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Resumo
Em uma entrevista ao Caderno Cultura do jornal O Estado de São Paulo, em setembro último, Elizabeth Roudinesco foi categórica quanto ao pertencimento da psicanálise ao campo das ciências sociais, afirmando ser desnecessário seu diálogo com as neuroses. Para ela o cérebro e os neurônios podem precisar de psicofármacos, mas não de psicanálise, que será sempre a medicina da alma. Tomamos esta afirmação contida em um trecho de sua entrevista apenas como ilustração do terreno minado e controverso em que se constituem no último século as fronteiras entre os conhecimentos da Biologia e da Psicanálise. Desde que há duas ou três décadas as ciências do cérebro se agruparam sob o título de Neurociências, defendendo a importância da arquitetura e da materialidade cerebral e propondo uma busca mais sensível de suas possibilidades, puderam ser apontadas algumas conexões entre os resultados de suas pesquisas com evidencias já demonstradas pela psicanálise, uma delas a singularidade psíquica de cada indivíduo. Conceitos com a plasticidade (o cérebro não seria um órgão estático e sim evoluiria durante a vida, guardando as marcas das experiências vividas) e a epigênese (tudo o que não é determinado pela genética, isto é, que corresponde às modificações transmissíveis e reversíveis das expressões dos genes) revelam não só que a determinação genética não seria maior que a determinada ambiental ou psíquica, mas pedem uma articulação entre elas. Se pela genética não herdamos definições e sim disposições para cumprir funções segundo as exigências do meio ambiental que nos recebe, tal modelo etiológico passa a admitir a complexidade e as potencialidades além das causalidades, e a pensar a ação conjunta da herança genética e cultural, da situação singular, da história dos conflitos humanos, das condições histórico-sociais. Mas mesmo avançando sobre a idéia de um paralelismo, as colaborações entre esses dois campos apenas engatinham. Uma visada pelos textos produzidos recentemente por estudiosos de uma e de outra área mostra defensores e opositores de ambos os lados, e alguns que apostem que as duas impõem questões uma para a outra. As recentes contribuições sobre a maturação, o desenvolvimento e a plasticidade neuronal do cérebro poderiam ampliar o entendimento das peculiaridades e complexidades do psiquismo humano? As formas de teorizar e clinicar contidos no acervo da psicanálise ajudariam com seus modelos de pesquisas e interpretações sobre o funcionamento psíquico? Em julho deste ano realizou-se em Paris o I Seminário Internacional Transdisciplinar de Clínica e Pesquisa sobre o Bebê, que parece confirmar uma tendência na relativização de conceitos e verdades estabelecidas e um movimento que, em vez de privilegiar uma hegemonia de idéias ou de modelos, abre-se para explicações mais abrangentes, multidisciplinares e admite colaborações entre saberes antes considerados antagônicos. Um dos trabalhos, apresentado por uma psicanalista francesa, confirmou, via ecografia, que os batimentos cardíacos de bebês intrauterinos se intensificavam quando a mãe falava-lhes o ‘manhês’ comparado a duas outras interferências da voz materna (pensando nele e conversando com uma outra pessoa). Para além da construção de um campo ampliado que possa refletir sobre a constituição subjetiva do bebê e da parentalidade ou contribuir na edificação de uma rede de atendimento e cuidados da infância, haveria o fato inédito de profissionais de estas duas áreas ousarem romper certas barreiras dogmáticas. A sessão Debates da Revista Percurso, no intuito de fazer ressoar tais diálogos e interrogações, convidou colegas de ambas as áreas para pensar e escrever a respeito.


Autor(es)
Marie-Cristine Laznik-Penot
é psicanalista em Paris, doutora em Psicologia Clínica, professora da Universidade Paris 13 e autora entre outros de Rumo a palavra, A voz da Sereia (Ed. Agalma), O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (Ed. Agalma). É membro da Association Lacanienne Internacionale (ALI).

