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Resumo
O presente artigo intenta sustentar a aposta na dimensão transdisciplinar da clínica. Para tanto, é necessário que os limites tradicionais deste campo sejam atravessados por outras forças?– que, aqui, serão a política, a estética e a ética. Para tanto, defende-se uma perspectiva ontológica da imanência, na qual o gesto cartográfico aparece como indicação metodológica fundamental.


Palavras-chave
clínica transdisciplinar; ética; estética; política; imanência; cartografia.


Autor(es)
Eduardo Passos Passos
é professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

Danichi Hausen Mizoguchi Mizoguchi
é professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.


Notas

1.E. Passos; R. B. Barros, "A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade", in Psicologia: teoria e pesquisa, p. 71.

2.G. Deleuze, Conversações.

3.B. Espinosa, Ética.

4.F. Zourabichvili, Deleuze: uma filosofia do acontecimento, p. 87.

5.F. Zourabichvili, op. cit., p. 108.

6.F. Zourabichvili, op. cit., p. 109.

7.F. Zourabichvili, op. cit., p. 9.

8.G. Deleuze; C. Parnet, Diálogos, p. 43.

9.G. Deleuze, "A imanência: uma vida", in Dois regimes de loucos, p. 411.

10.    Ph. Mengue, Le système du multiple.

11.    G. Deleuze; F. Guattari, O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

12.    G. Deleuze, "A imanência: uma vida", in Dois regimes de loucos, p. 408.

13.    G. Deleuze, op. cit., p. 408.

14.    Ph. Mengue, Le système du multiple, p. 34.

15.    G. Deleuze, Diferença e repetição, p. 236.

16.    S. Freud, "A dinâmica da transferência", in Obras completas, vol. x, p. 138.

17.    M. Foucault, Subjetividade e verdade: curso no Collège de France (1980-1981).

18.    M. Foucault, op. cit., p. 15.

19.    F. Guattari, Les Années d´hiver.

20.    F. Guattari, op. cit., p. 198.

21.    Cf. F. Guattari e S. Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo; E. Passos; V. Kastrup e L. Escossia, Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade; E. Passos; V. Kastrup e S. Tedesco, Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano do comum.

22.    F. Guattari, Les Années d´hiver, p. 194.

23.    F. Guattari, Caosmose: um novo paradigma estético.

24.    G. Deleuze, "A imanência: uma vida", in Dois regimes de loucos, p. 409.

25.    F. Deligny, O aracniano e outros textos.

26.    K. Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política.

27.    G. Deleuze; F. Guattari, O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

28.    Ch. Bonnefoi; M. Zerbib, Division de la division.

29.    R. Schérer, "Sem rosto: limites das prerrogativas do eu (moi) na criação?- a ideia de mínimo em Deleuze", in A. Maciel Junior (org.), Polifonias: clínica, política e criação.

30.    G. Deleuze, Conversações.

31.    G. Deleuze; F. Guattari, "Micropolítica e segmentaridade", in Mil platôs, p. 87.

32.    G. Deleuze; F. Guattari, op. cit.

33.    J. Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.

34.    M. Foucault, 1988.

35.    P. B. Preciado, Manifesto contrassexual: políticas subversivas de identidade sexual.

36.    A. Mbembe, Crítica da razão negra.

37.    Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão.

38.    M. Foucault, A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982).

39.    M. Foucault, "Sobre a genealogia da ética: um panorama do trabalho em curso", in H. Dreyfus; P. Rabinow. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, p. 261.

40.    M. Foucault, op. cit., p. 268.

41.    M. Foucault, O que são as Luzes?, in M. B. Motta (org.), Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.

42.    M. Foucault, op. cit., p. 342.

43.    M. Foucault, op. cit., p. 344.

44.    M. Foucault, op. cit., p. 344.

45.    M. Foucault, op. cit., p. 347.

46.    M. Foucault, op. cit., p. 351.



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Abstract
This article presents the focus on the transdisciplinary dimension of the clinic. For that, it is necessary that the traditional limits of this field are crossed by other forces?– which, here, will be politics, aesthetics and ethics. Therefore, an ontological perspective of immanence is defended, in which the cartographic gesture appears as a fundamental methodological indication.


Keywords
transdisciplinary clinic; ethics; aesthetics; politics; immanence; cartography.

