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ÍNDICE TEMÁTICO 
65
Como habitamos esse comum?
ano XXXII - Dezembro de 2020
158 páginas
capa: Nuno Ramos
  
 

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Resumo
As rodas de conversa do coletivo Escuta Sedes se constituíram e efetivaram como resistência à política de privatização e individualização dos sofrimentos induzidos pela violência sociopolítica do Estado, agravada no período pré-eleitoral de 2018. A construção do espaço clínico grupal roda de conversa promoveu a elaboração daqueles sofrimentos por meio da intervenção psicanalítica apoiada na política do desamparo.


Palavras-chave
resistência; roda de conversa; sofrimento induzido por violência sociopolítica; política do desamparo.


Autor(es)
Luciana Chaui- Berlinck
é psicanalista, pós-doutoranda em Psicologia Clínica pelo ip-usp, doutora em Psicologia pelo ip-usp e mestre em Filosofia pela fflch-usp. Membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, membro do coletivo Escuta Sedes. Autora de diversos livros e artigos.

Luciana Goulart  Mannrich
é psicanalista, membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do coletivo Escuta Sedes.

Maria de Fátima Vicente
é psicanalista, mestre em Psicologia pela unimarcos-sp, doutora em Ciências Sociais pela puc-sp, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise desse mesmo departamento desde 1993. Participante do coletivo Escuta Sedes. Autora de Psicanálise e Música: aproximações (Coleção Clínica Psicanalítica, Casa do Psicólogo), e de artigos em publicações diversas.

Nayra C. P. Ganhito
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Coletivo Escuta Sedes, autora do livro Distúrbios do sono (Casa do Psicólogo) e de vários artigos e capítulos de livros, professora convidada do Curso de Psicanálise do referido Departamento no ano letivo de 2021.


Silvia Lopes de  Menezes
é psicanalista, membro aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do coletivo Escuta Sedes, coordenadora do projeto Instalações Clínicas do Núcleo Acesso neste mesmo Instituto e participante do Fala Sedes.



Notas

1.J. Butler, Corpos em aliança e a política das ruas?- Notas para uma teoria performativa de assembleia.

2.A função da retaguarda incluía direcionar à sala os que chegavam, receber retardatários e dar encaminhamento a intercorrências que irrompessem nas rodas em andamento e não coubessem nela, por exemplo, alguém que necessitasse de atenção individual emergencial, o que não ocorreu, ou acompanhar as crianças de participantes, durante a roda, o que nos surpreendeu e foi acolhido. Poderia também vir a coordenar uma roda simultânea à prevista, em caso de muitos participantes.

3.O Escuta Sedes é hoje composto por: Ana Lucia G. Bastos, Carmen A. da C. Carvalho, Débora Andrade, Dedé Ribeiro, Fernando Amaral, Lindilene T. Shimabukuro, Lucia Helena Navarro, Marcia de M. Franco, Maria Rita Gordin, Maria Silvia Borghese, Silvia N. de Carvalho, Simone Pugin e as autoras deste artigo.

4.Realizamos duas Rodas Mediadas por filmes nacionais no segundo semestre de 2019, uma delas em parceria com o projeto Laborar, do I. Sedes Sapientiae. As Rodas Mediadas são uma modalidade das Rodas Ampliadas, inspiradas na experiência com Daniel Cara que conosco realizou, em 2018, uma roda de conversa sobre o projeto Escola sem Partido.

5.V. Safatle, O circuito dos afetos.

6.V. Safatle, op. cit.

7.Seja o da ação específica, seja em relação à posição do analista no tratamento.

8.D. Kupermann, Ousar rir?- Humor, criação e psicanálise.



Referências bibliográficas

Arendt H. (2002). A condição humana. São Paulo: Forense Universitária.

Butler J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas?- Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Freud S. (1996). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. In Obras completas, vol. xviii. Rio de Janeiro: Imago.

Kupermann D. (2003). Ousar rir?- Humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Safatle V. (2018). O circuito dos afetos?- Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. rev. Belo Horizonte: Autêntica.





Abstract
The conversation circles of Escuta Sedes collective were set up and made effective as an act of resistance against the policy of privatization and individualization of the sufferings induced by the State’s socio-political violence, intensified in the pre-electoral period of 2018. Fostering an environment for the conversation circles clinical group allowed for working through those sufferings through psychoanalytic intervention supported by the concept of helplessness.


Keywords
resistance; talking circles; sufferings induced by the State’s socio-political violence; helplessness.