Monah Winograd
é psicanalista, professora do Departamento de Psicologia da puc-Rio,coordenadora do grupo de pesquisa Materia Pensante (www.materiapensantesite.xpg.com.br), editora da Revista Psicologia Clínica/puc-Rio e coordenadora do programa de pós-graduação em Psicologia Clínica/puc-Rio

Aldo B. Lucion
é formado em Biomedicina, mestre e doutor em Fisiologia pela Universidade de São Paulo e professor associado no Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS.

Marcos T.  Mercadante
é professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), diretor de Pesquisa do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INPD), mestre em Psicologia pela pucsp, doutor em Psiquiatria pela FMUSP e pós-doutorado em Psiquiatria da Infância e Adolescência no Yale Child Study Center.


Notas

1 Marie-Claire Busnel, da Universidade de Paris V, intitulado "Respostas feitas ou discurso materno - o início da comunicação?"

2 O texto apresentado é um resumo nosso de textos e entrevistas enviados pela autora. Para consultar a entrevista entre em http://www.oedipe.org/fr/interview/autisme


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 DEBATE

Psicanálise e neurociência

Psychoanalysis and neuroscience
Marie-Cristine Laznik-Penot
Monah Winograd
Aldo B. Lucion
Marcos T.  Mercadante

Realização: Gisela Haddad e Vera Zimmermann

Em uma entrevista ao Caderno Cultura do jornal O Estado de São Paulo, em setembro último, Elizabeth Roudinesco foi categórica quanto ao pertencimento da psicanálise ao campo das ciências sociais, afirmando ser desnecessário seu diálogo com as neurociências. Para ela o cérebro e os neurônios podem precisar de psicofármacos, mas não de psicanálise, que será sempre a medicina da alma.
Tomamos esta afirmação contida em um trecho de sua entrevista apenas como ilustração do terreno minado e controverso em que se constituíram no último século as fronteiras entre os conhecimentos da Biologia e da Psicanálise. Desde que há duas ou três décadas as ciências do cérebro se agruparam sob o título de Neurociências, defendendo a importância da arquitetura e da materialidade cerebral e propondo uma busca mais sensível de suas possibilidades, puderam ser apontadas algumas conexões entre os resultados de suas pesquisas com evidências já demonstradas pela psicanálise, uma delas a singularidade psíquica de cada indivíduo. Conceitos como a plasticidade (o cérebro não seria um órgão estático e sim evoluiria durante a vida, guardando as marcas das experiências vividas) e a epigênese (tudo o que não é determinado pela genética, isto é, que corresponde às modificações transmissíveis e reversíveis das expressões dos genes) revelam não só que a determinação genética não seria maior que a determinação ambiental ou psíquica, mas pedem uma articulação entre elas. Se pela genética não herdamos definições e sim disposições para cumprir funções segundo as exigências do meio ambiente que nos recebe, tal modelo etiológico passa a admitir a complexidade e as potencialidades além das causalidades, e a pensar a ação conjunta da herança genética e cultural, da situação singular, da história dos conflitos humanos, das condições histórico-sociais. Mas mesmo avançando sobre a ideia de um paralelismo, as colaborações entre esses dois campos apenas engatinham. Uma visada pelos textos produzidos recentemente por estudiosos de uma e de outra área mostra defensores e opositores de ambos os lados, e alguns que apostam que as duas impõem questões uma para a outra. As recentes contribuições sobre a maturação, o desenvolvimento e a plasticidade neuronal do cérebro poderiam ampliar o entendimento das peculiaridades e complexidades do psiquismo humano? As formas de teorizar e clinicar contidas no acervo da psicanálise ajudariam com seus modelos de pesquisas e interpretações sobre o funcionamento psíquico? Em julho deste ano realizou-se em Paris o I Seminário Internacional Transdisciplinar de Clínica e Pesquisa sobre o Bebê, que parece confirmar uma tendência na relativização de conceitos e verdades estabelecidas e um movimento que, em vez de privilegiar uma hegemonia de ideias ou de modelos, abre-se para explicações mais abrangentes, multidisciplinares e admite colaborações entre saberes antes considerados antagônicos. Um dos trabalhos, apresentado por uma psicanalista francesa [1], confirmou, via ecografia, que os batimentos cardíacos de bebês intrauterinos se intensificavam quando a mãe falava-lhes o ‘manhês', comparado a duas outras interferências da voz materna (pensando nele e conversando com uma outra pessoa). Para além da construção de um campo ampliado que possa refletir sobre a constituição subjetiva do bebê e da parentalidade ou contribuir na edificação de uma rede de atendimento e cuidados da infância, haveria o fato inédito de profissionais de estas duas áreas ousarem romper certas barreiras dogmáticas.