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 TEXTO

A clínica e suas transversais: a ética, a política e a estética

Psychoanalytic work and its transversals: ethics, politics and aesthetics
Eduardo Passos Passos
Danichi Hausen Mizoguchi Mizoguchi

Neste artigo, problematizaremos os limites da clínica, fazendo jus à transdisciplinaridade que lhe coube desde a inauguração da clínica do inconsciente por Freud. Senhora da passagem, a clínica se faz por trânsitos, por transferências, por transversalidades: plano aberto, com sua interioridade, sua autoridade, sua familiaridade[1]. A relação da clínica com o seu fora pode ser pensada a partir do conceito de intercessor: a potência de diferenciação que um agenciamento produz sobre determinado território, desestabilizando o que nele havia de identidade prévia[2] . A arte, a política, a filosofia perturbam seus limites, forçando-a a avançar em um plano transdisciplinar sem limites transcendentes.

A noção de transcendência, cara à metafísica clássica, indica uma ordem superior, distinta e separada que é modelo e ordem da realidade. Nessa concepção, o conhecimento é definido como um ato de aproximação do inteligível com que se identifica a superioridade, a distinção e a separação do que é tido como a verdade.

Se Platão é o mestre da transcendência, Espinosa[3] é quem propõe uma ontologia radical da imanência?- e é com ele que gostaríamos de pensar a relação transdisciplinar da clínica e seus intercessores. Na operação filosófica complexa e arriscada de Espinosa, a oposição entre imanência e transcendência se desfaz, pois a distinção entre ambos não pode mais efetivar as condições basais da própria existência da transcendência. O que se dá é muito diferente da relação forjada entre os dois mundos platônicos ou entre as duas coisas cartesianas: a realidade se apresenta como um sistema fractal onde cada elemento comporta o todo ou é germe dinâmico e virtual para outras totalizações.

Mas como começar uma ontologia se o ser está em todas as partes? O grande jogo estratégico-teórico de Espinosa é que essa ontologia não começa exatamente por deus. Ao contrário, tem início pelos elementos constituintes da substância. É a univocidade que depende da multiplicidade, e não a multiplicidade que depende do uno. Assim, "o plano de imanência não precede o que vem povoá-lo ou preenchê-lo, mas é construído e remanejado na experiência"[4]: é um plano de acontecimentos que não cessa de efervescer. Com efeito, pode-se dizer que, com Espinosa, a imanência é o "diferenciante das diferenças"[5], o plano no qual a diferença se constitui e acontece.

É esse estranho conceito que permitirá que em Espinosa tudo se passe como em um plano fixo que não é um plano de imobilidade, mas um plano onde todas as coisas movem. Pode-se dizer que para ele só o que conta é o movimento das coisas sobre este plano fixo. Assim, "o um da univocidade condiciona a afirmação do múltiplo em sua irredutibilidade"[6]. Quase sob uma fórmula, podemos dizer que a imanência é ontologicamente una e formalmente múltipla.

É nesse sentido espinosano que Deleuze e Guattari afirmam que o agenciamento é unidade mínima do real, uma espécie específica de encontro "afetado por um certo desequilíbrio"[7]. Com os fragmentos da realidade opera-se a criação de outras realidades, já que com eles se "coloca em jogo em nós, e fora de nós, populações, territórios, multiplicidades, devires, afetos, acontecimentos"[8] que estabelecem ligações intercessoras que são a condição para a germinação de novos territórios.

Deleuze[9] lembra que a "transcendência é sempre um produto de imanência", o que nos obriga o cuidado de evitar que algum ente seja pressuposto como o fundamento do que há, seja ele o espírito, deus, o eu ou Édipo. Segundo Philippe Mengue[10], o perigo "mais grave" é o da tentação de atribuir a imanência a algo, relacionando este plano múltiplo e superficial a uma entidade, o que acarretaria novamente na constituição de grandes transcendentais ordenativas ou totalizadoras.

Se o inconsciente é produtor e imanente[11], devemos pensá-lo em uma atitude metapsicológica sem pronomes pessoais ou indicadores possessivos que reportem a uma unidade superior ou a um sujeito que opera a síntese das coisas?- o meu inconsciente, o seu inconsciente, o inconsciente da cultura ou da língua: "é quando a imanência não é mais imanência a nenhuma outra coisa que não seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência"[12].

Afirmar o primado desse plano é admitir uma anterioridade da ação frente às coisas. O primado da imanência é o modo de funcionar da clínica, acerca do qual não se pode perguntar funcionamento do que ou de quem. A imanência "não existe em algo, ela não é imanência a algo, ela não depende de um objeto e não pertence a um sujeito"[13], já que as operações que se realizam no plano de imanência não são centradas nem excêntricas. Elas estão no registro do múltiplo, que não deve ser entendido como o atributo de um conjunto de várias coisas, mas como um substantivo confrontado ao universal?- "forma fixa e estável" oposta aos fluxos de variações[14]. Ao contrário, a multiplicidade designa uma organização própria "que não tem necessidade alguma da unidade para formar um sistema"[15].

