EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
O artigo apresenta alguns conceitos do psicanalista Christopher Bollas que podem ser úteis para a continuidade da reflexão psicanalítica sobre a escuta musical.


Palavras-chave
Psicanálise e música; escuta musical; objeto transformacional; idioma pessoal; Christopher Bollas.


Autor(es)
Ines Loureiro
é socióloga e psicóloga, mestre em Psicologia pela PUC-SP, e doutoranda na mesma instituição.


Notas

1.R. Sterba, "Psychoanalysis and Music". American Imago, 22(1-2), 1965: 96-111, 1965, p. 109-110.

2.Cf. I. Loureiro, "Prelúdio sobre a fruição musical". In: Mouammar, C. e Campos, E.B.V. (orgs.): Psicanálise e questões da contemporaneidade. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013.

3.Cf. I. Loureiro, "Música e Psicanálise: (com)passos de uma pesquisa". Publicação com as palestras do Colóquio Filosofia, Arte e Psicanálise, UFBA, 2017 (no prelo).

4.S. Nettleton, A metapsicologia de Christopher Bollas?- uma introdução, São Paulo, Escuta, 2018, p. 72 (grifo da autora).

5.Cf. C. Bollas, Sendo um personagem, Rio de Janeiro, Revinter, 1998, p. 55.

A. Bollas, Forças do destino, Rio de Janeiro, Imago, 1992, p. 236.

B. Bollas, apud S. Nettleton, op.cit. p. 39.

6.S. Nettleton, op.cit., p. 40 e 41.

C. Bollas, "O objeto transformacional" ,in A sombra do objeto?- psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo, Escuta, 2015, p. 50.

7.L. Ratner, The Musical Experience, New York, W.H.Freeman and Company, 1983.

8.C. Bollas, "O objeto...", p. 50.

9.C. Bollas, Sendo um personagem, p. 43.

10.    Idem, p. 41, grifos meus.

11.    Idem, p. 1.

12.    C. Bollas, op.cit., p. 2.

13.    Apesar de antigos, os ensaios de Susanne Langer permanecem referências indispensáveis quando se trata do problema da significação na música. Cf. Filosofia em nova chave (1941) e Sentimento e forma (1953), ambos publicados no Brasil pela editora Perspectiva.

14.    C. Bollas, "Criatividade e psicanálise", Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 43(78): 193-209, 2010, p. 200.

15.    C. Bollas, Cracking Up?- the Work of Unconscious Experience, New York, Hill and Wang, p. 24, grifos meus.

16.    C. Bollas, Cracking Up, p. 24, grifos meus.

17.    C. Bollas, "Criatividade e psicanálise", op.cit., p. 201.

18.    C. Bollas, "Criatividade...", p. 203, grifos do autor.

19.    C. Bollas, "Consciência generacional", in Sendo um personagem, op. cit., p. 206.

20.    Cf. L.C. Figueiredo, Cuidado, saúde e cultura. Trabalhos psíquicos e criatividade na situação analisante. São Paulo, Escuta, 2014.



Referências bibliográficas

Bollas, C. (1995). Cracking Up. The Work of Unconscious Experience. New York: Hill and Wang.

____. (1998). Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter.

____. (2010). Criatividade e psicanálise. Jornal de Psicanálise SP, v. 43 (78): 193-209.

____. (2015). A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta.

____. (1992). Forças do destino. Psicanálise e idioma humano. Rio de Janeiro: Imago.

Feder S.; Karmel R.; Pollock G. (eds.). (1990). Psychoanalytic Explorations in Music. Madison: International Universities Press. Aplied Psychoanalysis Series Monograph 3.

____. (1993). Psychoanalytic Explorations in Music?- Second Series. Madison: International Universities Press.

Figueiredo L.C. (2014). Cuidado, saúde e cultura. Cuidados psíquicos e criatividade na situação analisante. São Paulo: Escuta.

Kohut H. (1957). Observations on the Psychological Functions of Music. In: The search for the Self?- Selected Writings of H. Kohut (1950-1978). New York: International Universities Press, 1978.

Kohut H. & Levarie S. (1950). On the Enjoyment of Listening to Music. In: The search for the Self?- Selected Writings of H. Kohut (1950-1978). New York: International Universities Press, 1978.