A sessão Debates da Revista Percurso, no intuito de fazer ressoar tais diálogos e interrogações, convidou colegas de ambas as áreas para pensar e escrever a respeito.


MARIE CHRISTINE LAZNIK [2]

Pesquisas recentes no campo do autismo têm permitido à Psicanálise a abertura de um debate muito promissor com áreas vizinhas, seja porque este confronto exige formulações e explicações que possam ser compreendidas e partilhadas, seja porque admite, no campo da psicanálise, uma colaboração com estas disciplinas (muitas vezes necessária) para uma compreensão mais ampla dessa patologia. Assim como não há tema psicopatológico contemporâneo que possa deixar de lado a discussão com as neurociências e a genética, os neurocientistas mais avançados têm deparado com um funcionamento cerebral extremamente complexo, que os instiga a buscar respostas também no campo da psicanálise. Ainda que não se possa reduzir a subjetividade à genética ou à neurociência, é possível saber, por exemplo, que tipo de condição subjetiva participou para que aquele cérebro pudesse ter tido aquele tipo de alteração.

A clínica do autismo impõe esta cooperação entre áreas e, desde que foram encontradas evidências de alteração neuroanatômica, passou-se a valorizar o diagnóstico e o tratamento precoce. É indispensável, neste trabalho com crianças entre 18 meses e dois anos, que se realizem exames complementares, sobretudo os que vasculham o mapa genético. Graças a eles, sabe-se que há casos de crianças portadoras de uma grave doença genética que podem apresentar um recesso autista temporário. Por outro lado, os geneticistas não veem o autismo como uma doença genética no sentido mendeliano. Um mapa genético extremamente complexo pode detectar uma predisposição, mas não consegue prever se aquela criança desenvolverá ou não algum sintoma, ou seja, se ela irá se transformar em um pequeno gênio - existem casos tanto no campo científico quanto no artístico - ou em um bebê que irá se fechar em seu mundinho. Mas se esse mapeamento indica uma fragilidade específica e o diagnóstico precoce abre a oportunidade para intervenções e contribuições psicanalíticas importantes, já que o atendimento precoce em bebês e seus pais pode modificar o curso do desenvolvimento e permitir a emergência de vida pulsional e fantasmática. Tais constatações permitem-nos problematizar a irredutibilidade do sujeito e a pensar o Outro não mais como um campo dado desde o início, mas como função. O sujeito pode ser vitalizado por um pequeno outro, que se responsabiliza por ele. Se o Outro é uma função, há escolhas e futuros possíveis para o sujeito, e mesmo que o pequeno outro não possa contribuir para a constituição de um campo simbólico do Outro, isto não terá tanta importância se o sujeito conseguir circular em sua vida média, ainda que sendo um autista.

Geralmente é possível um consenso entre nós psicanalistas, os geneticistas e os cognitivistas quanto ao diagnóstico do autismo, que consegue ser preciso em crianças a partir de dois a três anos que apresentam os sinais positivos tais como o isolamento, um déficit relacional importante, um atraso da linguagem (a qual pode vir a desaparecer) e condutas estereotipadas ou ligeiramente estranhas. Antes dos três anos, só é possível detectar alguns indícios que apontam um risco de evolução autista. Entretanto, por seguirem o texto do DSM4, que considera "perturbações não específicas que invadem o desenvolvimento" também para as psicoses infantis, não tem sido fácil partilhar destas premissas com os médicos psiquiatras, que não reconhecem, não identificam e não tratam o autista. Nossa ideia foi capacitar os pediatras do serviço médico francês para que eles pudessem investigar os sinais de autismo em bebês. Fizemos uma investigação prévia sobre 2000 bebês e partimos para a investigação efetiva dos 25.000 bebês. Em uma primeira etapa, nossos 600 médicos investigadores examinaram as crianças dos 4 aos 9 meses. Em um segundo tempo da investigação, efetuada por professores de psiquiatria pediátrica com nossa colaboração, foram captados sinais de crianças entre 12 e 18 meses. Utilizamos um teste (C.H.A.T) desenvolvido anos atrás por um grupo de cognitivistas ingleses (testado em cerca de 16.000 bebês com 18 meses) que se apoia em duas provas, a capacidade de fazer semblante e a função protodeclarativa, para analisar se essas crianças são ativas na captação do olhar do outro, ou seja, se buscam ser olhadas mesmo quando o outro não as olha. Os resultados apontam que, para cada 100 bebês, 10 são considerados pertencentes ao grupo de risco. Destes, alguns possuem mães deprimidas, e ainda que para se protegerem não busquem captar seu olhar, olham avidamente para qualquer pessoa do ambiente que se ocupe deles. Estes não serão incluídos no diagnóstico de autismo. Procuramos aqueles que não olham nem a mãe nem ninguém, mas também aqui é necessário eliminar as chances de um quadro orgânico. Claro que não adianta diagnosticar precocemente, identificar certas lesões irreversíveis, saber que é necessário uma estimulação precoce, se a única maneira de solucionar for através da medicina e da psicologia cognitivista. A experiência no campo de pesquisa com a clínica psicanalítica tem contribuído com direções de cura para o autismo, ao resgatar a importância da prosódia entre mãe e filho, o manhês (maneira particular que as mães têm de falar com seus bebês), que faz diferença no processo de subjetivação do bebê. Os conceitos psicanalíticos e suas construções metapsicológicas têm podido iluminar não somente a clínica, mas a investigação que as outras disciplinas empreendem, aumentando as perspectivas de cuidados e intervenções. Por seu lado, as pesquisas neurocientíficas têm demonstrado a relevância da maternagem primária e do ambiente humano inicial sobre o infante, o que corrobora com as observações clínicas de inúmeros psicanalistas quanto à importância dos desdobramentos do psiquismo primitivo e da relação primária nos distúrbios patológicos e a abordagem terapêutica de suas consequências. Isto se deve ao fato de que a estruturação neuromental primária que acontece nos primeiros dezoitos meses de vida, antes vista como definitiva, é hoje relativizada pela plasticidade neurológica, o que abre um campo enorme tanto no melhor aproveitamento das "janelas de oportunidade" geneticamente programadas, quanto nas experiências corretivas, dentre elas a psicanálise. Se a genética não é mais destino (exceto em casos extremos), a despeito de todas as influências prévias, o futuro das existências tende a ser inédito. Ainda que existam limites (prévios ou não) ao desenvolvimento, nem sempre estes são conhecidos de antemão; existem, mas podem e devem ser cuidadosamente forçados, talvez ultrapassados. É a vida em aberto, com seus potenciais de vir a ser, de devir e transformar-se.