A imanência e o múltiplo não se contêm na unidade de um conjunto ou de um conceito geral, mas atestam um regime de variação contínua. Em contraste com a transcendência e com o universal, a imanência e o múltiplo conferem ao fragmento a potência de diferenciação?- e esta é uma das direções fundamentais para o trabalho que gostaríamos de empreender aqui.

 

O gesto de criação da psicanálise

Na primeira metade do xix, o positivismo definiu um princípio de conhecimento que se imporia sobre as ciências humanas e sociais que surgiam naquele momento, tornando-se a regra de validação de todas elas. Para Augusto Comte, conhecer era descrever a regularidade dos fenômenos para extrair leis de funcionamento. Construía-se um ideal em que o conhecimento era repartido em dois momentos distintos: o teórico?- a construção lógica do sistema de descrição e explicação da realidade do objeto?- e o técnico?- a possibilidade de intervenção sobre o objeto.

No gesto de criação da psicanálise, Freud subverteu a inteligibilidade europeia hegemônica ao apresentar a inseparabilidade entre os momentos teórico e técnico na experiência clínica, gerando a situação paradoxal que se expressa na versão analítica do dilema do ovo e da galinha, sem que possamos responder se quem veio antes foi o psicanalista ou a teoria psicanalítica. Essa charada compõe o suporte metodológico indispensável da psicanálise, fazendo da transferência a relação a partir da qual a clínica simultaneamente é fundada, age, é transmitida e se torna passível da teorização. Se é possível supor a transferência sem a clínica?- as "características da transferência não devem, portanto, ser lançadas à conta da psicanálise, mas atribuídas à neurose mesma", disse Freud[16] -, a recíproca não é verdadeira: não há nem ato clínico nem teoria psicanalítica sem transferência.

A partir da simultaneidade entre a teorização e ato clínico, devemos nos perguntar se a subversão psicanalítica do método se faz necessariamente no domínio restrito da intersubjetividade e da interioridade. Se a resposta for afirmativa, o risco em que nos colocamos é de que o universal impessoal do positivismo se torne um universal das profundezas da interioridade do sujeito. Assim, dois perigos opostos e complementares podem se anunciar. Por um lado, uma lei simbólica da cultura destituída de qualquer materialidade histórica: um tabu estrutural sem as marcas do espaço e do tempo, um teatro estável repetido ad eternum, que pode levar a clínica à assepsia apolítica da qual tantas vezes foi acusada. Por outro lado, a imposição de um mito individual preenchido pela narrativa intimista e ensimesmada da individualização dos conflitos que repete a distância radical entre a política e a clínica, desta vez em sua versão mais neoliberal do que estrutural, já que afeita ao paroxismo da propriedade até mesmo lá onde jamais se poderia imaginar que pudesse haver: no inconsciente.

O curso ministrado por Michel Foucault no Collège de France em 1981 chamou-se Subjetividade e verdade[17]. Apesar do título solene, em seu início é apresentado um texto aparentemente prosaico: a fábula do elefante narrada por São Francisco de Sales na Introdução à vida devota. Nesse texto, Sales indica que, para se alcançar uma vida conjugal correta, bastaria se observar a vida sexual dos elefantes?- os belos e honestos animais que nunca mudam de fêmea e amam ternamente aquela que escolheram, com quem acasalam apenas de três em três anos, por apenas cinco dias e tão secretamente que jamais são vistos neste ato, depois do qual dirigem-se para um rio e lavam-se inteiramente a fim de não voltar à manada antes de se purificarem.

Pode-se depreender que a fábula defende os princípios de conduta sexual indicados pela Igreja Católica: monogamia, raridade, heteronormatividade, finalidade reprodutiva, vergonha e purificação. Todavia, Foucault apresenta distintas versões para a mesma fábula, todas elas defendendo o paradigma da vida sexual dos elefantes como referência para uma vida sexual correta: os naturalismos dos séculos xvi, xvii e xviii, as filosofias medievais; a gramática latina do século iii, a retórica do século ii, o naturalismo do século i e, finalmente, a filosofia aristotélica no século iv a. C., quando os gregos conheceram os elefantes, com as expedições alexandrinas?- o que prova que não foi a Igreja quem inventou essa moral sexual, conforme comumente se atribui.

Com a explicitação da amplitude histórica que a fábula cobre, Foucault engendra a interrogação que fez todo o curso andar: se de fato a codificação da moral sexual perdura por pelo menos vinte e cinco séculos, que alterações no regime de relações entre subjetividade e verdade se deram ao longo desse período? E aquilo que ele encontra é a invenção cristã do desejo e da interioridade. O que o cristianismo inventa, portanto, é o desejo que habita o mais profundo do ser, onde se encontram nossas mais verdadeiras verdades que devem ser confessadas.