Loureiro I. (2013). Prelúdio sobre a fruição musical. In: Mouammar, C. e Campos, E.B.V. (orgs.). Psicanálise e questões da contemporaneidade. São Paulo: Cultura Acadêmica.

____. (no prelo). Música e psicanálise: (com)passos de uma pesquisa. Publicação com as palestras do Colóquio Filosofia, Arte e Psicanálise, UFBA, 2017.

Nettleton S. (2004). Music and internal experience. Journal of the British Association of Psychoterapists n. 42, iii, 3-18. Disponível em: www.limbus.uk/Music_and_internal_experience.doc

____. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas?- uma introdução. São Paulo: Escuta.

Ratner L. (1983). The Musical Experience. New York: W.H. Freeman and Company.

Reik T. (1953). The Haunting Melody. New York: Farrar, Strauss & Young.

Sterba R. (1965). Psychoanalysis and Music. American Imago, 22(1-2), 1965: 96-111.

Wilson S. (2018). Introduction. In: ____ . (ed.). Music?- Psychoanalysis?- Musicology. New York/London: Routledge.

 





Abstract
The article presents some concepts of the psychoanalyst Christopher. Bollas that can be useful for the continuation of psychoanalytic reflection on musical listening.


Keywords
Psychoanalysis and music; listening to music; transformational object; personal language; Christopher Bollas

voltar à primeira página
 TEXTO

Psicanálise e escuta musical

Variações sobre um tema a partir de C. Bollas


Psychoanalysis and musical listening
variations on a theme from C. Bollas
Ines Loureiro

A música muda tudo
E tudo muda você
Você é você porque muda
A música ajuda a ser

Arnaldo Antunes, Kaira

I.

A extensa literatura que aborda o tema psicanálise e música contém marcos obrigatórios. Os primeiros textos surgiram a partir da década de 1910, escritos por nomes que gravitavam em torno de Freud, como Max Graff e George Grodeck. Os anos 1950-1970 também foram pródigos em ensaios que se tornaram clássicos, como os de Kohut (1950; 1957) e Reik (1953), só para ficar em poucos exemplos. Coletâneas mais recentes (Feder, Karmel and Polock, 1990; 1993; Wilson, 2018) atestam a proficuidade das publicações nesse campo.

De modo sintético, é possível discernir vários tipos de abordagem em tal literatura. Um primeiro grupo é constituído por monografias que tomam certas obras (peças musicais) ou autores (musicistas) como objeto de análise, no mais das vezes recorrendo a elementos biográficos do compositor. Um segundo conjunto abrange as investigações sobre os processos metapsicológicos envolvidos em três dimensões, a saber: na criação (composição), na escuta/apreciação (recepção) e na interpretação/performance musicais. Por fim, há um amplo segmento de estudos que consideram os aspectos musicais tal como comparecem na clínica psicanalítica, isto é, como se manifestam no setting e no âmbito transferencial. No cruzamento dos estudos clínicos com os metapsicológicos, um tema se destaca: a voz materna, seus efeitos sobre a constituição psíquica e vicissitudes daí decorrentes. Ademais, perpassando todas essas abordagens, encontramos reflexões psicanalíticas sobre as qualidades do som (altura, timbre, intensidade e duração), as particularidades da linguagem musical (ritmo, melodia e harmonia) e as convenções historicamente consolidadas (como tonalidade e forma).

Ao longo do tempo, o campo configurado na intersecção entre psicanálise e música também tem sido explorado por diferentes "escolas psicanalíticas" e tendências interpretativas. A revisão bibliográfica realizada por Richard Sterba em 1965 já sublinha que os trabalhos então examinados "[...] refletem a sequência de teorias dominantes no pensamento analítico no período em que [cada artigo] foi escrito"[1]; teoria da libido, narcisismo, inícios do desenvolvimento do ego, compulsão à repetição e agressividade são alguns temas freudianos que, à época e sucessivamente, inspiram as abordagens da música no universo da psicanálise anglo-americana.

Ensaio recente de Samuel Wilson (2018) também repassa as temáticas que os psicanalistas preferencialmente associam à música: primeira infância, organização corporal, aspectos primitivos da mente e da sociedade (sentimento oceânico, ego incipiente, primeiras inscrições psíquicas, gratificações libidinais e narcísicas etc.), instrumento de domínio simbólico sobre aspectos do mundo e do eu/self (linguagem, socialização, sublimação, partilha do universo cultural) e assim por diante. Esse panorama sobre a literatura sugere, pois, que o eixo psicanálise e música possa ser empregado como uma espécie de lente temática para a (re)leitura histórica das tradições teórico-interpretativas do campo psicanalítico.