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 TEXTO

Rodas de conversa do coletivo Escuta Sedes: um espaço entre as ruas e o divã

Conversation circles of the Escuta Sedes collective: an area between the streets and the couch
Luciana Chaui- Berlinck
Luciana Goulart  Mannrich
Maria de Fátima Vicente
Nayra C. P. Ganhito
Silvia Lopes de  Menezes

Meu povo presta atenção
Na roda que eu te fiz /
A roda que é do povo
Onde se diz o que diz
[Gilberto Gil, Roda.]

 

 

I. Muvuca

Impossível, ao tentar transmitir a experiência do coletivo Escuta Sedes e seu dispositivo Rodas de Conversa?- e assim avançar em sua elaboração?-, não evocar a atmosfera na qual ele pôde surgir e que as imagens da memória da reunião convocada com senso de urgência na comunidade Sedes em outubro de 2018 ilustram bem.

Na sala cheia, reunindo funcionários, usuários, membros, professores e alunos de inserções diversas e simpatizantes da comunidade, o mal-estar era quase uma presença física entre nós. Alguns choravam. Em nossas falas e silêncios, um misto de incredulidade, desconcerto e horror marcava o momento em que nos dávamos conta de que a eleição de Bolsonaro era não apenas possível, mas também provável.

No entanto, deste encontro marcado por afetos transbordantes, surgiram diversas propostas de nos organizarmos em grupos de trabalho. Um deles se destacou para pensar um espaço de escuta e compartilhamento das angústias, o que daria origem a um coletivo marcado por uma heterogeneidade bastante incomum no funcionamento habitual da instituição.

Somos, portanto, este grupo que se reúne, se inventa como grupo de trabalho e inventa um dispositivo clínico na "hora do pesadelo", na atmosfera potencialmente traumática do final de 2018, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, e que perdura até hoje, renovada e agravada pelo acontecimento da pandemia. Um coletivo que se propõe a escutar e acolher outros atingidos por esta mesma ameaça.

Chegamos, naquela ocasião, a 57 participantes. Colegas que não necessariamente se conheciam ou haviam trabalhado juntos e nem sabiam, impreterivelmente, das inserções institucionais, referências teóricas e experiência clínica uns dos outros. Não éramos exclusivamente psicanalistas de início.

O dispositivo Rodas de Conversa foi concebido, organizado e divulgado em poucas semanas, antes, portanto, que fosse exaustivamente discutido ou teorizado, pois o tempo era o da urgência e nos convocava a um agir. A primeira roda foi coordenada por duas pessoas que nunca haviam se encontrado, mas que se falaram antes, fizeram a roda acontecer e teceram hipóteses sobre as ocorrências no coletivo, propondo sugestões aos que coordenariam outras rodas. Havia entrado no horizonte de possibilidades do Sedes compor um grupo de trabalho com colegas de diferentes origens de formação, inserção e pertencimento.

A metáfora da roda, que evoca a ciranda e o brincar, as reuniões, os rituais, a circulação, nos ocorreu precocemente. A chamada de divulgação buscava falar diretamente ao cidadão comum, em termos simples:

 

A situação política atual tem mexido com você? Com suas relações familiares e de amizade? Você se sente desamparado(a), ameaçado(a), preocupado(a)? Tem tido pesadelos ou perdeu o sono? Venha participar das Rodas de Conversa?- Escuta Sedes, lugar de acolhimento e troca de experiências.

 

O que valorizamos, desde o início, foi a importância da livre circulação da palavra no momento em que isso parecia ameaçado, afirmando que esta deveria se dar coletivamente, em grupos, já que muitos se sentiam isolados ou em conflito em seus grupos de pertença. Em comum, reconhecíamos o potencial traumático da situação política, o que acreditamos devesse ser nomeado, sob o risco da naturalização do sofrimento como condição individual. Pretendíamos operar em contraposição aos discursos dominantes que privatizam as consequências psíquicas da violência social e de Estado, individualizando-as e culpabilizando os atingidos por ela. Sabíamos que, ainda que essa realidade se imbrique com o singular dos sujeitos, em seu funcionamento e história peculiares, uma dimensão coletiva de saída da violência era requerida e podia ser construída.

Por isso a proposta de que não fossem grupos terapêuticos continuados, formados a partir de critérios psicopatológicos, mas sim um dispositivo que favorecesse a expressão e a escuta da dimensão social do sofrimento psíquico. Articulamos as rodas como grupos pontuais, não fixos, de participação espontânea, agrupamentos heterogêneos quanto às diferenças culturais, raciais, de classe econômica, gênero, idade.

