curvo de Azambuja


Notas
1. P. Ariès, O homem diante da morte.
2. L. Goldberg, Atitudes perante a morte nos websites de redes sociais: um estudo sobre o luto.
3. S. Freud, A interpretação dos sonhos, p. 597.
4. S. Freud, Luto e melancolia, p. 47.
5. S. Freud, op. cit.
6. P. Fédida, L'absence.
7. M. Milner, A loucura suprimida do homem são.
8. M. Milner, op. cit., p. 228.
9. O projeto dos Totens Urbanos foi desenvolvido pelo arquiteto e urbanista Leonardo Dias e concebido pelos historiadores Danilo Cesar e Elisiana Trilha Castro junto à psicóloga/psicanalista e paliativista Bruna Tabak. Os três, atualmente, são coordenadores gerais da Rede Nacional de Apoio às Famílias e Amigos de Vítimas da COVID-19 no Brasil (www.redeapoiocovid.com.br). Trata-se de um espaço de expressão para as famílias e seus rituais diante da perda, sendo também um equipamento de higiene disponível aos diferentes usuários dos centros urbanos como política pública de saúde.
10. Inventário coletivo www.santinho.org


Referências bibliográficas

Ariès P. (2013). O homem diante da morte. São Paulo: Editora da unesp.

Fédida P. (1978). L'absence. Paris: puf.

Freud S. (1900). A interpretação dos sonhos. Trad. P. C. d. Souza. Vol. 4. São Paulo: Freud, Sigmund, Obras Completas, 1856-1939.

____. (1917). Luto e melancolia. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago.

Goldberg L. Atitudes perante a morte nos websites de redes sociais: um estudo sobre o luto. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=17&Itemid=160&id=C7A7E41CBEFC&lang=pt-br>.

Milner M. (1987). A loucura suprimida do homem são. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
The Santinho project was created with the aim of promoting, through psychoanalytic listening, a device for ritualizing the farewell of the dead by COVID-19. The project is guided by three guidelines: the perspective of mourning as a clinical work, starting from the Freudian psychoanalytic tradition of dream work as a prototype of psychic work and symbol formation; mourning as a work that is also political, due to the inseparable character between its psychic and collective dimension; and, finally, mourning as an aesthetic work, to the extent that aesthetic experience and symbolic formation are also inseparable.


Keywords
Keywords?mourning work, political work, aesthetic work.

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 TEXTO

O projeto Santinho: o ritual fúnebre no centro dos interesses clínicos, políticos e estéticos da psicanálise

http://revistapercurso.com.br/imagens_artigos/Imagem2_65


The Santinho project: the funeral ritual in the center of the clinical, political and aesthetic concerns of psychoanalysis
Marilia? Velano
Sonia Curvo de Azambuja

O projeto Santinho foi criado com o objetivo de promover, por meio da escuta psicanalítica, um dispositivo de ritualização da despedida dos mortos pela covid-19. Colocando a psicanálise à altura dos problemas do seu tempo, o projeto realiza a escuta dos familiares e amigos enlutados e propõe a confecção de um santinho virtual a partir da eleição de uma imagem e da escrita de um texto que, ao mesmo tempo, representa e homenageia o morto.

A ritualização da morte é um processo indispensável para o trabalho de luto. Com o advento da pandemia da covid-19 que assola neste momento o Brasil, os rituais de despedida foram profundamente alterados por razões sanitárias. O velório passou a ser breve e pode contar com presença de poucas pessoas. Os deslocamentos entre as cidades ficaram inviáveis, enquanto o número de mortos, até o presente momento, passa de 125 mil pessoas.

O projeto está orientado por três diretrizes: a perspectiva do luto como um trabalho clínico, partindo da tradição psicanalítica freudiana do trabalho do sonho como protótipo do trabalho psíquico e formação do símbolo; o luto como um trabalho que é também político, em função do caráter indissociável entre sua dimensão psíquica e coletiva; e, por fim, o luto como um trabalho estético, na medida em que são também indissociáveis a experiência estética e a formação simbólica.