A mim interessam as questões?- há séculos tratadas pela Filosofia?- ligadas aos efeitos que a música exerce sobre o sujeito. Particularmente, as que giram em torno de uma compreensão psicanalítica da escuta musical: a predileção por esta, a proveniência do prazer (ou desprazer) suscitado no ouvinte, a natureza cognitivo-emocional da afetação e sua caracterização metapsicológica, as especificidades desses efeitos em relação aos obtidos com outras linguagens artísticas, e assim por diante.

Tais preocupações levaram-me ao encontro das contribuições trazidas por Heinz Kohut (1913-1981) nos dois trabalhos seminais acima referidos. O primeiro deles tem a coautoria do maestro Siegmund Levarie, um vienense emigrado para os EUA e em companhia de quem Kohut testemunhou as reações negativas do público universitário a concertos que apresentavam obras inovadoras, como as de Bela Bartók. As reflexões conjuntas sobre a hostilidade à novidade musical foram o ponto de partida para as principais teses de Kohut, comentadas em artigo anterior[2].

Muito resumidamente, para Kohut o prazer na escuta musical deriva da capacidade egoica de dominar estímulos auditivos complexos. No início da vida, o ego incipiente luta para organizar e dar sentido aos eventos sonoros (ex.: ruídos) que invadem o bebê e que são por ele vivenciados como altamente ameaçadores. Aos poucos, o ego vai ganhando recursos para identificar e lidar com esses estímulos, tornando-os menos perturbadores. Ora, a música é dotada de uma organização interna que facilita a tarefa egoica de reconhecer e dominar os eventos sonoros. O uso de tonalidade, convenções de início/fim e ritmo regular são exemplos de parâmetros que lhe conferem alguma previsibilidade. Daí que o prazer obtido com a escuta musical adviria, segundo Kohut, dessa possibilidade de exercer um domínio ativo sobre uma situação originalmente, e sempre potencialmente, traumática. Não é difícil perceber que o paradigma teórico subjacente é o da célebre brincadeira do Fort-Da (descrita por Freud em 1920 e por meio da qual seu neto tentava conter/simbolizar a angústia sentida com a ausência da mãe).

Claro que é possível fazer ressalvas à abordagem de Kohut[3]. À luz de autores que o sucederam, como Didier Anzieu (1923-1999) e outros, vê-se que o ego é ali descrito como uma espécie de mero processador de estímulos perceptivos?- um aparelho alheio a determinações intersubjetivas e variantes ambientais. Kohut parece não conceder maior relevância ao papel desempenhado pela dimensão sonora na conformação da própria arquitetura psíquica; é como se o progressivo domínio obtido sobre os sons fosse um simples correlato do desenvolvimento egoico.

II.

Um interessante contraponto à visão de Kohut pode ser encontrado nas contribuições derivadas do chamado Grupo Independente?- organizado em torno das ideias de Donald Winnicott (1896-1971). Os autores ligados à chamada "escola das relações objetais" tendem a enfatizar o papel ativo do ambiente (e dos objetos que o compõem) na formação do psiquismo; realçam também a importância dos aspectos qualitativos deste ambiente/objetos que circundam o bebê. Trata-se, assim, de uma abordagem que abre espaço para pensar tanto a incid-ência dos sons e da música na configuração do psiquismo, quanto a importância das peculiaridades do objeto-música nesse processo.

A obra de Christopher Bollas (nascido em 1943), psicanalista e escritor americano radicado em Londres, traz uma concepção de inconsciente bastante original, forjada a partir de A interpretação dos sonhos (1900) e da noção freudiana de associação livre. Aí se fundam os alicerces da visão bollasiana sobre o caráter criativo e comunicativo do psiquismo. Muitos conceitos de sua lavra?- como os de inconsciente receptivo, genera e idioma?- além de seu olhar sutil sobre as nuances do mundo objetal (objetos transformacionais, aleatórios, evocativos, transubstanciais, generacionais etc.), mostram-se especialmente fecundos para a compreensão psicanalítica da escuta musical.