Fazíamos a aposta que esses encontros favoreceriam aquela expressão e aquela escuta, em um momento em que os conflitos e até cenas de agressão proliferavam no âmbito social, nas famílias, nos ambientes profissionais, nas redes e nas ruas, comprometendo o convívio e as trocas. Predominavam sentimentos de ameaça difusa, sem forma, ameaça indeterminada que convocava em nós as piores fantasias. Confiávamos que as rodas pudessem ser ocasião de elaboração psíquica, sem a necessidade da presença continuada ou de explorar detalhadamente a história de cada um.

Assim, se dissermos, com Butler, que a forma do movimento é, ela também, o elemento da crítica a que o movimento visa, podemos pensar que estar em roda sob aquela proposta de reunião instituía, naquele momento, uma possibilidade de resistência que diferia significativamente tanto dos silenciamentos e recolhimentos individuais nos espaços domésticos quanto das expressões nos espaços públicos de aparecimento?- tais como as ruas e praças?-, até então ocupados pelas manifestações e enquadrados pelo poder de polícia.

Ao tomar os conceitos de resistência, em Michel Foucault, e o de assembleia, em Hannah Arendt, Judith Butler[1] escreverá sobre as formas do movimento e introduzirá o importante elemento da corporeidade como modo de resistência, que comparece mais além das balizas do pensamento crítico. A corporeidade marca uma outra forma de fazer aparecimento no espaço público e o recria, o constitui de maneira a fazer caber o que antes estava separado: entre público e privado, o político e o doméstico, o reflexivo e o expressivo. Especialmente, a corporeidade marcada pela precariedade induzida pela violência estrutural do Estado.

A roda poderia, então, abrir este espaço entre o privado e o público, o afetivo e o reflexivo, o doméstico e o político, dando ensejo a transformações nas formas de estar e aparecer nesse espaço e a transformações do próprio espaço, mediante a experiência de uma convivência ancorada no desamparo como política.

 

II. Sobre as rodas

A presença dos participantes e dos proponentes das rodas, em sua heterogeneidade, contém em potência, ao nosso ver, a chance de favorecer relações mais democráticas do que aquelas ancoradas em quaisquer autoridades, mesmo a dos saberes instituídos; e foi um dos elementos principais para efetivar o que se supunha pudesse acontecer nas rodas, já que aquelas heterogeneidades estão em relação de interdependência para "fazer a roda rodar". Os modos de coordenação das rodas se configuram também como decisivos para favorecer a emergência de falas horizontais e relacionais nas quais as diversidades não são imediatamente patologizadas ou criminalizadas.

As pontuações, interpretações e assinalamentos dos coordenadores visam a estabelecer a possibilidade do movimento da roda. Às vezes, falas muito cristalizadas, construídas na pauta de discursos explicativos e totalizantes, macropolíticos, comparecem sob modos repetitivos, configurando uma defesa em relação à possibilidade e à necessidade de aquela pessoa pensar a conjuntura política conforme está configurada no momento, em seus específicos impasses e dificuldades, nos novos sofrimentos que promove e na resposta singular convocada por essa situação. Ocorre o mesmo com falas sobre relacionamentos familiares ou de trabalho, em que predominam afetos intensos, decorrentes de divergências tidas como irreconciliáveis, que parecem se contrapor àquelas e também mais próximas de uma elaboração psíquica, mas que podem se cristalizar tanto quanto as outras. Nessas ocasiões, as intervenções muitas vezes são pontes construídas entre discursos aparentemente díspares que promovem o movimento para que tais falas se articulem a partir do reconhecimento dos efeitos de vulnerabilização experienciados por cada um, promovida diferentemente pelas situações a que estão expostos e que pode vir a ser reconhecida, em sua especificidade, mediante aquela pontuação.

Muito do trabalho dos coordenadores, portanto, é garantir o ritmo, o movimento da roda, e procurar criar condições para que a palavra circule entre os participantes de maneira que todos possam falar e ouvir, o que não acontece espontaneamente, já que a pregnância dos discursos de ódio se intensifica no campo social, e o nível de angústia de cada participante pode tanto dificultar a fala quanto diminuir sua possibilidade de ser ouvido.