As mesmas invenções cristãs?- a interioridade e o desejo?- irão desembocar no jogo clínico que aparece no começo do século xx: confessar os desejos para descobrir quem se é. É preciso, assim, desembaraçar as linhas de força que fizeram com que em determinado momento histórico o sujeito fosse chamado a "manifestar-se e a reconhecer a si mesmo, em seu próprio discurso, como sendo em verdade sujeito de desejo"[18], o que coloca a clínica metodologicamente sob uma perspectiva da qual nos interessa desviar: a interioridade e a confissão.

 

A clínica transdisciplinar como cartografia dos desvios

Em um texto de 1983, La psychanalyse doit être en prise directe avec la vie, Guattari[19] diz que teorizar sobre a produção da subjetividade é realizar uma "cartografia descritiva e funcional"[20]. A tarefa da clínica é cartografar as linhas de força e os vetores de subjetivação que participam dos processos de produção dos territórios existenciais[21].

Guattari ecoa a subversão antipositivista freudiana e a máxima socioanalítica de René Lourau e Georges Lapassade de que se deve transformar a realidade para conhecê-la. Com este método simultaneamente descritivo e funcional, a narrativa se faz ato e a intervenção forja aquilo que descreve, forçando a uma modulação do agenciamento clínico absolutamente distante dos riscos de assepsia, neutralidade e imobilidade presentes na intersubjetividade de interiores. Esta perspectiva faz do conhecimento clínico uma forma de intervenção histórica sobre a realidade. É por isso que Guattari aposta na necessidade de "reconstrução da análise sobre novas bases"[22], o que exige que o próprio estatuto do mito de referência da psicanálise seja posto em questão. Pensar a clínica como mito de referência é tomá-la como criadora de direções existenciais a partir da interpretação e da intervenção sobre a realidade subjetiva, isto é, acompanhar os efeitos intercessores e os vetores subjetivos éticos, estéticos e políticos no plano de imanência, mais do que revelar transcendentes escondidos. Eis a direção metodológica da clínica transdisciplinar.

Clínica é um termo cuja origem vem de klinikós, que deriva de outras duas palavras gregas: kliné (leito) e klinó (inclinar, debruçar-se). É o movimento de acolhimento que o médico faz ao se debruçar sobre o leito do doente. Se não pode haver clínica sem acolhimento, não é menos certo que a clínica não pode se contentar com esse gesto. Do mesmo verbo klinó deriva uma palavra latina importante para que possamos fazer a operação de ampliação do sentido de clínica: clinâmen.

Na tese cosmogônica do filósofo atomista Epicuro de Samos, o cosmos nasce do caos. Na origem o que há são os átomos?- unidades indivisas e dotadas de massa que os fazem precipitarem no vazio. No início do universo epicurista há tão somente os átomos e o vazio. Todavia, com isso o que se explica é somente o caos. Para explicar a ordenação, é preciso supor que há algo mais nos átomos além de massa. Epicuro dirá, muito próximo do que vinte séculos depois Freud chamou de pulsão, que há nos átomos também uma tendência à inclinação. Ele diz que há um pequeno movimento aleatório lateral que desloca os átomos em sua queda no vazio. Do caos ao cosmo se dá a caosmose a que se referia Guattari[23] tomando como referência o neologismo de James Joyce em Finnegans Wake.

O conceito de clinâmen foi difundido por Lucrécio, um dos seguidores de Epicuro. É nessa tendência à inclinação que os átomos se encontram, se agenciam e operam como intercessores uns dos outros, compondo formas ordenadas. Sob esse sentido, a clínica é também clinâmica: é a inclinação sobre o leito do doente e o acompanhamento da tendência de inclinação. Eis, em suma, as direções de uma clínica transdisciplinar: acolhimento e desvio?- ou, ainda melhor, acolhimento do desvio em uma vida.

A direção metodológica da perspectiva transdisciplinar da clínica é a cartografia. Cartografar é acompanhar processos e vetores no plano de imanência. Nesse plano simultaneamente uno e múltiplo, o dispositivo cartográfico é aquele que permite forjar, acompanhar e narrar os efeitos dos agenciamentos intercessores naquilo que Gilles Deleuze definiu como uma vida: a "imanência da imanência"[24] - que, embora não cesse de se situar em sujeitos e objetos, não contém nada além de virtualidades, acontecimentos e singularidades sem propriedade.