Na impossibilidade de apresentar cada um desses conceitos e, por extensão, boa parte da obra de Bollas, tomemos como ponto de partida a afirmação de Sarah Nettleton segundo a qual a teoria do autor sobre nossas interações com os objetos externos é inovadora em três aspectos:

Primeiro, sua teoria do inconsciente receptivo propõe que as percepções do mundo objetal sejam fundamentais para a formação e o funcionamento da mente. Em segundo lugar, ele trata amplamente da nossa experiência do mundo inanimado?- algo incomum no pensamento psicanalítico. Em terceiro lugar, ele explora a ideia de que os objetos são significativos, não apenas por causa do que projetamos neles, mas por suas próprias qualidades intrínsecas [4].

Mantendo como baliza esta citação de Nettleton, ela mesmo musicista e autora de um artigo sobre música e experiência interna (2004), comecemos pela observação de óbvia importância para pensar a cultura e as artes: objetos inanimados são capazes de exercer, como os demais, função ativa sobre a configuração e transformação do psiquismo.

A noção de inconsciente receptivo, por sua vez, enfatiza a relevância da percepção no recebimento e na captura de aspectos desses objetos externos, bem como dos estímulos internos. As representações gráficas do aparelho psíquico, tal como esboçadas no capítulo VII da Interpretação dos sonhos e em O ego e o id, parecem justificar esta ênfase, já que os perceptos ali figuram com nitidez e associados a sistemas/instâncias diferentes. Aquilo que Freud denomina de Percepção-Consciência (Pcp-Cs) seria alçado ao primeiro plano por Bollas, seja como receptáculo permanente das impressões sensoriais, seja num papel mais ativo de "varrição" (scanning), seleção e apreensão de tais impressões. Porém, tal ênfase não descarta a existência dos conteúdos inconscientes mantidos sob repressão; segundo Bollas, a teoria da recepção é complementar à teoria da repressão[5].

Bollas postula que o indivíduo possui um idioma inato, que se refere ao "núcleo único de cada indivíduo, uma figuração do ser, parecida com uma semente que pode, sob condições favoráveis, evoluir e se articular"[6]. A esta imagem da semente soma-se outra ainda mais sugestiva?- a do idioma como "correlato psíquico da impressão digital humana"[7].

Haveria um impulso ("pulsão do destino") para articular e elaborar o idioma pessoal?- uma força de vida que impele à procura e coleta de elementos do mundo "afinados" com o idioma de cada um de nós. Desde o início, o bebê sinaliza que certos estímulos/objetos são preferíveis a outros. Nas palavras de Sarah Nettleton, que aqui também lança mão de uma metáfora sonora, as "crianças ressoam com formas particulares de experiência", de modo que uma mãe sensível a tais preferências?- poderíamos dizer, uma mãe "sintonizada"?- irá oferecer objetos com os quais o bebê "ressoará"[8]. E assim seguiremos ao longo da vida, selecionando objetos e formas de experiência que "timbrem" com nosso idioma pessoal e que promovam seu aperfeiçoamento. Quando se diz que duas vozes "timbram" ao cantarem juntas, está-se dizendo que elas se ajustam tão bem que conseguem potencializar os harmônicos uma da outra, otimizando as qualidades sonoras que singularizam cada voz.

O poder mutativo que os objetos exercem sobre nós tem nos cuidados maternos sua principal matriz e modelo. Aqui nos deparamos com aquele que talvez seja o principal conceito de Bollas, a saber, o de objeto transformacional. Em poucas palavras, "a mãe é vivenciada pelo bebê como um processo de transformação"[9], um processo que modifica a experiência do self. Nesse estágio primitivo, a mãe ainda não é representada como um "outro", de modo que ela é perceptualmente identificada com sua função e com as metamorfoses que provoca na dimensão ambiente-somática do bebê.

A propósito das modificações ambiente-somáticas produzidas pela mãe, cabe abrir um parêntese. Os cuidados maternos fazem parte de um "banho" de sensações no qual está imerso o recém-nascido, riquíssimo em estímulos visuais, sonoros, olfativos, táteis e cinéticos, que se associam, por sua vez, a estados de maior ou menor bem estar. Apesar de óbvio, este lembrete é importante porque, quando prestamos atenção à fenomenologia da experiência musical, deparamo-nos com aspectos que facilmente podemos atribuir a essas primitivas vivências cenestésicas.