 

Ter onde cair morto:
o luto como um trabalho político

A relação indissociável entre o trabalho de luto e a sua dimensão coletiva e social foi um dos elementos estruturais básicos encontrados por Phillipe Ariès[1] frente às diferentes atitudes do homem diante da morte no Ocidente. Segundo Ariès, até 1914, a morte de um homem modificava de forma contundente um grupo social, podendo se estender pela comunidade inteira. As pessoas morriam em público, e a morte constituía um acontecimento que demandava, frente ao desaparecimento do indivíduo, um cuidado coletivo.

A lembrança e a veneração dos mortos ganharam nova força diante da criação dos cemitérios no séc. xix, quando os túmulos passaram a ser verdadeiros monumentos, e os monumentos passaram a funcionar muitas vezes como túmulo. Ariès chama a atenção para o fato de que o culto dos cemitérios e dos túmulos é correspondente a uma nova sensibilidade que surge no final do séc. xviii, quando a morte do outro passa a ser insuportável. Ressalta ainda que o caixão, que era coletivo e utilizado apenas como instrumento de transporte, passa a ser objeto de desejo até mesmo para aqueles sujeitos que durante a vida nada possuíram. Ter onde cair morto, isto é, ter a posse da morte, passa a ser o grande trunfo para uma população extremamente miserável como um modo de restituição da dignidade.

No início do séc. xx, sobretudo a partir de 1914, a atitude do homem diante da morte mudou de maneira radical em um tempo considerado breve para os historiadores. O período denominado por Ariès como o da "Morte invertida" é caracterizado pela afirmação contrária de todas as atitudes tradicionalmente precedentes em relação aos cultos de morte, uma vez que, nas cidades, tudo passou a conduzir a uma falsa sensação, como se ninguém mais morresse.

A ocultação da morte, que assume lugares cada vez mais privados e discretos na cidade, é coincidente com os avanços dos processos de medicalização, que terminaram por constituir o hospital como o lugar privilegiado onde a morte acontece, expropriando de maneira decisiva o homem e, em grande medida, a comunidade, da experiência de morrer. Ariès destaca ainda como a morte passa a ser ocultada pela doença ao mesmo tempo que é concebida como algo sujo e inconveniente, promovendo uma assepsia generalizada em torno do assunto.

A partir do momento em que as mortes passaram a acontecer no hospital e os funerais se tornaram cada vez mais discretos, a experiência da morte perdeu o seu caráter público e passou a ser um ato privado, restrito à família e aos conhecidos. O luto e os ostensivos rituais, que eram os últimos vínculos do morto com a sociedade, foram progressivamente suprimidos da tradição ocidental urbana. O pesar passa então a ser referido a uma natureza cada vez mais íntima e pessoal. Convém indicar que o momento é coincidente com o ensaio Luto e Melancolia, no qual o pesar assume um caráter absolutamente subjetivo, pessoal e intrapsíquico.

Como efeito dessa forma intrapsíquica e não mais coletiva de ritualização da morte, o culto ao túmulo passou a ser o culto à lembrança, materializada também fora do cemitério, na configuração da casa e dos objetos do morto como relíquias. A "indecência do luto" é a perspectiva adotada na história contemporânea da morte que retira a dor da cena pública e responsabiliza o enlutado integralmente por ela.

O fenômeno da pandemia trouxe à tona essa dimensão propriamente política do trabalho de luto, que diz respeito ao modo de como o poder, a cultura e o saber se apropriam desta experiência. No caso do Brasil, um país que gera índices de morte como um estado de guerra, o fenômeno da morte em massa expôs uma tradição do país de rituais fúnebres inacabados, de extermínio da população periférica e de negacionismo institucionalizado como política pública. "Não ter onde cair morto", uma expressão popular corriqueira, ganhou força de realidade.

O projeto Santinho, atendendo às necessidades dos familiares dos mortos pela covid-19 que não puderam fazer a ritualização da despedida por razões sanitárias, é um dispositivo que busca dar representação, história e memória aos mortos para que em uma dimensão coletiva essa experiência disruptiva possa também se inscrever na materialidade e na temporalidade da história. Entendemos que se trata de uma proposição que é, além de clínica, política e estética.