Distante de seus sentidos unicamente biologicistas ou medicalizantes, a vida aqui indica sobremaneira as forças, as dobras, os encontros, os agenciamentos e intercessões que realizam os processos singulares, impessoais e coletivos na imanência. Queremos pensar, agora, a tripla acepção daquilo que a clínica cartografa: a aposta no dispositivo clínico marcado por um forte grau de transversalidade e de hibridismo que faz aparecer sua relação com a política, com a ética e com a estética.

 

O intercessor político

A primeira intercessão que gostaríamos de destacar é entre a clínica e a política. A clínica pressupõe como condição de possibilidade que aquilo com que ela trabalha?- a realidade subjetiva, o homem que somos[25] - não seja designado como algo estanque. Se consideramos que sua matéria-prima é qualquer coisa que indique ausência de movimento?- uma estrutura, uma essência ou outra imagem de imobilidade?-, a direção cartográfica se vê impedida. Na perspectiva que apresentamos, o objeto da clínica são os processos de produção de subjetividade.

Karl Marx já havia dito que o gesto político por excelência é a problematização crítica dos modos de produção da realidade. Em um texto de 1857[26], indica que a análise do capitalismo explicita a centralidade da produção em sua inseparabilidade dos processos de distribuição e de consumo. O capital se expande extensiva e intensivamente a partir do processo de produção de mercadorias, de circulação de valores e de consumação desejante, operando a globalização e integração das formas de existir à sua lógica.

Se macropoliticamente o capitalismo padroniza o processo de produção de riquezas a partir da propriedade dos meios de produção e da exploração da força e do tempo de trabalho do proletariado, micropoliticamente ele reproduz em série os sujeitos do desejo. Gilles Deleuze e Felix Guattari demonstram sua tortuosa herança marxista em O anti-Édipo[27] ao retomarem a atitude crítica de Marx em relação ao capitalismo, a ela agregando a dimensão do desejo.

Para a dupla de franceses, as máquinas desejantes não cessam de produzir. Elas inoculam a produção no produto. Nelas a produção se dá em uma operação infinita de repetição. Todavia, aquilo que elas repetem não é o igual do produto padronizado, mas a diferença intrínseca aos processos de produção, já que o processo de produção das máquinas desejantes é um processo permanente de repetição da diferença.

A aposta clínico-política de Deleuze e Guattari indica que as máquinas desejantes operam em uma relação de imanência entre a produção e o produto. Apresentar e insistir na produção incessante de diferenças é uma das funções que atribuem à clínica. Para eles, o ato analítico faz aparecer o processo de produção de si sempre que o produto está reificado e impedido de seguir pulsando. Assim, o processo de produção é pulsional, a pulsão é produtiva, e o aprisionamento na repetição dele é sintomático.

A demanda de análise é a ocorrência da separação entre a produção e o produto?- ou, em outros termos, a separação entre o que está sendo e a potência de ser outra coisa. Quando o processo de subjetivação e o sujeito se separam, e o produto se reproduz sempre igual ao padrão modal e a si mesmo, é preciso saber o que houve para que a potência imanente de repetição criadora tenha sido obliterada.

Em seu sentido político, a clínica opera a devolução do sujeito ao plano produtivo e pulsante do desejo. Enfrentando a separação entre produção e produto que Marx viu primordialmente na economia, a clínica inclui o desejo no plano da resistência?- agora transmutada de seu sentido analítico tradicional, não sendo mais aquilo que barra o processo, mas aquilo que torna possível que os processos desviantes do maquinário capitalístico aconteçam. É assim que as subjetividades talvez possam voltar ao jogo desejante em que o que se repete é a diferença, criando em si as condições de enfrentamento à estabilidade de um processo que, vampirizado, laminado e tornado produto pelo capital, já não podia mais se tornar outra coisa.

 

O intercessor estético

O que a clínica acolhe, em última instância, é uma máquina desejante em que a potência de diferenciação foi subsumida pelo produto supostamente final. Em outros termos, aquilo com que trabalhamos é um padecimento na capacidade de tornar-se aquilo que não se é: um padecimento na capacidade de fluir. Este problema faz aparecer o agenciamento da clínica com a estética, notadamente naquilo que se vincula com uma espécie de fundo falso da metafísica ocidental: o princípio da identidade lógica.