Leonard Ratner é um dos estudiosos que se dedica à descrição dos aspectos estésicos envolvidos na escuta musical[10]. Segundo ele, muito além das percepções auditivas, o ouvinte é tomado por sensações visuais (o "contorno" dos "desenhos" melódicos, o "colorido" dos timbres?- "escuros", "brilhantes"...), táteis (a "textura" das vozes, a "densidade" de uma instrumentação, uma ressonância "áspera" ou "aveludada"...) e até gustativas (um timbre "ardido" ou "doce"...). Ratner enfatiza, sobretudo, os aspectos cinéticos, ou seja, nossa escuta musical registra movimentos. Dotado de várias qualidades (amplitude, intensidade e duração), o movimento pode ser figurado como "gesto"?- para cima ou para baixo, horizontal ou vertical, reto ou sinuoso, contínuo ou fragmentado, forte ou suave etc. O autor se detém principalmente sobre o movimento de "chegada" [arrival]?- a preparação e o acúmulo de tensões que se resolvem em momentos de repouso. Engolfados por esta massa de impressões, cujas variações e contrastes despertam nossas respostas internas, somos conduzidos no fluxo da fruição musical. É como se a escuta musical nos lançasse em uma "onda", talvez equiparável à experiência do recém-nascido manejado pela mãe, e nos envolvesse em "climas" peculiares, tal como as ambiências cambiantes que circundam o bebê. Fecha parêntese.

A experiência primordial com essa mãe-ambiente torna-se, assim, a origem de uma estética pessoal, que doravante irá nortear toda a busca de objetos transformacionais por parte do indivíduo: "A memória desta relação objetal precoce se manifesta na busca da pessoa por um objeto (uma pessoa, lugar, evento, ideologia) que promete transformar o self"[11].

A noção de inconsciente receptivo também aponta para a formação dos genera?- complexos de impressões objetais investidas libidinalmente, ou ainda, nódulos de diferentes intensidades, "texturas psíquicas altamente condensadas, marcas de nossos encontros com o mundo dos objetos"[12]. O contínuo incremento e complexificação dos genera irão realimentar a busca de objetos nos quais, e pelos quais, possam adquirir forma e expressão.

O terceiro e último aspecto ressaltado por Nettleton é o foco nas qualidades inerentes aos objetos. Bollas nos convoca a investigar as especificidades dos objetos culturais?- como música, pintura, literatura, arquitetura?- naquilo que têm de próprio em termos de linguagem e materialidade. A concepção bollasiana do inconsciente favorece, aliás, a reflexão sobre artes que carecem de "conteúdo", como a arquitetura e a pintura não-figurativa, pois, como ele explicita, "[...] muito do que escolhemos para processar o self é não hermenêutico"[13].

São muitos os textos em que Bollas insiste nesta tônica, a começar pelas páginas de abertura de uma de suas principais obras. Logo na "Introdução" de Sendo um personagem (1998), ele menciona a música como exemplo de objetos capazes de evocar (cognitiva, emocional e corporalmente) uma experiência antiga do self. Tais objetos permitem-nos reviver aspectos dessa experiência, e disso decorre seu potencial transformativo. Ouvir uma melodia que marcou certo momento de nossa vida reativa em nós "[...] não unicamente uma lembrança, mas uma constelação psíquica interior carregada de imagens, sentimentos e percepções de nosso corpo"[14]. Os objetos que selecionamos (objetos evocativos), bem como os objetos que nos chegam por acaso (objetos aleatórios) são usados para trazer à tona essas experiências e têm o poder de impactar o self, na medida em que despertam e transformam vivências passadas.

Bollas explicita que cada tipo de objeto?- literário, arquitetônico, pictórico ou musical, por exemplo?- permite a projeção e a elaboração de experiências de acordo com as peculiaridades de sua estrutura. A opção por um ou outro tipo de objeto não é indiferente: de algum modo, está em jogo a preferência por uma textura psíquica do/para o self[15].

É assim que Bollas nos convida a explorar o "potencial de processamento" da música em sua especificidade. A proposta de uma "filosofia da integralidade do objeto" situa-se no extremo oposto às análises reducionistas que "atropelam" as particularidades materiais e formais dos fenômenos sobre os quais se debruçam. Somente a música, por conta de suas características intrínsecas, seria capaz de produzir tais ou quais efeitos?- e por isso é buscada (e usada) como objeto preferencial em meio a tantos outros disponíveis no mundo da arte e da cultura.