MONAH WINOGRAD

De saída, nunca é demais lembrar que o (des)encontro entre psicanálise e neurociências não data de hoje. Com efeito, a psicanálise brotou das ciências do cérebro, é filha da neurologia. Na segunda metade do século XIX, quando Freud estudava medicina, fisiologia do sistema nervoso e depois neurologia, eram basicamente duas as escolas dominantes: a alemã e a francesa. Para a escola alemã, liderada por Helm¬holtz, a ciência neurológica teria como objetivo explicar os mecanismos dos fenômenos clínicos, e portanto as funções normais, com base na teoria neuroanatômica e neurofisiológica existente, ou seja, desenvolver uma teoria neuroanatômica e neurofisiológica usando o material clínico como confirmação. A premissa era estarem os fatos clínicos subordinados às teorias neuroanatômica e neurofisiológica. Já a escola francesa, liderada por Charcot, entendia que a tarefa da ciência neurológica era estabelecer novos fatos clínicos independentemente da teoria neuroanatômica e neurofisiológica, ou seja, identificar, classificar e descrever os vários quadros clínicos. Era, portanto, principalmente uma nosologia. Sua premissa era de que, mesmo que não se pudesse encontrar a lesão correspondente a uma síndrome clínica observável, poder-se-ia e dever-se-ia identificar, descrever e classificar tal síndrome. Esse era, por exemplo, o caso das psiconeuroses nas quais a autópsia não revelava lesões demonstráveis no sistema nervoso que respondessem pela sintomatologia clínica observada em vida. Freud formou-se na escola alemã, tendo sido aluno de Brücke e Meynert (mas também de Brentano) e, depois, circulou pela escola francesa, tendo ficado bastante impressionado com Charcot e com as histéricas da Salpetrière.

Muito rapidamente, ele entendeu que: (1) as variações nas faculdades psicológicas seguem leis de funcionamento próprias (e não as da anatomia cerebral) e, portanto, as síndromes psicológicas precisam ser descritas e explicadas em seus próprios termos e (2) as faculdades psicológicas não são destruídas por lesões localizadas do cérebro: são distorcidas e modificadas de modo dinâmico, refletindo sua conexão com outras faculdades. Dito de outro modo, Freud percebeu que os processos psíquicos apresentam leis próprias de funcionamento, são processos complexos derivados da interrelação entre componentes mais elementares. Desse ponto de vista, o psíquico seria o produto de sistemas funcionais dinâmicos capazes de se organizar e de se adaptar a contextos variáveis e, portanto, deveria ser concebido como distribuído entre os elementos do sistema nervoso e não poderia ser localizados em regiões anatômicas restritas. Com isso, Freud aderia a uma linhagem neurológica diversa daquela na qual fora educado - adesão que lhe permitiu inventar a psicanálise.

Ao investigar as afasias, no início dos anos 1880, o jovem neurologista recorreu a Hugh¬lings Jackson e ao seu modelo de aparato mental. Para Jackson, o aparato mental está subdivi¬dido em níveis funcionais, ou seja, apresenta uma hierarquia de funções estabelecidas a partir da evolução da espécie humana. De modo bastante geral, os níveis superiores referem-se ao funcionamento voluntário, menos organizado, e os níveis inferiores dizem respeito ao funcionamento automático, mais organizado. Com base neste seu modelo, Jackson também cunhou o conceito de dissolução (regressão), segundo o qual, em condições patológicas, as funções (da linguagem, por exemplo) regridem para níveis hierarquicamente inferiores, menos voluntários e mais organizados. Suas premissas eram: (1) apesar de os eventos mentais não existirem na ausência de eventos cerebrais paralelos, a relação entre estas duas séries de eventos não é causal; (2) o físico e o psíquico são processos que devem ser conceitualizados separadamente, como concomitantes, mas não independentes.

O fato de os processos mentais e os processos neurológicos deverem ser descritos separadamente não significava que o esforço em correlacioná-los fosse epistemologicamente inaceitável. Muito pelo contrário, a correlação seria uma fase importante da investigação, posterior à fase da descrição e explicação dos processos psicológicos e neurológicos em termos próprios. É óbvio que correlacionar não equivale necessariamente a estabelecer relações diretas de causa e efeito, mas, sim, observar a concomitância, a simultaneidade dos processos em jogo, considerando sua interdependência mútua: não há mente sem cérebro e, por outro lado, um cérebro supõe necessariamente a emergência de processos mentais de complexidade variada.

Seja como for, no momento da atualização do encontro entre psicanálise e neurociência, sobretudo nos anos 1990, os psicanalistas fizeram como aconselhou Glover em 1945: ignoraram e continuaram. Atualmente, a situação se inverteu e são as neurociências que vão de vento em popa. Diante disso, muitos psicanalistas assumem uma postura pusilânime, defensiva e conservadora que faz com que pareçam defensores de um espiritualismo retrô e de uma ilusão religiosa que eles mesmos se esforçaram por dissolver. Evidentemente, não se trata de negar a pertença da psicanálise ao campo das ciências sociais, como quer Roudinesco, mas, sim, de não fugir das questões colocadas pelas neurociências nem de se abster da formulação dos problemas com os quais as neurociências devem se confrontar. Um desses problemas foi apontado em 1997 por Jacques Hochmann e se refere à questão central da presença do mal e do negativo no funcionamento mental - problemática derivada de uma realidade clínica que as neurociências em geral preferem ignorar, ao isolar e recortar os estados mentais, negando a dimensão inconsciente (em sentido dinâmico e não apenas descritivo) e a polissemia da realidade psíquica. Hochmann propõe, então, um dualismo metodológico que se opõe, de início, ao solipsismo metodológico de certas teorias das ciências cognitivas (Fodor, em particular).

A psicanálise entende que o ser humano, antes de ser propriamente um sujeito, é um ser intersubjetivo, objeto de investimento do outro, alvo da pulsão, mas também fonte de investimento de si no qual as produções pulsionais anárquicas, os elementos beta (Bion) e o pensamento incoativo (Green) se organizam e se tecem em rede, produzindo um sentido que será interiorizado. Neste movimento de realização e de perda, acontece de a negatividade, excluída pelos positivistas empedernidos, retornar do interior. Por isso, o dualismo metodológico de Hochmann supõe duas abordagens distintas e complementares: a abordagem geral, dos mecanismos, e a abordagem particular, do sentido. Aristóteles já dizia que só há ciência do geral, mas não há medicina a não ser do particular. Para os psicanalistas, a experiência clínica sempre singular não elimina a pesquisa das causas naturais eficientes, mas não pode e não deve se reduzir a esta pesquisa. Estamos diante do problema da distinção entre um reducionismo ontológico e um reducionismo metodológico. As neurociências não são um campo homogêneo. Há aqueles que entendem que o cérebro secreta pensamentos assim como o fígado secreta a bílis, como disse Cabanis em 1795, e que, portanto, o avanço das pesquisas sobre o cérebro nos revelará os segredos do funcionamento mental.

Mas também há aqueles que entendem que as pesquisas sobre o cérebro referem-se apenas aos aspectos neurais de acontecimentos que podem e devem ser estudados em suas faces múltiplas. Estes últimos podem enriquecer nossa reflexão teórica e nada impede que façamos uso da informação produzida, utilizando-a como metáfora nova ou sequestrando-a e transformando-a em novos conceitos metapsicológicos. A noção de epigênese é um bom exemplo. A de auto-organização também. Finalmente, o dualismo metodológico supõe um retorno: assim como a psicanálise se servir metaforicamente dos dados das neurociências, ela também pode e deve propor aos neurocientistas uma "higiene salutar". Testemunhando o negativo da positividade científica, ela deve lembrá-los da resistência, da complexidade e da opacidade dos objetos psíquicos. À psicanálise cabe sair do autismo que a encerra em um discurso estereotipado e defender um outro modo de considerar racionalmente o resto que escapa ao saber positivo, perguntando, para começar, o que é pensar?

ALDO B. LUCION
Do diálogo cérebro-alma

Na entrevista citada acima, a renomada psicanalista francesa Roudinesco delimita a psicanálise como uma ciência da alma. O cérebro seria uma estrutura separada da alma, sendo que seu estudo (as neurociências) não seria necessário para a psicanálise. Ela critica as sociedades psicanalíticas que cometeram o erro de dialogar demais com as ciências duras, ao crer que o debate sobre o cérebro e os neurônios era essencial. "Sempre afirmei que esse debate não era essencial, porque o cérebro e os neurônios não precisam de psicanálise. Não há muito que se fazer com isso, senão dar medicamentos". Mais adiante adverte que "se a psicanálise se ocupa apenas disso, afastando-se das moeurs (expressão francesa para costumes), ela se torna conservadora, familiarista e os psicanalistas se desinteressam dos assuntos sociais. Foi assim que se tornaram conservadores".

A visão de Roudinesco me parece claramente compartimentalizada quando diz que "os progressos da ciência são os progressos da ciência. Nenhum dos conceitos de Freud é confirmado pela biologia. São dois domínios diferentes. A psicanálise é a medicina da alma. É especial." Ela elabora a ideia de a psicanálise ser "a medicina da alma", considerando que o que "está voltando com muita força é a ideia de que temos um inconsciente, de que o desejo é capital. A psicanálise, bem pensada, permite compreender a moeurs, o inconsciente, o desejo e a sexualidade de uma forma inteligente. É uma teoria do desejo, afinal."

Seus argumentos se baseiam na delimitação dos campos de conhecimento e desta maneira a Lógica e a Matemática fariam parte das Ciências Formais, a Física e a Biologia, das Ciências Naturais e a Psicanálise, a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia, das Ciências Humanas. Sua luta é para "inscrever a psicanálise no registro das ciências humanas" utilizando-se da concepção de ciência no sentido da racionalidade, mas não no mesmo sentido da biologia e da neurologia, tal como Freud que se dividia entre as duas concepções. Não estamos mais no tempo do darwinismo e a biologia é reconhecida como uma ciência, uma ciência da natureza. A psicanálise não o é de modo algum. Não tem metodologia, resultados ou a positividade das ciências duras. É uma ciência mais próxima das Humanas, como a Antropologia, a Sociologia, a História. Mas mesmo essa concepção sobre as ciências humanas já foi contestada. Em relação à dicotomia "medicina da alma" e biologia, Roudinesco considera que "é muito interessante o que se passou na psiquiatria. Biologizaram-na. Até então, era um equivalente da psicanálise. Era uma medicina da alma. Mas a deslocaram para a biologia".

Concordo que a psicanálise não necessita do referendo das neurociências para explicar seus conceitos. Ela apresenta um conjunto de conhecimentos estabelecidos e testados que a habilita como ciência e como prática para o tratamento da psicologia humana e não precisa ser comprovada pelas neurociências. Ela é comprovada por quem faz uso dela.

As neurociências têm seus métodos, premissas experimentais, hipóteses e construções teóricas. Essas premissas de fato são estranhas à psicanálise. Roudinesco afirma que as neurociências não provaram nenhum conceito de Freud. No entanto, as neurociências não têm por objetivo confirmar os conceitos de Freud. Parece-me que a prática psicanalista já o faz. As neurociências têm por objetivo analisar o sistema nervoso nos seus vários e complexos aspectos. É interessante notar que tanto a psicanálise como as neurociências têm como ferramenta básica a análise. Utilizar o nosso sistema nervoso para analisar a si próprio, através de quais forem as abordagens e objetivos, e é realmente uma tarefa bastante difícil.

Embora a psicanálise não necessite das neurociências para ter validade, defendo o diálogo respeitoso entre as várias áreas de estudo de nosso comportamento. Esse diálogo parece-me importante para o conhecimento mútuo das áreas, evitando preconceitos e acusações infundadas. As neurociências têm consciência de suas limitações e potencialidades. Creio que a compartimentalização do conhecimento se posiciona contrariamente a outras áreas da medicina, em que uma visão integrada do ser humano parece se aproximar mais da realidade do que a afirmação de princípios unilaterais. A discussão de que "a psicanálise é a medicina da alma" enquanto a biologia faz parte das ciências naturais é absolutamente acadêmica. Parece-me que o diálogo entre as várias academias pode responder mais adequadamente à necessidade de entendimento do sofrimento humano.

MARCOS T. MERCADANTE
Psicanálise, ciências sociais e neurociências

Entrei em minha sessão de análise ainda animado com o debate da reunião semanal com meus pós-graduandos em que falávamos do modelo que havíamos decidido explorar, uma construção do cérebro social a partir da interação mãe-bebê por meio do brilho do olhar. Confessei o quão bem me fazia uma boa discussão científica. Mas depois de encher os ouvidos de minha terapeuta com o meu entusiasmo, ouço seu tom irônico: "Ah, que prazer me dá hipnotizar minhas mamães com meu próprio brilho!" Aparentemente tola, sua intervenção cabia em nossas conversas de então e teve um efeito arrasador: senti-me diferente, mais inteiro, mais livre. Se há uma expressão recorrente que sempre considerei depreciativa é a que diz que Freud explica! E as explicações que a ele são atribuídas acabam empobrecidas pelas próprias limitações do modelo cartesiano. Por sorte, Freud parece ter percebido as limitações que esse modelo imporia e migrou para um modelo simbólico pautado por analogias. Deixou de preocupar-se com as relações de causa e efeito, e passou a ocupar-se com a aproximação viabilizada pelo simbólico. Por seu lado, a neurociência busca, obstinadamente, o controle das variáveis, a reprodutibilidade, a precisão, o detalhamento, as relações de causa e efeito. Entre os diferentes métodos que utiliza, a fenomenologia descritiva contribui com o reducionismo necessário para um controle mais eficiente das variáveis, permitindo a construção de endofenótipos. Essa mesma fenomenologia descritiva foi utilizada por Freud, quando ainda procurava a explicação. E é dentro desse modelo que a neurociência pode verificar as várias hipóteses propostas por Freud. Porém, essa verificação, mediada pela neurociência, guarda uma imprecisão para os conceitos menos detalhados, e essa imprecisão revela a grande diferença epistemológica entre esses dois campos.

Vejamos a questão do olhar da díade mãe-bebê. Não existe mais dúvida acerca do papel da interação gene-ambiente. Para que o cérebro social desenvolva, é necessária a exposição aos diferentes estímulos. A neurociência procura quais são os genes reguladores dos neurônios que se ativam pelo brilho, e quais são os circuitos associativos ativados por esses neurônios. A psicanálise está interessada na qualidade dessa relação; a neurociência, no impacto das moléculas liberadas durante essa relação. Ou ainda, no exemplo apresentado no texto disparador desse debate, acerca do impacto da voz da mãe no bebê que ainda está em seu ventre. A neurociência investiga as moléculas liberadas durante o "manhês" e as diferenças de frequência desse tipo de fala, procurando identificar os locais que esses elementos atuam no cérebro, o impacto dessa interação molecular e quais circuitos associativos serão ativados. Seria isso interessante para a psicanálise? Seria ela uma área do conhecimento boa para explicar coisas, dentro dos modelos atuais? Ou seria um bom método de reflexão pessoal? Assim, surge uma boa questão: qual a vantagem do diálogo entre os dois campos? A neurociência pode aproveitar os "endofenótipos" propostos pela psicanálise, até porque esses endofenótipos não pertencem a ela, mas sim, resultam da aplicação do método fenomenológico descritivo. Mas, para a psicanálise, qual seria a vantagem? Retomar o ponto que Freud abandonou? Reduzi-la à busca de relações da causalidade aprisionante?

Ao contrário de Popper, que propõe a psicanálise como uma ciência fechada, e as ciências naturais, entre elas a neurociência, como ciências abertas, ouso pensar que a psicanálise liberta, e a neurociência, por outro lado, aprisiona (sem dúvida, um parágrafo epistemologicamente perverso).

E nessa perspectiva talvez valha a pena explorar a outra questão. Seria a psicanálise um bom método de tratamento para a doença mental? Para mim, teoricamente sim, pois na verdade a doença mental é um estado de prisão, que o método analítico poderia libertar. No entanto, para termos evidências acerca dessa relação, são necessários estudos duplo-cegos, randomizados, e controlados; o padrão ouro na atualidade para definição se uma intervenção tem efeito superior ao placebo, ou a outras intervenções já testadas no tratamento de uma doença. Vale a pena?


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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