O Santinho é a proposição de um inventário coletivo virtual composto pelas narrativas que se constroem durante a escuta analítica e pela escolha da imagem de um objeto que represente o morto. Goldberg[2] identifica como a morte passou a ocupar os espaços virtuais a partir da criação de memoriais, obituários e até mesmo cemitérios virtuais. O autor retoma este fenômeno contemporâneo da virtualidade das experiências em uma perspectiva filosófica do virtual, que diz respeito ao atual, à potência, o que pode vir a ser uma contraposição ao senso comum, em que ele é tomado como irreal, ilusório ou falso. Um lugar onde o sujeito possa vir a ser, ainda que morto.

 

Do sonho à relíquia: a construção de um setting virtual para o trabalho de luto

Ao lado do sonho, o luto foi considerado, antes de tudo, um trabalho psíquico. As similaridades com o sonho, no entanto, não param por aí. A teoria do sonho corresponde a uma matriz do pensamento psicanalítico de onde emerge o modelo do aparelho psíquico freudiano, sua metapsicologia e as razões que orientam a sua técnica: transferência, associação livre e interpretação. Constitui, desta maneira, o modelo tanto do funcionamento psíquico como da atuação clínica, guardando o benefício de ser o exemplo que provém de um fenômeno da normalidade. Vindo dos estudos sobre as formações psicopatológicas?- histeria, fobia, ideia obsessiva?-, Freud pretende demonstrar como a inteligibilidade do sonho é correspondente àquela do sintoma e passa a aplicar-lhe o mesmo procedimento de investigação, consolidando uma estrutura homóloga entre as formações do inconsciente.

O trabalho do sonho é a transformação da matéria psíquica, pelo deslocamento das intensidades, pela reprodução predominante de traços mnésicos visuais e acústicos. Freud lança mão, ainda, de dois mecanismos importantes deste trabalho, que são a consideração pela figurabilidade ou representatividade e a condensação como operações lógicas formais, que se assemelham às relações de linguagem para tratar das imagens sensoriais portadoras de sentido inconsciente.

Freud está se referindo, neste primeiro momento, a um aparelho psíquico que funcionaria, sobretudo, como um aparelho de memória no qual o tempo é, talvez, o ordenador mais importante desse sistema. A colocação dos eventos em uma cadeia temporal é o modo privilegiado de lidar com o trauma e integrar as experiências psíquicas de grande intensidade. As relações entre o sonho e a temporalidade aparecem em diferentes níveis de preocupação na teoria freudiana. Em sentido amplo, quando ele afirma a inteligibilidade do sonho em sua referência ao passado, confrontando a cultura popular que tomava o sonho como uma previsão do futuro. O sonho, este "enigma pictórico", cumpre a função de realização alucinatória de um desejo infantil. Em sentido restrito, ao estabelecer as relações lógicas e de causalidade entre as imagens oníricas e o sentido do sonho, o dado temporal novamente cumpre sua função organizadora. Na gramática onírica freudiana, as relações lógicas entre as imagens se dão por simultaneidade, enquanto as relações causais se estabeleceriam por sucessão.

No trabalho do sonho, de um lado temos o sistema inconsciente marcado pela atemporalidade e, de outro, como polo oposto, o sistema perceptivo, ligado à consciência e ao pré-consciente, que reanima o resíduo diurno e outras marcas sensoriais para a confecção do sonho. A articulação entre essas instâncias é o que promove o efeito temporal do sonho que é experimentado com a atualidade sensorial do agora, sob efeito da alucinação.

Para Freud, a transformação de pensamento em imagens visuais é, em parte, consequência de uma atração que a lembrança representada visualmente, em busca de ser reavivada, exerce sobre o pensamento excluído da consciência que busca se expressar[3]. Nesse modelo proposto, a formação do sonho é derivada da sucessão das imagens sensoriais como uma conversão de moedas estrangeiras para a passagem da fronteira do inconsciente ao pré-consciente, até chegar à consciência.

O luto, por sua vez, é o trabalho psíquico que, assim como o sonho, provém de um fenômeno da normalidade e foi utilizado como o protótipo normal da melancolia. A similaridade sintomatológica entre o luto e a melancolia é o que autoriza a aproximação: "o luto profundo, estado de ânimo doloroso, a perda de interesse pelo mundo externo?- na medida em que este não faz lembrar o morto?-, a perda da capacidade de escolher um novo objeto de amor?- e o afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver relação com a memória do morto"[4].