Apenas a título de exemplo, poderíamos mencionar dois dos traços distintivos da música: ela é por excelência a arte do tempo e da duração, assim como a da pura forma (não possui outro referente, externo ou subjacente, que não ela mesma)[16]. Nas palavras de Bollas, emprestadas de Stravinsky: uma ideia musical se torna "‘som e tempo', o material da música"[17].

Talvez por isso Bollas recorra com tanta frequência a exemplos musicais; eles se prestam perfeitamente ao propósito de ilustrar a importância da dimensão formal (das percepções recebidas/buscadas) em relação à dos conteúdos (reprimidos). Claro que, em um idioma pessoal e/ou artístico, a forma e o conteúdo encontram-se articulados, mas me parece que Bollas está sempre tentando chamar a atenção para o potencial mutativo das formas. A esse respeito, vejamos uma de suas declarações inequívocas: "O idioma ficcional de Melville não está nos conteúdos temáticos de suas novelas e sim em sua maneira específica de escrever: em como dá forma ao conteúdo [in the forming of the content]"[18].

Na sequência do trecho, mais um exemplo musical:

 

Uma analogia com a intepretação musical pode ajudar a esclarecer essa diferença entre forma e conteúdo. Uma composição musical é uma forma na qual as notas musicais são arranjadas de um modo muito particular. Quando a ouvimos, cada um de nós é processado por sua lógica particular. A experiência de ser processado pela música é talvez mais claramente captada quando pensamos nas diferenças em nossos estados subjetivos trazidas pelas interpretações de diferentes maestros. Bernstein e Giuliani tomam um objeto comum?- digamos, a Quinta Sinfonia de Mahler?- e cada um a interpreta de acordo com seu próprio idioma, transformando a forma; quando ouvimos uma ou outra das interpretações, somos tocados [moved] por esse objeto comum de diferentes modos. [...] cada um de nós será processado por ao menos duas formas: a própria música e a inteligência transmitida pela interpretação do maestro[19].

 

Note-se, uma vez mais, a dupla direção das forças mutativas: o idioma interpreta e modifica a forma; esta, por sua vez e em sua singularidade, nos processa e, consequentemente, também nos transforma.

Se neste trecho Bollas realça a dimensão transformacional da escuta, em outros excertos encontramos pistas que ampliam nossa compreensão sobre a criação/composição musical. Ele concebe a obra como sendo um fragmento de realidade psíquica transposto para outra substância. Ainda com auxílio de Stravinsky, Bollas nos apresenta a noção de objeto transubstancial:

 

O termo objeto "transubstancial" permite-me pensar acerca da integridade intrínseca da forma na qual o indivíduo movimenta sua sensibilidade para criar: o pensamento musical, o pensamento em prosa, o pensamento pictórico. Esses processos poderiam ser vistos em parte como objetos transformacionais no sentido de que cada procedimento irá alterar a vida interna do indivíduo segundo as leis de sua própria forma. Mas um objeto transubstancial também enfatiza o "corpo" do objeto em transformação que recebe, altera, e representa a sensibilidade do sujeito que, por sua vez, aceita os seus termos e, agora, vive dentro dele[20].

 

A menção ao "corpo do objeto" não deixa de evocar um título de Anzieu sobre os processos criativos, Les corps d'oeuvre. Algo toma corpo em forma de obra, ou na forma da obra; mas essa transformação do objeto, ou em objeto, é também, ou virá a ser, transformação da psique. Mais do que interligadas, as noções de objeto transformacional e transubstancial talvez sejam modos de designar diferentes ângulos do mesmo processo. A forma é entendida como objetivação da inteligência estética que (se) modela (em) uma ideia e se materializa em obra; o objeto-forma resultante é capaz de, por sua vez, infletir sobre a própria ideia, transmutando-a.

 

Trabalhos da imaginação artística são objetos-forma, amostras do idioma pessoal tornado disponível para o outro. Cada objeto-forma demonstra a inteligência composicional de seu criador e sua estrutura estética sugere para seus subsequentes apreciadores uma peculiar integridade evocativa. Embora o leitor, o ouvinte e o espectador sempre recebam um objeto-forma de acordo com o idioma da inteligência receptiva do self de cada um, cada objeto-forma evoca uma resposta formal[21].