O manejo da coordenação pode então favorecer a possibilidade de que as verticalizações das falas e ações autoritárias, dogmáticas e excludentes, caso se presentifiquem, sejam problematizadas, o que não implica harmonia ou resolução das conflitivas. Uma roda pode terminar com disjunções e contradições entre os presentes, que, entretanto, serão nomeadas de modo a serem reconhecidas como conflituosas e pertinentes. Por exemplo, às vésperas da eleição de 2018, quando os ânimos estavam exaltados, uma participante, aderida apaixonadamente à sua pequena comunidade religiosa de características milenaristas, profetizava a depuração da humanidade por meio da purgação que, eleito o mito, se produziria. Ao mesmo tempo, uma professora universitária progressista da área de Humanas tentava argumentar com ela, irritando-se por não ser ouvida ou, talvez, por não conseguir impor-lhe a racionalidade lógica; enquanto uma socióloga, desempregada e em condições de vida em acelerada precarização, emudecia perante a discussão, atolando-se na depressão que a trouxera à roda em busca de alento. Havia elementos de sobra para um confronto beligerante ou uma aparente solução de compromisso pela via da apatia ou da desqualificação da fala do adversário. A roda permite outros caminhos, neste caso, o das alianças conjunturais: a profeta encontra interlocutores em outros participantes que acolhiam também os argumentos da professora cientista social, a qual, por sua vez, se aliava, por meio de olhares receptivos e considerações específicas quanto ao sofrimento, à colega precarizada. Aos coordenadores coube, nesse dia, nomear as distintas posições e possibilidades de reconhecimento das falas de cada uma, para além da censura e da desqualificação.

As angústias e inibições dos participantes também podem decorrer de fatores circunstanciais, tais como a sensação de não familiaridade com o grupo, como quando alguém está chegando pela primeira vez e desconhece o modo de funcionamento da roda. No entanto, um certo estranhamento será sempre recolocado a cada roda, uma vez que a formação do grupo é contingencial. Os participantes da roda podem se tornar muito assíduos ou virem apenas uma vez, ter estado presentes por um tempo contínuo e, de repente, irem embora sem despedidas, ou ainda, retornar intermitentemente. Isso resulta em modificações no âmbito das identificações entre os membros do grupo, que parecem se configurar como menos egoicas e mais pontuais, identificações com traços da presença de cada um, mais caleidoscópicas e flutuantes.

Um fator que potencializa ainda mais aquele efeito é o fato de que o trio ou a dupla de coordenadores também é diferente a cada vez. Há um rodízio de coordenadores cuja intenção é favorecer o surgimento de uma modalidade transferencial menos centrada no suposto saber do coordenador do que aquela que seria endereçada a um terapeuta de grupo. Ao deixar sempre indicada a pregnância do lugar vazio que, a cada vez, um dos coordenadores vem contigencialmente ocupar, o rodízio oferece condições para o surgimento de transferências de trabalho com os que estão ali reunidos, construindo, por sua presença em reunião, a roda.

Finalmente, o próprio modo de dar início ao trabalho em roda favorece diferentes maneiras de entrar e estar ali. Abríamos as rodas com uma apresentação de cada coordenador(a) e convidávamos cada participante a também se apresentar. Muitas vezes, devido ao grande número de presenças e aos diferentes estilos de contar de si, a apresentação se estendia por um largo tempo. Modificamos a situação propondo que, além de dizer seu nome, cada um explicitasse sua participação naquele dia com a consigna: "o que te trouxe para a roda hoje?". Além do ganho de tempo pretendido, constatamos uma certa leveza com a retirada da apresentação formal, que contribuía para a importação a-crítica da hierarquização social apoiada nos elementos identificatórios de profissão ou de grau de instrução, por exemplo. Aquela pequena diferença evidenciava que transformações desejadas dependem também de mudarmos práticas usuais que acabam cimentando a manutenção da ordem, de tal sorte que não as percebemos. Quanto ao nosso modo de trabalho, tratou-se de nos reposicionarmos e, assim, mudar nosso fazer de psicanalistas, mesmo entre aqueles que trabalham em instituições.

Criamos uma rede de sustentação coletiva das ações, às vezes bem trabalhosa, mas sempre entusiasmante, produtiva e resolutiva: as pré-rodas, as pós-rodas, as reuniões gerais e os grupos de WhatsApp/Signal.

Desde o início do Escuta Sedes, o trio responsável pelas atividades de um determinado horário se reunia antes do início da roda de conversa. O objetivo primeiro era a divisão de tarefas: quem estaria na coordenação da roda e quem estaria na retaguarda, o que se fazia a partir do desejo de cada um naquele dia[2]. Essas reuniões pré-rodas, no início, também tiveram importância para que nos conhecêssemos e para que cada um pudesse falar um pouco de si, de como chegava para aquela roda, já que os demais participantes vinham para falar sobre o impacto da situação política em suas vidas e vivíamos todos sob a mesma conjuntura política.