Este é o princípio inaugural de toda racionalidade advinda da metafísica grega que, de algum modo, ainda nos constitui. Parmênides de Eleia foi o autor desse golpe filosófico duradouro expresso na fórmula tão simples quanto definitiva: A é igual a A e A é diferente de não A. Em uma espécie de contracorrente marginal da filosofia, Heráclito de Éfeso se opunha ao princípio da identidade lógica ao dizer que um homem não pode se banhar no mesmo rio duas vezes. Esse é o modo alegórico através do qual ele apresenta um princípio segundo o qual a identidade das coisas é ilusória e só a mudança e o movimento são reais: o princípio da diferença ou do devir segundo o qual tudo flui. Isso significa que o rio não é igual ao rio?- porque se o rio é igual ao rio, há duas vezes do mesmo rio?- e que o homem não é igual ao homem?- porque se o homem é igual ao homem, há duas vezes do mesmo homem. E se, assim como o rio, o homem também é fluxo, é preciso que exista algo nele capaz de operar uma força de diferenciação naquilo que ele já é?- que algo nele seja idêntico ao que ele não é.

Se o método cartográfico tem de fato essa conexão com a estética, é importante que atentemos ao que fazem e dizem os artistas. Em entrevista publicada na Revue Chimères sob o título de Division de la division, o pintor Christian Bonnefoi[28] diz que o modo mais comum de ocupação da superfície espacial é a divisão. Para que o pintor crie, é preciso o gesto inaugural, que tira a superfície desse plano abstrato a partir de uma operação de divisão. Evidentemente, a tela em branco a partir da qual toda pintura começa é já um recorte finito e bidimensional do plano infinito e tridimensional do espaço. Quando se traça uma primeira linha nessa tela, em qualquer direção que seja, o espaço bidimensional também se divide.

Toda superfície abstrata e infinita só pode ser concretizada e singularizada a partir de uma divisão. A divisão é o modo a partir do qual as formas emergem. A divisão do espaço é, portanto, a base da criação formal. Aquilo que o divisor produz é uma delimitação do espaço liso, e quando esse divisor é rebatido sobre ele mesmo, faz aquilo que para Bonnefoi é o gesto pictórico: dividir o divisor.

Essa operação artística de dividir o divisor faz com que uma alteridade se apresente no quadro: produz, na própria superfície, o seu outro. Quando o divisor é dividido, a superfície bidimensional forja nela mesma aquilo que ela, por princípio, não é: a profundidade. Aparece, assim, o outro da superfície na própria superfície. O rebatimento do divisor sobre ele mesmo é, deste modo, a alterização da realidade pictural em seu próprio espaço. E essa alterização da realidade pictural é a inclusão na superfície daquilo que de direito está fora dela: a profundidade é um fora da superfície nela incluído: a profundidade torna-se o outro da superfície na própria superfície.

O princípio ontológico de que tudo flui não indica que não haja modos de existência que temporariamente se estabilizem. Como disse René Schérer[29], um mínimo de eu é necessário para que a dimensão estética da existência se efetive: estratos e formas temporárias são importantes para que novos afetos e agenciamentos possam emergir. Se entendemos que a subjetividade se faz de um modo semelhante ao que Bonnefoi indica ser a gênese da pintura, é preciso atenção para que as divisões que criam este eu mínimo mantenham-se em uma relação de alteridade inclusiva com o seu fora?- sem que endureçam por demais o território subjetivo nem caiam destrutivamente no caos. Para isso, a clínica pode colocar em cena dois operadores: o analítico e o articulacional.

Onde há limites, contornos ou delimitações subjetivas endurecidas?- ou seja, quando a relação de algo com seu outro é de exclusão?- deve-se fazer operar a rachadura das relações supostamente definitivas entre as palavras e as coisas. Trata-se de pegar as coisas pelo meio, ali onde elas crescem, como disse Deleuze[30] em uma entrevista sobre sua relação com Michel Foucault. Este é o ato do operador analítico: uma rachadura no divisor. Ou seja, quando aquilo que marca e identifica um processo existencial exclui do campo de possíveis tudo aquilo que ele ainda não é, é preciso fazer um estremecimento que desarranje o território subjetivo a fim de que ele possa novamente se colocar em movimento.

A subjetividade também procede por divisões. Se uma vida é um divisor finito do plano de imanência infinito, nela também se impõe uma série de divisões a partir das nomeações que nela se dão. Diríamos, fazendo menção a Deleuze e Guattari, que somos "segmentarizados em todos os lados e em todas as direções"[31]. Aquilo que aqui o operador analítico estremece e coloca em movimento é o que Deleuze e Guattari[32] apontam como os três modos de segmentarização do território subjetivo: binaridade, circularidade e linearidade?- ou quem, onde e quando se é.

Nessa tríplice modulação de cortes existenciais estão em jogo as grandes oposições duais molares?- por exemplo, homem e mulher, adulto e criança, homossexual e heterossexual?-, as habitações espaciais?- localizações mais ou menos amplas, mais ou menos estriadas, mais ou menos cercadas?- e os processos temporais?- com encadeamentos mais ou menos previsíveis, mais ou menos ordenados, mais ou menos cronificados.

Judith Butler[33], Michel Foucault[34], Paul Beatriz Preciado[35] e Achille Mbembe[36], cada qual abordando um problema binário específico, já indicaram o caráter ficcional, histórico e terceirizado de determinadas categorias identitárias nas quais nos apoiamos para dar conta da necessidade de dizer eu. Michel Foucault[37], ao fazer a genealogia das sociedades disciplinares, nos mostrou como as relações de poder não se fazem sem uma relação espaço-temporal: sem um cercamento do espaço e sem uma cronificação do tempo.

E se é verdade que não se vive sem que se possa se identificar e se localizar espacial e temporalmente, também é verdade que essas delimitações podem fazer com que em determinados momentos o sujeito exclua o outro de si em si mesmo e, com isso, se veja impedido de criar outras divisões no divisor que ele mesmo é?- outras identidades, outras espacialidades, outras temporalidades, em suma, outros modos de existência.

Se não cremos que essas divisões possam ser essenciais e definitivas, resta saber qual é a relação que uma vida permite que se dê em relação ao fora delas. Quando as divisões que criam as formas e tornam possível a existência se estabilizam por demais, aparece um problema que interessa à clínica. A partir dessa espécie estranha de diagnóstico estético, cria-se demanda de análise.

O efeito que se espera que o operador analítico cause é o estremecimento dos limites, dos contornos e das delimitações subjetivas por demais endurecidas: rachar a divisão do divisor. Trata-se da possibilidade de fazer aparecer outras divisões do divisor?- o que enseja a criação de outros planos subjetivos e existenciais: novas identidades, novas espacialidades e novos ritmos. O operador analítico atiça o processo de conexão do sujeito com aquilo que ele ainda não é, tornando possível que o fora dele seja nele incluído. Ao rachar a estabilidade entre as palavras e as coisas, desterritorializa o território subjetivo formalmente dividido e induz à criação de novos planos e modos de existência.

A intervenção analítica produz fragmentos de discurso e fragmentos sensíveis que só se organizam numa perspectiva intimista em função do modo hegemônico de individuação moderno. O operador analítico deve evitar a repetição do individualismo moderno que faz com que cada novo fragmento de narrativa produzido pela análise apareça como um passo adiante no aprofundamento do sujeito. Se são modos de existência distintos, não podem ser tomados como mais verdadeiros, mais legítimos ou mais profundos: são ficções clinicamente postas lado a lado.

Quando os fragmentos de território existencial são colocados nessa relação de lateralidade, entra em ação o segundo operador clínico: o operador articulacional. Esse tipo de operação visa a que os fragmentos da realidade que surgiram a partir do operador analítico se agenciem, multiplicando as coordenadas existenciais. Quem chega à clínica preso à queixa e à angústia, ou a coordenadas existenciais endurecidas, com divisores estanques e apartados de seu fora, pode, a partir da ação desses dois operadores, experimentar novamente a possibilidade de construção de outras coordenadas existenciais. Na superfície da vida, fazer aparecer outras divisões do divisor, o que é o mesmo que dizer novas formas.

Rachando o divisor e fazendo o fora de si aparecer em si, o sujeito é devolvido ao fluxo de subjetivação e, assim, é clinicamente devolvido à experiência estética de si. Incluindo o fora de si, criar novos tempos e novos espaços para si. A relação intercessora entre a clínica e a estética nos ajuda a entender a operação que desestabiliza aquilo que no sujeito era identificação dura e irremovível, devolvendo-o à capacidade ontológica de fluir ou à condição de criação e de diferenciação em relação àquilo que ele mesmo já é: nomear-se de outro modo, encontrar diferentemente as coisas do mundo.

 

O intercessor ético

Essa intercessão estética da clínica nos aproxima daquilo que Michel Foucault, em seu último movimento intelectual, chamou de ética. Os cursos ministrados no Collège de France na década de 1980 e um texto escrito quase à guisa de testamento são os materiais mais adequados para se entender com precisão o que ele convocava no terceiro momento de sua trajetória conceitual.

No curso ministrado em 1982, A hermenêutica do sujeito[38], Foucault empreende seus esforços na direção de um movimento surpreendente para quem o assistia ano após ano, refinar a análise das tramas microfísicas do poder. Desde a primeira aula, dá-se uma espécie de cavalo de pau problemático e conceitual: em vez da minúcia das tramas do poder, o interesse pelas práticas um tanto marginais do cuidado de si.

Se Foucault jamais deixou de se interessar pelas relações entre a subjetividade e a verdade, aqui aparece um terceiro eixo que não estava presente nas suas análises anteriores: as relações de si consigo mesmo. Neste curso, Foucault divide as práticas do cuidado de si em três grandes momentos históricos: socrático-platônico, idade do ouro e cristianismo. É no segundo momento, localizado nos dois primeiros séculos depois de Cristo, que aparece a relação de si para consigo que mais vai interessar o movimento teórico que ele empreende ali. Atento à filosofia estoica de Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio, Foucault encontrará uma prática de cuidado cuja conotação mais precisa indica ocupação. Cuidar, na terminologia desses pensadores, é ocupar-se de si: atentar e alterar a própria existência. Assim, o cuidado de si opera simultaneamente dois gestos paradoxais: estar atento e desfazer a si mesmo.

Transformar-se, mais do que buscar uma origem, é o jogo ético instado pelo princípio do cuidado de si. O que se instaura é a tarefa de governar a própria existência, dela cuidar e a ela criar como se fosse uma obra de arte. Em entrevista dada a Dreyfus e Rabinow, Foucault dirá que se surpreende que "a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida"[39]. É justamente a essa espécie de cuidado de si?- que a partir de certo momento tornou-se uma atitude suspeita, denunciada "como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo"[40] - que ele dará o nome de ética. É com ela que Foucault operará uma ligação curiosa entre o pensamento grego e a modernidade, duas modulações distintas que se unem para enfrentar o caráter literalmente antiético dos nossos modos de subjetivação majoritários: o cartesianismo, o cristianismo e o capitalismo.

A partir de um texto homônimo ao escrito por Kant exatamente duzentos anos antes, em O que são as Luzes?[41] Foucault diz que a modernidade não é o conjunto de traços de determinada época, mas uma espécie peculiar de atitude: "uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa" assemelhada àquilo "que os gregos chamavam de éthos"[42].

Essa ética é aquela que Foucault encontra também na poética de Charles Baudelaire: uma espécie de relação com o caráter fugidio do tempo que permite apreender o que há de heroico no presente. Não se trata, todavia, de perpetuar o momento que passa. Trata-se de transfigurá-lo e respeitá-lo simultaneamente. É esse mesmo tipo de relação que a atitude moderna tem com o tempo que Foucault indica ser preciso ter consigo mesmo: uma transfiguração de si.

Ser moderno "não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam: é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura"[43]. Moderno, portanto, não é aquele que "parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo"[44].

Essa ética pede a reativação permanente de uma crítica de nosso ser histórico. Ela não se faz sem que se tome uma atitude crítica em relação àquilo que somos para que disso possamos tomar distância, para que possamos pensar, sentir e fazer diferentemente. É o que Foucault chamava de uma ontologia histórica de nós mesmos.

A partir dessa aposta, a ética filosófica deve se fazer como uma atitude-limite. Situar-se nas fronteiras do que somos, fazendo aparecer o caráter contingente daquilo que nos é apresentado como universal, essencial e obrigatório. Trata-se de operar uma crítica "sob a forma de ultrapassagem possível"[45] - deduzir, das contingências que nos fizeram ser o que somos, a possibilidade de não ser mais assim, ultrapassando os limites do presente para se tornar diferente do que a história nos legou que fôssemos.

Mas para que essa atitude crítica não se perca no sonho sempre vazio e inócuo da liberdade absoluta, ela deve ser acompanhada do que ele chamou de atitude experimental. É preciso habitar, forçar e quebrar os limites de pensamento, de sentimento e de ação que nos são impostos, e, com isso, ser forçado a experimentar outros modos de existência. Foucault dirá que essa experiência simultaneamente limite e experimental é crítica em uma dupla acepção: colocar em questão o que somos e sustentar a crise que disso advém. Se não há qualquer garantia nesses mundos que são forjados, trata-se sempre de uma aventura experimental e de uma maneira de se estar vivendo no limite. A partir da perspectiva foucaultiana, operar o dispositivo clínico em sua intercessão com a ética é fazer aparecer essa atitude de ultrapassagem e experimentação de si, desestabilizando e tornando possíveis outros mundos em crítica e crise.

 

Por fim

A clínica é um dispositivo ético, estético e político. Através das operações de imanência entre produção e produto, de divisão do divisor e de ultrapassagem e experimentação de si, ela se coloca misturada nas disputas subjetivas do presente. É com essa entonação que gostaríamos de também afirmá-la como um modo de luta contra tudo aquilo que constrange e oprime a vida e dizer, ao fim e ao cabo, que a perspectiva transdisciplinar da clínica se dá como "um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade"[46] - o que certamente não é pouca coisa.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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