 

"O self de cada um": até aqui, as relações com objetos estão sendo inscritas na órbita do indivíduo e sua singularidade; no que se refere aos objetos, estamos no âmbito das particularidades (diferenças e semelhanças materiais, de linguagem, de estilo) e, ao mesmo tempo, da singularidade de cada obra (a música "x", na interpretação "y"). Bollas, porém, não descuida da dimensão coletiva dos objetos culturais; afinal, certas produções tornam-se significativas para grandes grupos, e seu valor transformacional é, inclusive, transmitido e compartilhado por diferentes gerações. É a isso que diz respeito a noção de objeto transgeneracional, tão bem exemplificada por fenômenos como os Beatles ou, nas bandas de cá, pelo Clube da Esquina ou os Novos Baianos. "Cada geração seleciona seus próprios objetos, pessoas e acontecimentos generacionais, coisas que têm um significado especial para a identidade de uma geração" [22]. São objetos que armazenam aspectos da experiência de uma época e que, assim, passam a identificá-la, assegurando nossa sensação de pertencimento a uma dada geração. Com o passar do tempo, essas obras mostram que foram capazes de "plasmar" a interpretação e a consciência de jovens adultos sobre sua própria identidade.

Poderíamos prosseguir na apresentação das ideias de Bollas que nos parecem sugestivas para pensar a escuta musical, mas já dispomos de subsídios para esboçar algumas conclusões, cujo efetivo desenvolvimento extrapola os limites do presente artigo.

III.

O uso da música como objeto transformacional e como meio de elaboração do idioma pessoal; um meio cujas especificidades formais são responsáveis pelos efeitos também específicos que suscita. Textura do self tramada com som e duração. A partir de Bollas, o tema da escuta musical pode derivar em variações criativas, agora na clave das percepções inconscientes, para além (ou aquém) de representações reprimidas.

O objeto-música irá se apresentar no terreno?- no espaço intermediário??- entre o idioma inato e os genera historicamente constituídos. Aí se implanta a atração pelo objeto musical que, por sua vez, "alimenta" os genera e incita o aperfeiçoamento do idioma. O apreço à música, a procura, seleção, uso e cultivo deste tipo de objeto?- tudo isto é estritamente singular, embora entranhado na esfera intersubjetiva?- na intimidade da estética materna e/ou no âmbito histórico-cultural mais amplo (diríamos, em modo menor ou maior... ).

Como outras produções culturais, o objeto-música só adquire significação a partir do conjunto no qual se encontra inserido. A rede de relações que estabelece com os inúmeros objetos investidos por um indivíduo num dado momento é crucial para que possamos cogitar como, e em que medida, ele se articula com o idioma pessoal. Em outras palavras, os traços que tornam uma música ou todo um repertório significativo para alguém hão de ser considerados (e interpretados) juntamente com traços significativos de outras escolhas objetais.

Bollas confere aos objetos uma função léxica, de modo que também é possível situar o objeto-música como parte integrante de um circuito comunicativo: ele "fala comigo" ao mesmo tempo em que "me traduz", propicia que eu desenvolva minha língua, funciona como um endereçamento a outros, permite a enunciação coletiva das experiências de uma época.

À semelhança dos demais avatares dos cuidados maternos, a música poderá vir a exercer, alternada ou concomitantemente, as várias funções que Luís Cláudio Figueiredo divisa nos objetos primários: sustentação/contenção, reconhecimento/espelhamento, interpelação/convocação. Para este autor, as obras de criação?- musicais, por exemplo?- podem desempenhar diferentes tipos de cuidado, tanto para seus compositores, quanto para os ouvintes que delas desfrutam[23]. Aqui também se abre todo um conjunto de questões a ser investigado posteriormente. Por ora, basta marcar que todas essas descrições da música como objeto giram em torno de uma mesma palavra-chave:
transformação.

Tempo de retomar a epígrafe, agora relembrando que os versos "A música muda tudo, e tudo muda você, você é você porque muda, a música ajuda a ser"?- emendam no refrão: "bem melhor". Assim como Bollas, o sempre genial Arnaldo Antunes sabe que as modificações operadas pela música incidem sobre um plano fundamental?- o plano do "ser"; sabe também que essas mudanças são qualitativas?- profundas ("tudo") e benfazejas ("bem melhor"). Em meio às estradas terapêuticas e os caminhos "psi", existem também as trilhas sonoras.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados