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ÍNDICE TEMÁTICO 
63
Fronteiras e travessias
ano XXXII - Dezembro 2019
201 páginas
capa: Liana Cardoso Soares
  
 

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Resumo
Tradução: Regina Orth Aragão



Notas
1 Para as mediações terapêuticas com crianças psicóticas, ver Brun, A.(2009), Mediaciones terapeuticas y psicosis infantil, Barcelona, ed. Herder, 413 p, tradução em espanhol de Médiations thérapeutiques et psychose infantile, Paris, coll. Psychismes, Dunod, 1ère édit. 2007, réédit 2010.?

2 Ver também Brun, A., Roussillon R., Attigui P. (orgs) (2016) Evaluation clinique des psychothérapies psychanalytiques. Dispositifs individuels, groupaux et institutionnels, Paris, Dunod, 492 p.

3 Centro Hospitalar Saint Jean de Dieu, Vénissieux. Intervisão com 3 psicólogos doutores em psicologia clínica, Claire Durozard, Guillaume Rebollar e Jean-Pierre Mambou.

4 Em francês "télille, tetine". Trata-se de um jogo de palavras com sons semelhantes. (Nota da tradutora)

5 Sons intraduzíveis, que não compõem palavras em francês. (Nota da tradutora)

6 Ver o quadro resumido no final do artigo



Referências bibliográficas
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Anne Brun: Especificidades da simbolização nas mediações terapêuticas, a partir da clínica da psicose e dos autismos

Anne Brun: Specificities of symbolization in therapeuthic mediations, based upon work with psychotis and autists

           Como definir a especificidade da simbolização no contexto de grupos terapêuticos com mediação, diferenciando-os dos grupos sem meio específico? É claro que aparecem nos grupos com mediação as mesmas formas de simbolização que aparecem em outros tipos de grupo, com uma pluralidade de transferências, transferência sobre o enquadre, sobre os clínicos e sobre o grupo, mas a especificidade da simbolização nas mediações terapêuticas deriva de um trabalho com a materialidade do meio que coloca em jogo uma associatividade sensório-motora, e mobiliza as formas primárias de simbolização.

            Nos grupos terapêuticos com mediação, a função primeira do meio é principalmente a de ser um atrator sensorial, que permite a transferência de experiências primitivas sobre o objeto mediador porque ele reatualiza experiências arcaicas muitas catastróficas, que se relacionam com os estados do corpo e com as sensações. No enquadre de terapia mediatizada, o objeto mediador funciona assim com um verdadeiro atrator para a simbolização, cada meio privilegiando um modo de relação particular com a sensorialidade, de acordo com suas qualidades tácteis, visuais, olfativas, o que determinará o processo transferencial. Parece indispensável perguntar-se quais componentes sensório-perceptivo-motores do objeto mediador os pacientes utilizaram, e em qual momento do processo terapêutico: uma parte do trabalho do terapeuta consiste justamente em observar com atenção a mobilização da sensório-motricidade do paciente, criança ou adulto, ou do grupo de pacientes, em sua relação com o meio maleável, para poder posteriormente se interrogar sobre o que pode ser simbolizado, graças a uma ou outra qualidade simbolígena própria da materialidade do objeto mediador.

            Em perspectiva histórica, a prática das mediações desenvolveu-se inicialmente na psicoterapia psicanalítica de crianças e das psicoses, com a constatação da insuficiência radical dos dispositivos clássicos, fundados sobre a linguagem verbal. Foi o impasse no qual se encontraram os terapeutas para tratar dessas clínicas que motivou o recurso às mediações terapêuticas. As mediações terapêuticas mostram-se atualmente particularmente apropriadas para tratar as clínicas das patologias do narcisismo e da identidade, clínicas relevando de "situações limites e extremas da subjetividade", segundo uma formulação de R. Roussillon. No livro Manuel des médiations thérapeutiques (Brun, Chouvier, Roussillon, 2013) nós tentamos construir uma teoria geral da mediação e de seu lugar nos processos de simbolização, e nossa questão foi a de saber se seria possível propor uma metapsicologia da mediação e do meio maleável.