A mudança para o modo on-line, a partir do advento da pandemia, exigiu adaptações importantes, dentre as quais a substituição do modelo anterior de portas abertas pela exigência de inscrições prévias, o que requereu, tanto dos coordenadores quanto dos demais participantes, um planejamento adicional. Assim, as pré-rodas passaram a incluir a tarefa de dividir os inscritos nas duas rodas simultâneas disponíveis semanalmente, para acolher o afluxo de interessados e definir o trio de coordenadores que se ocuparia de cada roda.

As pós-rodas também aconteciam desde o início. Ao término de cada roda, coordenadores e retaguarda voltavam a se reunir para compartilhar o trabalho realizado. São, e foram sempre, um importante espaço de elaboração das rodas. Hoje, constituem um espaço ampliado de elaboração teórico-clínica, com a presença ocasional de colegas que não participaram daquela roda específica, mas vêm ao pós-roda como modo de se incorporar ao trabalho. Nessa reunião articulam-se saberes a partir da elaboração do trabalho realizado na roda, de seu compartilhamento, ao mesmo tempo que, por seu efeito, constitui um espaço comum de trabalho e do grupo que opera nesse espaço.

Os grupos de WhatsApp e Signal são os espaços virtuais por onde organizamos o trabalho cotidiano e nos quais os relatos das rodas são compartilhados. Ler e escrever esses relatos são formas de tecer um fio longitudinal entre as várias rodas e o movimento que vai se configurando através delas. Constituem também um farto material testemunhal a ser analisado e processado no tempo. As reuniões gerais ocorrem em uma frequência aproximadamente mensal e abrigam as discussões e decisões mais abrangentes.

 

III. As incidências da conjuntura sociopolítica e suas decorrências

Apesar da esperança e dos atos de resistência, o resultado das eleições presidenciais trouxe a confirmação de muitos temores e a alarmante descoberta de novos riscos.

Durante o ano de 2019, desde seu início, a demanda pelas rodas diminuiu bastante. A equipe também se reduziu a menos da metade. Fosse por esgotamento, resignação ou certa paralisia, as pessoas se recolheram e já não encontravam motivação de estar e falar em grupo, em roda, para partilhar e transformar o próprio sofrimento. Isso foi anunciado de modo pungente nas últimas rodas de 2018, quando pessoas que dedicaram suas vidas à militância política falavam em aposentadoria ou planos de "mudança para o interior". Contraste com o pedido recorrente de um "Natal" em roda, especialmente por aqueles que romperam com suas famílias, um tema bastante frequente do período.

Mas, se a sustentação do espaço das rodas e do grupo entre nós não foi suficiente para que as rodas prosseguissem da mesma maneira, a instalação da nova conjuntura política e social levou a um movimento de busca pela consolidação de nossa proposta como coletivo e à criação de dispositivos condizentes com o novo momento, o que passou pela escrita de um projeto que nos constituísse formalmente. Seus objetivos eram: (1) propiciar a construção de narrativas simbolizantes de experiências de indiferença, exclusão e de violência no meio social; (2) contribuir com os processos de elaboração psíquica de rupturas vividas em vínculos familiares, pessoais, comunitários e profissionais; (3) proporcionar o reconhecimento e a partilha coletiva das angústias vividas individualmente; e (4) tornar favorável a recriação dos laços sociais, por meio da escuta desse desejo e da eventual circulação de informações sobre diversos espaços de cidadania que possibilitassem construir ou intensificar novos projetos culturais, terapêuticos e/ou políticos.

O convite para a apresentação pública do Escuta Sedes convocava nossos pares e companheiros de luta e suas instituições, entidades ou movimentos a conversar sobre seus próprios trabalhos e seu interesse em indicar quem pudesse se beneficiar do espaço que sustentávamos. Afirmávamos ali: "Hoje o momento político é outro e igualmente nos impulsiona a seguir construindo e ampliando o trabalho iniciado em 2018, certos de que as elaborações e conquistas democráticas dependem das nossas ações, posicionamentos e laços construídos". O processo que culminou nessa apresentação foi um marco na consolidação da equipe do Escuta Sedes como grupo e não mais como agrupamento[3].