Privilegiando o ponto de vista econômico, Freud descreve o trabalho de luto como a retirada do investimento libidinal do objeto que se perdeu em uma empreitada que será cumprida com grande dispêndio de tempo e energia, prolongando a existência psíquica do objeto por meio da intensificação das lembranças e expectativas, até que sejam desinvestidas. A razão desta dor extraordinária, no entanto, Freud[5] afirma que não fica facilmente indicada em uma fundamentação econômica.

Ainda valendo-nos da comparação com o trabalho do sonho, que incide sobre a matéria psíquica, o trabalho de luto é a transformação que incide sobre a realidade psíquica frente ao desaparecimento de um objeto de amor. Esta noção introduz, do ponto de vista do desenvolvimento teórico da psicanálise, uma importante consideração sobre as relações de objeto que vai consolidar a pesquisa, já iniciada em 1912 com a Introdução ao Narcisismo, sobre o papel das identificações e a gênese do Eu. A perspectiva dinâmica do conflito, enfaticamente considerada na proposição do trabalho do sonho, perde espaço para uma teoria que vai pairar sobre o objeto, o objeto perdido.

O trabalho de luto reaproxima-se do trabalho do sonho como modalidade de produção simbólica que é responsável pelo efeito de temporalização da experiência psíquica. O desligamento do objeto perdido é realizado com o deslocamento para objetos substitutos representantes, que apoiam sua força significante na materialidade, na ritualização sancionada pela cultura. Essas relíquias, para usar o termo de Fédida[6], fazem sentido frente ao desejo de conservar alguma coisa daquilo que se perdeu, sem ter que renunciar, ao mesmo tempo, à separação evidenciada pela realidade. Para Fedida, o objeto-relíquia, como um objeto sagrado, assume o valor do fragmento de um corpo desaparecido, a partir do qual se extrai uma lembrança, realizando o compromisso ilusório do qual o homem se serve para se defender da angústia da morte. Se o sonho é a produção que veicula o sentido inconsciente de uma instância à outra, a relíquia é o objeto pelo qual se produz a passagem de uma significação à outra.

Fédida chama a atenção para uma dupla função da relíquia que dá visibilidade ao morto ao mesmo tempo que esconde a imagem de um cadáver em putrefação, como um objeto que testemunha um tipo de limite necessário para a representação da morte. Desta maneira, a relíquia permite um acesso protegido à realidade, sacralizando o fragmento do morto e permitindo seu esquecimento.

A escuta analítica dos enlutados pela ­covid-19 guarda a singularidade de se tratar de despedidas que não puderam contar com o ritual fúnebre, como tradicionalmente costumamos realizar. O contato com os familiares acontece por meio dos dispositivos virtuais (mensagem ou ligação com câmera), e o acolhimento pode ser realizado em um ou vários encontros, de acordo com a necessidade do enlutado. Trata-se de processos muito particulares que necessitam do tempo da criação do símbolo e, para isso, é preciso estar disposto a se separar. De um modo geral, percebemos que, quando a solicitação surge muito próxima ao falecimento da vítima, esse processo assume a forma de uma descarga (muitas vezes a família já chega com a imagem e o texto prontos) que pode ser também a forma incipiente de um trabalho de elaboração.

Além dos santinhos, oferecemos também a possibilidade de realizar uma despedida por meio de uma plataforma virtual. Descobrimos que se trata de uma modalidade de cuidado na qual não tanto a escuta, mas a sustentação do analista é fundamental. Trabalhamos no sentido de fornecer um setting virtual para este encontro, ajudando a organizar questões práticas que vão desde uma assistência tecnológica à elaboração de um roteiro para a despedida dentro do repertório cultural de cada família. Quando entendemos que o processo demanda um cuidado continuado, acionamos a Rede de Apoio covid-19 - acolhimento, escuta e memória da pandemia, da qual fazemos parte, para o encaminhamento.

Do Santinho aos Totens Urbanos:
o luto como um trabalho estético

A tradução do conflito psíquico em imagens sensoriais realizado pelo trabalho do sonho é uma experiência, para além das questões terapêuticas, sobretudo estética. Com o trabalho de luto como trabalho psíquico não seria diferente, seja pela tradução em texto da escuta psicanalítica, seja pelo encontro-descoberta da imagem relíquia.

A premissa freudiana clássica parte da ideia de que o processo de criação visaria a preservar a experiência a partir da recriação de um objeto que está perdido. O encontro com o objeto, para Freud, é sempre um reencontro. Para Milner[7], no entanto, existe uma dificuldade em dar uma forma exterior ao objeto que coloca em risco sua representação na vida reflexiva. Do ponto de vista da autora, a busca pela representação do objeto perdido é secundária em referência ao papel primário da criação. Neste sentido, mais do que representar o objeto perdido, a obra de arte para o artista é algo essencialmente novo que ele criou, ao atribuir uma forma estética, significativa e real. Em resumo, para Milner "o grande inovador na arte não é recriar no sentido de fazer de novo aquilo que foi perdido (ainda que ela o faça), mas fundamentalmente criar aquilo que é, porque ela está criando a força para perceber aquilo que é"[8]. A intervenção da criação na realidade é designada pela autora como meio maleável, ou seja, o meio a partir do qual é possível intervir na materialidade imprimindo algo do mundo interno, dando forma ao mundo externo. Partimos da hipótese de que essa ideia expande-se também para os rituais fúnebres como formas de impressão da subjetividade na materialidade e modalidade de criação que reposicionam o sujeito frente ao luto, assumindo um papel terapêutico fundamental.

A função estética é necessária para a criação simbólica como medida restauradora e promotora da elaboração do luto. O ritual fúnebre, como todo ritual, apresenta uma estética própria que se modificou ao longo da história da morte no ocidente. A arte cemiterial, a arquitetura, os cantos e as epígrafes ganharam uma nova forma durante a pandemia. Dos santinhos e obituários virtuais, passamos também a pensar em outras formas de representação por meio da arte.

Pensando no caráter indissociável entre a saúde e a cultura, o projeto designado "Totens Urbanos: Memorial Pró-saúde"[9] está pautado pelo respeito ao passado e preservação da memória, por uma intervenção no cotidiano presente da cidade e pela conscientização acerca do futuro e do mundo pós-pandêmico. O projeto Santinho, em parceria com o projeto Totens Urbanos, disponibilizou as imagens dos objetos do inventário coletivo do nosso site, cedidas pelas famílias, para compor alguns desses totens.

Do intrapsíquico da elaboração de uma perda para a cena pública, os "santinhos" serão traduzidos em totens como uma intervenção nos centros urbanos. Testemunho, memória e saúde coletiva mostram a força da escuta psicanalítica à altura do seu tempo.

 

Julia Ferreira Neta da Silva[10]

Minha mãe costurava. Nasceu em Floresta, no sertão de Pernambuco. Teve duas filhas, marido, sobrinhos e uma cachorrinha. Estou grávida do seu primeiro neto ao mesmo tempo que me despeço dela. Espero que a sua morte, esta agulha traiçoeira, não nos separe, mas recomponha o tecido retalhado da vida numa nova mantinha para embalar o meu bebê. Ninguém morre enquanto permanecer vivo no coração de alguém.

 

 

 

(acima)
Nasceu em 22/11/1957,
morreu em 25/04/2020.

 

 

 

 

 

(ao lado)

Totem de Aldir Blanc, depoimento realizado
por sua filha, através do Projeto Santinho.
(Foto: arquivo pessoal)

 

 

Uma vez perguntei: “Me diz o que eu faço para passar um pouco deste sufoco e desta angústia?” E ele, com a voz calma, grave e mansa, de quem entende e cuida, responde: “Leia, filha, leia desesperadamente”. Desde então, é o que tenho feito. Às vezes ajuda um pouco, às vezes ajuda demais. Como neste tempo de luto, com o peso da sensação da falta que ele faz.

Depoimento de Patrícia de Sá Freire Ferreira via Projeto Santinho. Ela perdeu seu pai, vítima da covid-19, Aldir Blanc, compositor e escritor, 73 anos, no dia 04/05/2020. Aldir nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Deixa 4 filhas, 5 netos e 1 bisneto.

 


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