           Uma segunda questão fundamental é a de saber se as mediações terapêuticas, como a pintura, a argila, a modelagem, o teatro, o conto, a música, os fantoches, podem ser consideradas como outros terrenos de encontro analítico, para além do dispositivo analítico padrão. Quais são os princípios organizadores de um dispositivo com mediação referido à teoria psicanalítica? De modo geral, os dois fundamentos da psicoterapia psicanalítica são a associatividade e a transferência.  Os dispositivos com mediação relevam, portanto, da psicoterapia psicanalítica e não do que habitualmente se designa como arte-terapia, quando eles estão fundados sobre essa consideração da transferência e da associatividade, base do método analítico.

 

O meio maleável

            Uma das particularidades dos dispositivos de mediação terapêutica consiste na transferência sobre o meio maleável, conceito introduzido por M. Milner em 1950. O meio maleável designa ao mesmo tempo o material, a matéria em sua concretude, e o terapeuta que apresenta o meio. M. Milner acrescenta que o meio maleável representa mais amplamente o conjunto da sala de jogo como superfície de interposição. Qual será então a especificidade da transferência nesses dispositivos com mediação referidos à psicoterapia psicanalítica? Trata-se inicialmente de uma transferência sobre a materialidade do meio que vai se tornar então uma "matéria a simbolizar", mas o meio maleável remete também a uma transferência sobre o enquadre, e, de modo indissociável, a uma transferência sobre os terapeutas e o grupo dos outros pacientes. O objeto mediador não é, portanto, terapêutico em si, isso depende da instalação de um enquadre e de um dispositivo. A transferência é multifocal, ela se apresenta fundamentalmente como uma "constelação transferencial" (Freud, 1938): transferência sobre o meio maleável, ao mesmo tempo objeto mediador e clínico, transferência sobre o enquadre, transferência sobre o grupo.  

            A transferência é inseparável da associatividade. Como se identifica um processo associativo no enquadre das mediações terapêuticas? Observa-se habitualmente as associações do paciente em ligação com sua produção, assim como as cadeias associativas grupais conceitualizadas por René Kaës (1994), no contexto de um grupo. Mas é também uma forma de "associatividade" não verbal que se desenvolve com o meio, uma associatividade ligada ao gesto, à sucessão das sequencias, ao encadeamento das formas e às deformações que o sujeito imprime ao meio.

            O clínico ficará atento à gestualidade dos pacientes, principalmente daqueles sofrendo de patologias pesadas, atento às suas mímicas, às suas posturas corporais, à toda a dinâmica mimo-gesto-postural, mas também à escolha que farão de um ou outro instrumento para trabalhar o meio, de um ou outro material, de uma ou outra técnica. O clínico se concentra muito frequentemente sobre a produção final. No entanto, é essencial seguir muito atentamente todo o processo de produção em si, a integralidade do jogo com as diversas propriedades sensoriais do meio. Trata-se de identificar a maneira como se encadeia ao longo do tempo toda essa dinâmica sensório-motora para cada paciente e para o grupo, como se associam por exemplo um deslocamento na sala, uma atividade motora, uma mímica, uma técnica pictural, uma escolha de instrumento específica, ou qualquer outra forma de expressão.

            O ponto de partida é o encontro com a sensorialidade de meio, com uma matéria a ser manipulada e a função do meio será então a de funcionar como um atrator sensorial, que permite a transferência de experiências primitivas sobre o objeto mediador, porque o meio reatualiza experiências arcaicas frequentemente catastróficas, que dizem respeito a estados do corpo e a sensações. O fio vermelho desse artigo1 será que os dispositivos com mediação, tendo como referência a psicoterapia psicanalítica, permitem engajar processos de simbolização específicos, por essa mobilização da sensório-motricidade dos pacientes na confrontação a um meio sensorial, como a pintura, a massa de modelar, a colagem, a música.

            Constata-se que os pacientes, principalmente os pacientes psicóticos ou autistas, contam sua história por meio de sua gestualidade e de seu trabalho com o meio, contam sua vida psíquica, seus terrores primitivos, vividos muitas vezes antes da linguagem verbal. Por outro lado, a transferência sobre o meio maleável, no duplo sentido do material e do terapeuta, remete à transferência da relação primeira da criança com o seu objeto.

            Uma nova questão se apresenta então: como podemos avaliar o processo de emergência da dessimbolização, e como é possível dar conta dos progressos dos pacientes sofrendo de patologias pesadas, a ponto de serem considerados pacientes "crônicos"? Em outras palavras, como identificar as modalidades possíveis de emergência de processos de simbolização indo no sentido de uma apropriação subjetiva nesses pacientes em falta de subjetivação?  Esse artigo visará então também propor uma metodologia clínica das modalidades de avaliação do tratamento de patologias pesadas nos dispositivos grupais com mediação. A partir da clínica de um grupo de pacientes considerados crônicos, jovens adultos psicóticos e autistas, tratar-se-á de construir ao fio do grupo, no enquadre da mediação pictural, uma metodologia de avaliação qualitativa para descrever os processos em jogo e poder assim transmiti-los a outros clínicos 2.

            Esse artigo visa mostrar como o trabalho terapêutico no contexto de grupos de mediação pode fazer evoluir a capacidade de reflexividade de pacientes adultos considerados psicóticos ou autistas confirmados: sabemos que uma falha na reflexividade caracteriza as patologias psicóticas e autísticas. Do ângulo das ciências cognitivistas, a falha de constituição de uma "teoria do espírito", que designa a representação de uma atividade de pensamento no outro, portanto em si próprio, e supõe uma capacidade de fingir, foi justamente descrita como a principal característica dos autismos. Mas bem antes da conceitualização da teoria do espírito, J.L.Donnet e A. Green (1973,p. 214) já tinham sublinhado a falha da reflexividade na psicose, notando que "o psicótico não sofre de "pensamentos" mas do "pensador", e que a "psicose reside muito menos nos pensamentos que o psicótico nos dá a conhecer que no pensamento que os pensa" (ibid. p. 230).  Os trabalhos atuais sobre o bebê têm também mostrado que as contingências da reflexividade dependem da instalação de cadeias reflexivas entre o bebê e seu ambiente e da atuação da função espelho dos primeiros objetos. Nessa perspectiva, R.Roussillon definiu a reflexividade como a capacidade de se ver, de se escutar e de se sentir (R.Roussillon, 2008).

         Eu avançarei a hipótese de que os dispositivos com mediação permitem aos pacientes com problemáticas psicóticas ou autistas figurarem a dessimbolização que os tolhe, o que permite aos clínicos compreenderem o sentido dela e inventarem diferentes formas de resposta. A partir dessas cadeias reflexivas entre os pacientes e os clínicos engajam-se processos de emergência das primeiras formas de simbolização. Finalmente, ao longo do trabalho terapêutico, instauram-se novas formas de reflexividade.

 

Clínica grupal de adultos

         Essa clínica nasceu de um grupo terapêutico de pesquisa, criado no contexto de um centro hospitalar psiquiátrico3 com pacientes adultos considerados crônicos, tendo o duplo objetivo de ver se uma evolução seria possível graças a um grupo terapêutico com mediação, e também para definir com precisão os critérios de avaliação colocando em evidência os processos ocorrendo durante a terapia.

        O grupo é conduzido por três terapeutas, todos eles psicólogos pesquisadores preparando doutorado. De minha parte, eu asseguro uma intervisão com esses três clínicos-pesquisadores, duas vezes por mês aproximadamente. Dois dos psicólogos conduzem o grupo, e um terceiro é o observador escritor: a função desse observador escritor é a de registrar especialmente a linguagem do corpo e do ato, a associatividade sensório-motora e ele pode também às vezes estabelecer algumas interações específicas com os pacientes, sem, no entanto, sair de sua função de escrita.

         O grupo de mediação pictural acontece nos locais do hospital, uma vez por semana, os pacientes chegam em taxi de suas residências assistidas ou acompanhados por cuidadores, para aqueles que estão hospitalizados. Esse grupo terapêutico é composto por quatro pacientes sofrendo de patologias muito pesadas, psicoses graves com uma vertente autistica ou autismos típicos: dois pacientes não têm linguagem, dois outros têm acesso à linguagem verbal. Iremos descrever um paciente sem linguagem, Jori, e nós evocaremos também uma paciente capaz de falar, Melanie, com 19 anos no início do grupo terapêutico,  apresentada com o diagnóstico de uma antiga psicose infantil com traços autísticos.

 

Apresentação dos pacientes

           Melanie tem 19 anos no início do grupo terapêutico, ela é apresentada com o diagnóstico de uma antiga psicose infantil com traços autisticos. Ela vive em uma unidade hospitalar no início do grupo, e depois de um ano de grupo, conseguirá ir morar em uma residência protegida. Ela fala um pouco, fala de si designando-se na terceira pessoa, e sabe ler. Quando o grupo começa, ela se auto-mutila, se balança, grita frequentemente, e se cola no chão. Os terapeutas que a acompanham evocam os problemas ligados aos períodos menstruais, porque as vezes ela expõe seus absorventes e se lambuza com o sangue. Ela ficou em guarda familiar com seus avós a partir dos três anos, em razão de maus tratos de seus pais. Sabe-se que ela chorou muito sozinha em seu berço.

           Joris, com 24 anos no início do grupo, mora em uma residência para autistas. Ele tem um físico atlético com traços faciais muito finos, parece uma estátua grega, e é percebido por seus terapeutas como "uma beleza fascinante". Se alguém fica muito perto dele, ele pode começar a se auto-mutilar beliscando-se e se coçando, e muitas vezes ele apresenta cascas ensanguentadas na cabeça e nas pernas. Frequentemente ele assume uma pose, muitas vezes em espelho com uma das pessoas presentes, ele para e olha fixamente para o outro. Ele só fala com ecolalias de sílabas e cantarolando.

           O processo terapêutico será decomposto em três fases, a primeira com o surgimento de figuras da destrutividade dos pacientes, ou dito de outra forma, com figuras da dessimbolização, o que permite aos clínicos perceberem seus sentidos e inventarem diferentes formas de "respostas" aos pacientes. A partir dessas cadeias reflexivas que se compõem entre os pacientes e os clínicos, engajam-se processos de emergência de primeiras formas de simbolização.  Por fim, nota-se a instauração de formas novas de reflexividade, ao longo do trabalho terapêutico (ver quadro).

 

Fase 1. FIGURAS DE DESTRUTIVIDADE ou FIGURAS DA DESIMBOLIZAÇÃO

Na primeira sessão, um paciente diz que quer pintar o mar, e todos fazem o azul, o mar.

 

Melanie pinta uma praia de areia amarela com pincel, com o azul do mar, depois ela escolhe um rolo, que ela molha seguidamente com água e não com tinta. Ela quer continuar a praia de areia, mais quanto mais ela aumenta a praia, mais o amarelo fica claro e cheio de água. Ela parece horrorizada e capturada por essa diluição e por esse apagamento inexorável, mas não consegue parar esse movimento, e ela geme de modo sofrido: "ah, não, ah, não".

 

Para Joris, encontrar o meio consiste em colocar o pincel na boca. Os clínicos precisam pedir várias vezes a Joris que ele se sente e comece a pintar, ele sobrepõe então sua folha sobre aquela do seu vizinho, pinta em azul como ele, em um movimento de identificação adesiva. Ele alterna os momentos de pintura com momentos nos quais ele cantarola palavras dificilmente compreensíveis, mas a palavra "mamilo, chupeta"4, pode ser reconhecida porque ele pega tubos de tinta guache e os leva à boca como uma chupeta. Ele se afunda também no mole de uma espuma para a pintura, e toca delicadamente a folha de pintura, com jubilação.

A pintura nessa primeira sessão é muito líquida e sem forma.               

Ele pinta cantando e dançando, com uma batida bem rápida, estilo rap (beat box). "Héé pein, té néhing, téhing néhing. Hendada, ndaha ndaha. Doho doho"5. Na hora de ir lavar o material, ele fica fixado no lavabo, lavando os pelos do pincel. Ele acaricia com júbilo o cabo duro do pincel, depois lentamente as sedas dos pelos, depois o som feito com sua voz para subitamente quando seus dedos deixam o pincel.

Imediatamente aparece nessa sessão a evidência de que os pacientes representam precisamente em suas abordagens do meio os processos de dessimbolização que os animam e assim dão a eles uma figuração.

 

Transferência sobre o meio. Matéria pictural e associatividade formal.

       Melanie figura assim a catástrofe do apagamento, com a diluição da cor em uma liquefação que invade tudo. Ela geme "aaahh, não", mas organiza ela própria a dissolução da espessura e da consistência do amarelo, mergulhando sem parar seu rolo na água, e não na pintura que está à sua disposição. Percebe-se aí um processo frequentemente em ação no início do trabalho com pacientes psicóticos e autistas, um apagamento, uma dissolução, uma liquefação da folha, que corresponde a uma primeira formulação de agonias primitivas, que parecem se repetir sem fim nessa atividade pictural.

       Os pacientes transferem sobre o meio seus modos de relação primitivos com o objeto. Melanie nos apresenta a figuração de um objeto que perde sua consistência, sua presença, quando ela o toca: seu toque leva a uma destruição irreversível da cor e da forma. Com o apagamento, a dissolução, a liquefação da folha, ela revela a presença de agonias primitivas (Winnicott, 1974), mas ela as transpõe sobre o meio em sua materialidade, ela faz viver de certa forma ao material o terror primitivo. Ela não sofre mais passivamente o apagamento, ou o terror de uma aniquilação, ela a inflige ativamente à folha de papel e isso lhe permite um primeiro domínio sobre as vivências agonísticas: a figuração desses "terrores dissecantes" primitivos (Winnicott, ibid.) é possível na medida em que se trata não de repeti-la  de modo idêntico mas de transpô-la sobre o meio. Trata-se de uma inversão passivo/ativo que constitui na maior parte do tempo a primeira forma de simbolização para os autistas. Esse processo indica a origem desta dessimbolização, isto é, uma defesa contra as agonias primitivas: dessimbolizar para não ter que senti-las ou representa-las.

        A primeira etapa do processo de simbolização consiste, portanto, em fazer advir uma figuração da dessimbolização.

       A sensorialidade do material permite a transferência de experiencias primitivas sobre o objeto mediador e engata um processo de reatualização de experiências arcaicas frequentemente catastróficas, que se referem aos estados do corpo e às sensações. Para pacientes apresentando problemáticas de patologias pesadas, com dificuldades centrais para aceder aos processos de simbolização, as sensações produzidas pela materialidade do meio reativam, com efeito, sob a forma de sensações alucinadas, as experiencias corporais e psíquicas impensáveis, os vividos originários, como as angústias primitivas evocadas por M. Klein, os terrores sem nome de Bion, ou as experiencias de agonia primitiva descritas por Winnicott (1974), ou seja, os terrores extremos, sem fim e sem limites, que são tais que o sujeito se retira dessa experiencia de morte psíquica, para poder sobreviver: essas experiencias primitivas catastróficas nunca puderam ser representadas porque elas não foram, de certa forma, realmente sentidas pelo sujeito.

      Mas as sensações alucinadas ligadas com a memória de experiencias arcaicas traumáticas não reatualizam a experiencia traumática de modo idêntico porque no encontro com o meio maleável, o trauma aparece transposto em figuração pelo processo criador: as mediações terapêuticas permitem de uma certa forma um retorno não traumático dos traumas. Assiste-se a uma possível apresentação dessas sensações alucinadas em formas primárias de simbolização ou proto-representações. (Brun, 2009,2013).

      É então a percepção na realidade das sensações produzida pela materialidade do mediador, por exemplo, o estado líquido, ou o arrancamento da folha, que ativam um processo alucinatório no paciente, e, reciprocamente, o paciente expressa no material suas próprias sensações alucinadas, "sempre já presentes", porque ligadas a experiencias anteriores: o paciente vai associar suas próprias sensações alucinadas àquelas dadas pelo mediador no aqui e agora da oficina. Essas sensações alucinadas vão tomar forma no objeto mediador e tornar-se assim figuráveis e transformáveis.

     Em definitivo, o meio sensorial mobiliza uma memória perceptiva evocada por S. Freud: em Construções em análise (1937) ele descreve o retorno alucinatório possível na cura de um "visto ou ouvido numa época precedendo o aparecimento da linguagem verbal", a volta de um visto ou ouvido na primeira infância, de um não integrado na subjetividade. Pode-se tratar também de um "sentido". Em 1937 a alucinação não é mais a realização de um desejo, mas ela se revela constituída por elementos sensório-afetivos não simbolizados. O meio sensorial reativa esses traços perceptivos primitivos. Uma das principais apostas das mediações terapêuticas nessas clínicas consiste, portanto, em poder dessa forma fazer advir a uma figuração experiencias primitivas não simbolizadas, do registro sensório-afetivo-motor.

       Para Joris, por seu lado, não se trata da figuração de uma agonia primitiva, mas de uma ligação de êxtase sensorial com o meio, frequentemente encontrada em autistas graves. De modo geral, as produções dos pacientes e autistas não remetem a formas representativas em imagem, com um conteúdo figurativo: o que marca a pintura deles é a expressão de traços não diretamente figurativos, mas sim sensoriais, afetivos e motores.

       No nível grupal, percebe-se já nesta primeira sessão alguns esboços de simbolização, que fazem pensar em uma irreversibilidade da destruição da forma, que poderia se exprimir da seguinte maneira: "Isso se dilui e se apaga", "Isso se dissolve", "Isso se afoga", "Um corpo líquido escorre", "Isso escorre sem parar", "Um corpo se liquidifica", "Isso se liquidifica sem parar"... "Isso parte e não volta" ou "Traços sem retorno", "Isso se deforma e se destrói".

       São vivências sem sujeito, são impressões corporais, que se impõem sob a forma de uma vivência alucinatória e correspondem a uma sensação de movimento e de transformação. Trata-se então dos significantes formais (Anzieu, 1987, 1990), nos quais a forma é sentida como estrangeira, o que implica uma formulação sem sujeito humano. A ação é sentida pelo sujeito como estrangeira a ele mesmo, e ela acontece sem espectador. Próxima da imagem motora conceitualizada por Sigmund Freud, que a definiu como uma percepção de movimento, como uma imagem sensorial que não corresponde, entretanto, a um movimento na realidade, e remete também a uma sensação de movimento ou de transformação. Anzieu descreve uma configuração do corpo e dos objetos às voltas com uma transformação se dando em um espaço bidimensional. Os significantes formais são constituídos por imagens proprioceptivas, tácteis, cenestésicas, cinestésicas, posturais.

        Finalmente, as primeiras figuras da dessimbolização aparecem como uma transferência dos modos de relação primitivos sobre a matéria pictural e elas tomam a forma de significantes formais, vividos alucinatórios que remetem a experiencias primitivas catastróficas, da ordem da sobrevivência psíquica. Notam-se então as primeiros lineamentos do que eu propus chamar de associatividade formal, correspondendo à hipótese de uma cadeia associativa composta por significantes formais, operando no processo terapêutico, percebida não somente pelo encadeamento das formas ao nível das produções propriamente ditas, sob a forma de traços pré-figurativos, mas também no conjunto da linguagem sensório-motora dos pacientes confrontados com o meio. A especificidade de uma associatividade formal, seja a maneira como se encadeia a produção de formas na ligação com o meio maleável, forma de jogo com as formas sensório-motoras que coloca em ação toda a sensório-motricidade dos pacientes, caracteriza assim os grupos de mediação terapêutica.     

        A primeira etapa do processo de simbolização consiste em figurar a dessimbolização (Roussillon, 1999): os jogos sensoriais com as formas permitem figurar em um primeiro tempo a decomposição da sensorialidade. É uma fase de destruição das formas com processos sem sujeito. A primeira figuração possível dos processos de dessimbolização operando nesses pacientes com uma problemática psicótica se efetua então na linguagem sensório-motora das formas primárias de simbolização (A. Brun, R. Roussillon et al., 2014). Na mediação pictural trata-se finalmente de experimentar a resistência e a consistência do fundo, que remete à prova de resistência e de consistência do objeto. A evolução dos significantes formais ao longo do trabalho terapêutico corresponderá ao processo de constituição do fundo na pintura dos pacientes psicóticos.

