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Resumo
Resenha de Diva Reale e Marcelo Soares da Cruz (orgs.), Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein, São Paulo, Benjamin, 2019, 190 p.


Autor(es)
Fernanda Fazzio Fazzio
é psicanalista formada pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestranda em Psicologia Clínica e especialista em Semiótica Psicanalítica pela pucsp.


Notas

1.Os autores e entrevistados no livro foram: Ana Cecília Villela Guihon, Antonio Nery Filho, Auro Danny Lescher, Carlos Parada, Decio Gurfinkel, Diva Reale, Graziela A. Bedoian, Marcelo Soares da Cruz, Maria Teresa Vergara Gouveia, Mario Blaise e Zorka Domié.

2.C. Parada, "Claude Olievenstein, ‘velho guerreiro' da toxicomania: Leitura e descoberta", in D. Reale e M. Soares da Cruz (orgs.), Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein, São Paulo, Benjamin, 2019, p. 93.

3.F. Reale, "A porta ao lado: AIDS, Marmottan e a redução de danos", in D. Reale e M. Soares da Cruz (orgs.), op. cit., p. 77.

4.Z. Domié, "A casa Marmottan de Paris: Centro médico psicossocial experimental para toxicômanos", p. 43.

5.D. Reale e M. Soares, "Winnicott em Olievenstein: Transmissão psíquica, raízes inglesas", in D. Reale e M. Soares, op. cit., p. 130-131

6.D. Gurfinkel, "Formas de toxicomania e manejo clínico", in D. Reale e M. Soares, op. cit., p. 130-131


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 LEITURA

Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar: a clínica viva de Olievenstein

Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein


Walker, there is no path, the path is made when you walk: the living clinic of Olievenstein
Fernanda Fazzio Fazzio

Em 1971, Claude Olievenstein fundou o Centre Médical Marmottan (Hôpital Marmottan), instituição francesa inovadora no tratamento de toxicomanias e adições, ponto central para a escrita deste livro, pelas mãos de quem acompanhou de perto os passos de Olievenstein, conhecendo Marmottan e suas práticas[1]. Tendo por fio condutor as possíveis contribuições da psicanálise para a clínica da toxicomania, encontramos, na obra, ferramentas para analisar as políticas de drogas e refletir sobre os diversos modos de tratamento.

A leitura deste livro revela um pensamento clínico pulsante, em que transmissão e saber são atravessados pela experiência. Nesse inquietante encontro, nos deparamos com interrogações que se desdobram em novas produções. Assim, ganhou forma o livro do qual tenho o prazer de resenhar. A originalidade de Olievenstein está no seu pensamento vivo, que traz uma reflexão permanente, buscando sempre uma escuta sensível para a liberdade, autonomia e independência dos usuários. Frente a isso, o livro nos conduz a um exercício constante de pensar e (re)pensar em proposições teóricas e métodos de tratamento diante de novos contextos sociais.

Apesar da estreita relação das drogas com a humanidade ao longo de toda a sua história, foi somente na Modernidade que as drogas começaram a ser combatidas. A associação de toxicomania com doença, num contexto social marcado pela rigidez, buscava controlar os corpos do sujeito, dando aos usuários o lugar de objetos. Diante desse contexto, ao desmontar a lógica panóptica de vigilância?- que se dá pelo abuso de poder, respaldado pelo saber médico?- Marmottan se configurou como um modelo de resistência.

Se voltarmos aos anos 1980, o tratamento de toxicômanos no Brasil acontecia, justamente, em comunidades terapêuticas permeadas por modelos de vigilância e moralidade, comumente compreendendo as adições na sua condição de desvio. Durante essa época, o pensamento de Olievenstein avançava em inúmeras instituições na França, defendendo a liberdade e tornando o paciente sujeito do seu tratamento, opondo-se, consequentemente, ao modelo opressivo anglo-saxão.

Diva Reale e Marcelo Soares, psicanalistas e organizadores do presente livro, mostram que o então chamado modelo de cura francês também adentrou no Brasil, influenciando a criação de centros de referência entre 1984 e 1994, que contaram com profissionais treinados em Marmottan. Não por coincidência, Olievenstein fez, ao longo dessa década, viagens frequentes ao Brasil, período no qual escreveu e publicou numerosas obras, dentre as quais um livro que aborda as relações sociais e a psicanálise na cidade de São Paulo. Mas, afinal, quem foi Olievenstein?

Claude Olievenstein fugiu ainda menino da Alemanha nazista. Judeu nascido em Berlim em 1933, encontrou em Paris o seu refúgio. Na Segunda Guerra Mundial, diversos familiares morreram nos campos de concentração e extermínio. O passado talvez o tenha aproximado intimamente das experiências avassaladoras de quem perde as suas raízes, seus laços familiares e se torna estrangeiro na sua própria morada. Aqui, são muitos os sentidos de exílio e, com isso, vida e obra se tornam indissociáveis.

Frente a isso, Olievenstein trouxe para a clínica das toxicomanias uma visão muito particular de quem sofreu na pele os efeitos de políticas simplistas, reducionistas e totalitárias que caminham lado a lado com abordagens mais repressivas e autoritárias. Como mostra Carlos Parada, psiquiatra radicado na França (1987) que foi pioneiro na difusão dos trabalhos de Psicoterapia Institucional no Brasil: "Olievenstein era extremamente avesso a tudo o que tolhe a liberdade de pensamento, de escolha e de circulação"[2].

Marmottan, l'enfant terrible, é bem filho de seu tempo. Nasceu da força dos protestos de 1968 e das reformas no setor educacional, que também tiveram aderência da classe operária, seguidos imediatamente por artistas e intelectuais. A instituição foi criada para receber, sobretudo, usuários de heroína. O caminho de Marmottan foi feito por uma história de lutas e negociações diante de pressões e represálias do sistema, como comenta Diva Reale:

O modelo de cura francês, construído no rastro do movimento antipsiquiátrico, adotou uma clínica psicodinâmica própria, igualmente marginal, e resistiu às incursões ‘pragmáticas', identificadas à perspectiva de redução de danos [3].

Com ousadia, Olievenstein abordava a problemática das drogas propondo novos modelos e técnicas de tratamento. A sua originalidade chegou a tal ponto que concebeu um autêntico vocabulário pautado na experiência dos próprios pacientes, mostrando como foi impactado pelas palavras e pelas vivências que o atravessaram. A experiência de Marmottan revela que os pacientes podem ser sujeitos da sua história, compreendendo o tratamento para além da cura por abstinência, mas, sobretudo, como restauração de uma vida psíquica e de redes de significações.

Conversando com pontos centrais da clínica viva de Olievenstein, a psiquiatra e psicanalista Zorka Domié bem nos lembra do poema do espanhol Antônio Machado: "Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar"[4]. Cada sujeito tem seus passos, o seu ritmo e o seu próprio percurso. Por esse motivo, o tratamento de toxicomanias e adições em Marmottan era adaptado às necessidades dos pacientes, exigindo sensibilidade dos profissionais para se adequarem às mais diversas situações, visando estabelecer, entre si, uma relação de confiança.

O laço costuma ser efêmero nessa aliança terapêutica com os pacientes. A fragilidade de vínculos caracteriza as adições graves: perda das relações afetivas, ausência de referências passadas, dificuldades de estabelecer e manter novas redes. Solidão, vergonha e desprezo são alguns elementos que deixam as relações fugazes.

O tratamento em Marmottan tinha características únicas e inéditas: era gratuito, anônimo e voluntário. Em resumo, era o Estado quem garantia os recursos para a manutenção e continuidade do tratamento, retirando a pressão financeira dos pacientes e suas famílias. Além disso, o anonimato preservava a segurança para o usuário, que se via protegido de potenciais consequências repressivas.

A adesão voluntária permitia que o paciente abandonasse o tratamento a qualquer momento. Assim, os profissionais, nessa conduta terapêutica que considera o sujeito em sua integridade, tinham a difícil tarefa de decidir entre aceitar ou rejeitar uma demanda de internação. Sim, Marmottan nos mostra que é possível que usuários sejam sujeitos e não objetos de um trabalho institucional, numa tentativa gradual de promover alguma responsabilidade pelo que lhes acontece. Logo, quando não há tratamento compulsório, a liberdade se torna o norte. Deste modo, no modelo de cura francês, a escuta sensível parece compor todo o tecido subjetivo, preservando os direitos humanos.

Olievenstein formula uma tríade para compreender os complexos fenômenos ligados à adição: (i) um encontro de uma personalidade, (ii) uma droga e (iii) um momento sociocultural. A clínica, então, se torna singular diante de cada sujeito, de cada substância e de cada contexto social. Nesse sentido, há também um diálogo constante com outros conhecimentos advindos da antropologia, da sociologia e da psiquiatria, que dão contornos aos saberes para além da dinâmica psíquica dos sujeitos.

Um dos pontos altos discutidos no livro é como as drogas regulam as relações entre poder, violência e prazer. Assim, as ideias de Olievenstein se tornaram norteadoras para a compreensão do lugar das drogas no imaginário social, sendo referência para a criação, em 1996, do Projeto Quixote em São Paulo.

A rua tem a sua própria ordenação. Exilados de suas próprias histórias, os Quixotinhos urbanos, como são chamadas as crianças em situação de rua, são expostos às diversas faces de violência e de assédio, buscando, sobretudo, a sobrevivência. Como aborda o livro aqui resenhado, o Projeto visa a inclusão de crianças em estado de vulnerabilidade social em novas redes de afeto e sentido, possibilitando a criação de ancoragens subjetivas. As discussões são enriquecidas com depoimentos e memórias pessoais: Auro Danny Lesher e Graziela A. Bedoian mostram algumas doses necessárias de coragem e sonho para enfrentar os desafios gigantes de se aproximar desse circuito de violências que, de tão impactantes, não cabem nas regulações sociais.

Olievenstein demostra que não há uma personalidade patológica toxicomaníaca. O uso abusivo de uma substância é irredutível à patologia ou a um distúrbio de personalidade. As adições não se restringem a uma estrutura específica, se presentificam nas neuroses, nas psicoses e nas perversões. Capaz de trafegar por diferentes vertentes teóricas, Olievenstein circula de modo inovador entre conceitos franceses e anglo-saxões. A sua criatividade se revela também na livre apropriação dos conceitos de objetos transicionais de Winnicott e uma variante do estádio do espelho de Lacan, que Olievenstein batizou de espelho quebrado, como contam os autores do livro[5].

O psicanalista Decio Gurfinkel discute que o uso das drogas é uma possibilidade de alargar o espaço entre prazer e realidade, possibilitando que o sujeito estabeleça uma relação entre Eu e outro. Aqui, a compulsão à repetição aproxima os opostos, revelando o seu caráter elaborativo no uso:

O efeito ilusionista provocado pelo uso da droga não é necessariamente um afastamento ou repúdio da realidade, mas justamente um meio de se aproximar dela; do contrário, ela é percebida como uma objetividade mortificante, destituída de um mínimo de subjetivação exigida pela própria constituição pulsional humana[6].

Entretanto, não subestimemos o que vamos encontrar nesse percurso: os fantasmas inconscientes, que surgem a partir de algumas experiências dos usuários, podem ser da ordem do pior e, assim, deixam marcas no psiquismo. Os sujeitos buscam no uso impulsivo ou compulsivo das drogas o seu alento ou tentativa de elaboração, seja para esquecê-los ou para reencontrá-los. Nesse sentido, Carlos Parada, em seu capítulo, discute o caráter traumático intrínseco à utilização de certas drogas, a então chamada experiência fantasmática.

Caminhando em direção às clivagens, Gurfinkel aborda também casos relacionados às psicoses ou à psicossomática. Segundo o autor, a droga também pode entrar na tentativa do sujeito completar as fendas de uma imagem narcísica. Assim, as falhas nos níveis primitivos de estruturação são, de um modo frágil e provisório, remendadas pelas drogas. Como diz o autor, as drogas funcionam como continentes para o sujeito não ser engolido por oceanos de dor e angústias (im)pensáveis.

Essas proposições desaguam na questão de como a adição pode nos ajudar a compreender a perversão, levantando discussões sobre a função do terapeuta e o modo particular com que se estabelece a relação transferencial. As reflexões são atravessadas pelos dispositivos terapêuticos transicionais que ajudam o paciente a consolidar o seu Eu ortopédico rumo à independência psíquica do sujeito.

São muitos os desafios de se trabalhar a questão das toxicomanias e adições, em parte devido a preconceitos, interesses geopolíticos e econômicos. O discurso atual também se baseia em forte apelo midiático, em torno de uma verdadeira guerra às drogas e de um moralismo que domina a cena. Proibicionismo e abstinência parecem seguir hegemônicos no discurso social. Logo, visualizamos um ideal de segurança pública que busca o combate ao narcotráfico para se chegar a uma sociedade livre de drogas. Trata-se de uma concepção higienista em um imaginário reducionista, como se, enfim, fosse possível habitar um mundo sem as drogas.

Para concluir, no livro Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein, o leitor é convocado, a todo instante, a inquietar-se sobre a maneira com que as políticas públicas têm influenciado diretamente o modo, o contexto e as formas de uso de drogas na atualidade. Os autores se atentam também para as tendências institucionais místico-religiosas de nosso tempo: oferta de certa contenção ao usuário, mas ao custo de limitar a sua vida psíquica. Em um edifício psíquico frágil, a aderência sem questionamentos e uma rigidez de condutas não raro levam os sujeitos a uma pobreza simbólica e afetiva.

O presente livro faz reviver questões urgentes para o pensamento clínico e social do uso, abuso e dependência de drogas, seja nos consultórios ou nas instituições. As contribuições são inúmeras para que o pensamento de Olievenstein se mantenha vivo e relevante, inspirando pesquisas e saberes sobre as adições e toxicomania do século XXI. Ao fim do livro, nos deparamos com a agradável surpresa de acompanhar a Marmottan nos dias de hoje, com depoimentos que incluem os do psiquiatra francês Mario Blaise, seu atual diretor.


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