Foram propostas também duas novas modalidades de rodas que representavam diferentes leituras e diferentes investimentos frente à nova conjuntura: as Rodas de Conversa Mediadas[4], nas quais a arte servia como disparadora e mediadora da conversa, e as Rodas de Conversa Itinerantes, que seriam realizadas em outros espaços sob demanda de grupos específicos. Entretanto, seu desenvolvimento foi interrompido pela chegada da pandemia, assim como as rodas ficaram bastante reduzidas, com o risco de se estabilizarem como grupos terapêuticos, o que retiraria a potência que lhes era própria. Ainda assim, atravessamos em roda os pronunciamentos do presidente às sextas-feiras, os panelaços que os acompanhavam, as manifestações iniciais contra suas medidas abundantemente disruptivas e atordoantes. Esperávamos que 2019 acabasse logo, na superstição de que a mudança do calendário pudesse trazer novos ares.

2020 chega estrepitosamente ao mundo e, a partir de março, a pandemia cai sobre nós e nos isola em casa. Em 16 de março, enviamos um comunicado de que as rodas estariam suspensas. Em 2 de abril, um frequentador das rodas nos enviou um e-mail contando que está participando "de lives de discussão temática pelo aplicativo Zoom" e completou: "Talvez fosse possível essa solução para o nosso caso. Fica aí a sugestão". Apenas duas semanas depois, nosso grupo já havia se mobilizado para sustentar a manutenção das rodas em modo remoto, utilizando um aplicativo de chamada de vídeo em grupos.

Epidemias e pandemias são problemas multifacetados que não se esgotam na dimensão biológica do vírus e dos tratamentos médicos aos que adoecem. Ao ameaçarem toda uma comunidade?- no caso da covid-19, nada menos do que a população planetária?- requerem grande intervenção dos Estados através das medidas sanitárias, apoio econômico e campanhas de conscientização. Funcionam então como atualizações, em discurso e em ato, do poder público que irá geri-las, reproduzindo inclusões e exclusões e sua maior ou menor capacidade de amparo na complexa interação entre vários níveis de intervenção.

Em nosso país, o necessário distanciamento social, negado desde o início pelo governo federal, deslocou aquilo que deveria ser do âmbito público e comum a todos para decisões quase privadas baseadas nas informações desencontradas que circulavam, atravessadas pela disputa dos discursos políticos em jogo. O efeito confusional causado por essa impostura, somado a um confinamento que se prolonga indefinidamente, gerou um incremento do estado de desamparo e novas séries sintomatológicas. A chamada de divulgação das rodas passa a referir-se diretamente ao acontecimento da pandemia como fato político que atualiza aquelas violências.

Mas, quem frequenta as rodas? Em 2018, pessoas em conflito familiar ou em outros âmbitos devido a sua declaração de voto, ativistas políticos, a população lgbtqia+, professores e profissionais de áreas de atendimento/assistência ao público, mães ou pais preocupados com seus filhos na nova conjuntura, ou seja, todos aqueles mais diretamente ameaçados ou perseguidos por um governo autoritário que porventura se elegesse. Na vigência da pandemia, tivemos grande afluxo dos muito jovens ou idosos isolados em casa, professores e educadores sobrecarregados pelas problemáticas de estudantes e seus familiares, os enlutados por mortes atuais, relacionadas ou não à covid-19, ou revivendo lutos anteriores. Pessoas que perderam empregos, projetos, esperanças e perspectivas e que traziam suas crises de angústia, seus medos, e, mais tarde, a solidão, o desalento e os estados depressivos. A heterogeneidade se relançou mais acentuadamente, seja em termos etários, de classes sociais e das distâncias geográficas.

O trabalho remoto trouxe a preocupação de que a mediação tecnológica limitaria a dimensão do encontro que víamos acontecer nas rodas presenciais. No entanto, fomos surpreendidos por descobertas e facilitações. Um ganho inesperado do atendimento a distância foi a ampliação do acesso às rodas para além do bairro de Perdizes.

Deixávamos a sala cedida pelo Sedes e passávamos a ter um endereço de e-mail que reunia os grupos, chamando os participantes ao encontro na plataforma. As janelinhas na tela do computador se revelaram janelas para a praça pública do encontro, para o compartilhamento das diversas paisagens dos lares e também de outras cidades, estados e países. Descobrimos a repercussão que o Instituto Sedes Sapientiae tem no país todo, como instituição formadora, através da significativa procura de psicólogos e psicólogas, satisfeitos por poderem ter acesso ao Sedes e ansiosos por discutir as novas condições impostas de trabalho remoto.

Porém, como se constatou extensamente, a proteção que o isolamento possibilitaria foi?- e continua sendo?- acessível apenas a uma pequena parte da população, deixando à mercê da contaminação e da doença, dos medos e de sua negação, enorme parte da população, atingida brutalmente pela violência desigual da precarização da vida. A dificuldade de acesso à internet também excluiu a participação de muitos, e desvelou sutilmente a precarização das condições dos que comparecem, seja pelas conexões que não se sustentam no momento da roda, seja, por exemplo, evidenciando a necessidade dos mais velhos da assessoria de filhos ou netos.

O aumento e a diversificação da procura, desde o início da pandemia, parecem confirmar a impressão de que a "demanda pelas rodas" se intensifica em momentos de ameaça iminente e traumática deste período de nossa história, como as pré-eleições em 2018 e o advento da epidemia sob a gestão deste governo. As condições econômicas atuais se degradam rapidamente e já não podem ser acobertadas pelos discursos oficiais, devido aos efeitos de precarização óbvia que se abatem sobre a sociedade, o que se anuncia como um grande vetor de vivências de desamparo que poderão se traduzir como demanda pelas rodas.

 

IV. A Política do Desamparo em contraponto à Política do Medo

A concepção hobbesiana que justificou a soberania trabalha com a hipótese de que as relações de igualdade entre os homens, ao contrário de favorecer a busca do bem comum, conduziriam obrigatoriamente a relações concorrenciais aguerridas, uma "guerra de todos contra todos". Apenas a internalização de um temor à autoridade sustentada pelo Estado poderia então reprimir a destrutividade que marcaria as relações entre os homens e garantir a estabilidade e a segurança sociais[5]. A alteridade produzida por esse tipo de discurso seria necessariamente experimentada como uma potencial ameaça à integridade dos indivíduos, tanto física quanto psíquica e identitária, especialmente por aquele definido como radicalmente outro, o inimigo externo ou interno divergente e sempre à espreita.

Nas sociedades modernas globalizadas, sob o signo do neoliberalismo, o medo parece ser o afeto central organizador da vida social. O modo indivíduo de subjetivação é, portanto, próprio a essas sociedades modernas em que o Estado, republicano e laico, comparece como guardião da ordem mediante o monopólio da força e como protetor da integridade dos corpos individualizados mediante essa lógica.

Freud postulou o mal-estar na civilização como modo de regulação das forças destrutivas contra a civilização e do adoecimento dos indivíduos, a pulsão de morte e o masoquismo primário, mas guarda para com este discurso uma distinção radical: não legitima a soberania como modo de gestão das forças sociais e das pulsões, por considerar que as instâncias de autoridade e de governo também são fontes de crueldade. Por diversas entradas conceituais, porém radicalmente, ele propõe que a economia pulsional será determinada pelas forças sociais que estabelecem circuitos de afetos em interdependência com as regulações políticas desses mesmos afetos[6].

Podemos ler a obra freudiana como um enorme esforço para superar a dicotomia entre as teorias do sofrimento individual e aquelas do social, com a preocupação de abrir "possibilidades emancipatórias" para os sujeitos, a começar pela proposição da não unicidade do indivíduo, com a postulação do inconsciente, e a interdependência do sujeito ao outro[7], seja para sobreviver, seja para se inscrever no laço social.

Se Freud privilegiou a compreensão das relações sociais verticais com a autoridade, especialmente as paternas, foi por perceber que, na modernidade aparentemente emancipatória que teria derrubado o poder soberano, insiste uma fantasia social expressa enquanto demanda de amparo. Ele trabalha explorando suas ambivalências internas para abrir possibilidades outras.

Assim, a condição de possibilidade do laço social será o desamparo, não o medo. Um paradoxo, já que, para ele, a condição de desamparo encontra-se também na base de formações problemáticas, tais como a submissão ao líder e a adesão à instituição religiosa, com suas particulares formas de alienação relacionadas à nostalgia de um pai ao qual se submete por temor reverente, ao medo da perda de amor e ao desejo de ser amado, em detrimento do rival.

Mas trata-se de um paradoxo apenas aparente. O desamparo, na teoria psicanalítica, é positivado como categoria ontológica fundante, enquanto vulnerabilidade, fonte de todos os preceitos éticos que a civilização pode engendrar. A política do medo, ainda que historicamente forte, seria apenas uma das políticas de regulação dos afetos possíveis. Como então o desamparo poderia favorecer os laços e relações de confiança e colaboração?

A teorização freudiana sobre o humor pode funcionar aqui como pista, relativizando a leitura de que teria desconsiderado as relações horizontais, ao nível da fratria, para além da rivalidade ou da aliança no parricídio, marcadas pela culpa e pela referência paterna idealizada. Nos processos humorísticos, se estabelece uma aliança rebelde entre semelhantes que extrai prazer justamente da desidealização dos representantes do instituído, seja das figuras de autoridade, seja da linguagem "oficial". Um paradigma de sociabilidade diferente dos modelos verticais, que escapa da adesão às instâncias que se oferecem como ilusão de amparo e proteção, esvaziando-as dos atributos ideais que as caracterizariam e esvaziando, ao mesmo tempo, o eu. Os afetos resultantes desse processo são a alegria e o entusiasmo contagiante, a pedir que o achado espirituoso seja passado adiante, movido por Eros.

Trata-se, portanto, de uma outra forma de lidar com estados de desamparo, diferente da submissão a alguma instância transcendente em troca da ilusória garantia de proteção, em proveito de outro tipo de laços afetivos e sociais. Daí a aproximação da figura do humorista com a do órfão, que, ciente de seu desamparo, aprende a rir com a vida na companhia de uma comunidade fraterna capaz de encontrar, na atividade comum, a saída criativa frente àquilo que causa desconforto ou horror, diferente do recalque e consoante ao princípio do prazer. Mais do que por seu conteúdo, a potência desse laço irreverente cujo modelo é o processo humorístico reside na emergência desse afeto irresistível que incita sua transmissão[8]. O movimento que levou à proposição das rodas parece ter afinidade com esta irresistibilidade na transmissão do afeto, que, em sua dimensão política, favorece a criação de grupalidades e modos de sociabilidade a partir de um outro registro.

Nos dispusemos a tentar novos laços a partir das vulnerabilidades, tratadas coletivamente, por meio da ênfase nas diversidades e singularidades, em diferenciação e contraponto à lógica individualista regida pelo medo e pela massificação. Promover laços sob uma lógica que fosse mais além da lógica identitária e patriarcal, que favorece as identificações familiaristas, o narcisismo das pequenas diferenças, o racismo, a xenofobia, a segregação e o extermínio. As rodas começam como uma aposta na possibilidade de promover outros modos de laços sociais, em contraponto àqueles decorrentes da precarização da vida induzida pela violência de Estado. Sensibilizados pelo momento, demos um salto no vazio. Desde então, seguimos.

O trabalho do coletivo Escuta Sedes se transmite através de um modo específico de coordenação que, partindo de apresentações masoquistas, agressivas e sádicas das vulnerabilidades, opera na direção de transmutá-las por meio de pontuações, intervenções e silêncios receptivos que fortalecem os encontros e suas singulares expressões de corporalidade e, por meio disso, as reduzem à radicalidade do desamparo constitutivo.

Desamparo que pode se tornar criativo quando ancorado nesse modo de produzir subjetivação a partir do singular e que se equaciona por meio de alianças dos corpos em presença, as quais desinvestem as marcas identitárias próprias aos ideais individualistas e problematizam em ato as identificações unitárias e unificantes, dando lugar às expressões das fragilidades compartilhadas.

A roda gira melhor no terreno da horizontalidade, mas esta só se estabelece, de forma a promover aquelas transmutações, na dependência de uma assimetria específica situada entre a coordenação e os participantes. Novamente, o modelo do humor nos é útil para a compreensão da possibilidade dessa assimetria para além da verticalidade hierárquica, através do "trabalho do chiste". Nesse processo de criação, a alegria é um "bônus de prazer" que decorre da liberação do desejo de suas amarras repressivas ou inibitórias, por efeito de um trabalho psíquico realizado previamente por alguém. O excedente de desejo liberado por esse trabalho não será acumulado, buscará um outro a quem será ofertado pelo agente da transmissão, dando lugar à alegria compartilhada. Oferta feita de generosidade, não de sacrifício, já que o presente vale para ambos e institui o solo comum, a horizontalidade em que a roda pode rodar.

A positivação do desamparo como categoria ontológica que a psicanálise, particularmente como prática, torna efetiva, implica a possibilidade de articulação ao outro para além da demanda de autoridade, abrindo espaço à interdependência. A rede de sustentação do coletivo Escuta Sedes visa à possibilidade de operar desidealizações capazes de positivar o desamparo comum com certa alegria, o que decorre da circulação do desejo no encontro, possibilidade de encontro sempre contingente, indeterminável, em aberto, que a reunião em roda promove em sua dimensão de acontecimento irrepetível.

A morte, que a corporeidade presentifica, deixa de ser individualizada, e a precarização da vida passa a ser tratada em alianças nas quais se procura construir a vida que vale a pena ser vivida. Frágil proteção, a ser renovada dia a dia em todos os encontros, mas a única com a qual efetivamente podemos contar.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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