       Em trabalhos anteriores (A. Brun 2007, 2013), eu mostrei como o ponto de partida do processo terapêutico, nos dispositivos com mediação referidos à psicoterapia psicanalítica, é o encontro com o meio que iniciará a emergência de formas primárias de simbolização, ligadas com os modos de comunicação primitivos entre o bebê e seu ambiente. O encontro com o meio reatualiza sob a forma de sensações alucinadas as experiencias primitivas, que vão se formatar em proto-representações.

     A clínica dessas primeiras sessões confirma o fato de que o esboço de um processo de simbolização começa pela figuração possível dos processos de dessimbolização que aprisionam os pacientes, e a hipótese específica desenvolvida aqui é que a emergência dessas figuras de dessimbolização passa pela associatividade formal expressa pelos dois pacientes, na mediação pictural mas também de forma mais ampla nas mediações terapêuticas a partir de um meio sensorial. Esta cadeia associativa formal é, portanto, essencialmente composta por significantes formais, sob a forma de traços pré-figurativos.

 

Transferência sobre o enquadre

       Depois da associatividade formal a partir do meio da pintura, a segunda figura da dessimbolização aparece sob a forma de uma transferência sobre o enquadre dos modos de relação primitivos, e principalmente de uma situação extrema. O conceito de transferência sobre o enquadre na psicanálise não foi pensado nem nomeado como tal por Freud, mas ele aparece, no entanto, de modo implícito em sua obra. Esse conceito será introduzido por R. Roussillon em 1977, e desenvolvido em 1995, apoiado principalmente nos trabalhos de Bleger (1967). Esse autor argentino se distancia das posições de M. Klein, segundo a qual a transferência reproduz as relações primitivas com o objeto, afirmando que é "a indiferenciação, mais primitiva ainda, que se repete no enquadre" (ibid. p. 290). Bleger foi o primeiro a introduzir a ideia segundo a qual o enquadre é o depositário das partes mais simbióticas da personalidade, da parte indiferenciada dos laços simbióticos primitivos, elementos arcaicos que vão justamente poder se inscrever no enquadre. R. Roussillon (1995) acrescentará a esta hipótese de um depósito no enquadre das partes mais simbióticas da personalidade, a ideia de que o enquadre parece concretizar o não-simbolizado, o não-simbolizável: ele é a condição/pré-condição da simbolização, mas não é ele mesmo simbolizável. A especificidade do que se transfere sobre o enquadre é a pré-história/história da simbolização da simbolização, dito de outro modo, a relação transferencial ao enquadre reflete as pré-condições e a pré-história da representação.

         Como Melanie utilizou o enquadre para figurar o não simbolizável de sua história, mas também para começar o esboço de sua representação?

       A partir da sessão 5, os pacientes descobriram que a terapeuta está grávida. Em Melanie alternam-se um olhar sombrio para o ventre, acompanhado da seguinte exclamação "não, não o bebê, não" com uma espécie de jubilação associada à ideia de bebê. Ela repete "ele está com raiva, o bebê". Um esboço de fantasmática grupal aparece nas sessões seguintes, em especial com um paciente que vai pintar de maneira repetida a coleira de um dálmata, pensamos, é claro nos 101 dálmatas, e nesse grupo ventre pleno de bebês. Melanie faz-se de bebê, recusa por exemplo ir buscar o material e diz aos terapeutas: "boneco", imitando um boneco desarticulado, sem tônus muscular. Carregada por essa dinâmica grupal, ela efetua sua primeira representação humana, ela dá a mão à sua avó.

 

É a evocação da relação mãe/bebê que a conduz à primeira figuração de personagens humanos e da relação mãe/filha.

Na sessão seguinte, o bebê está em pauta, ela se coça na região do seu sexo e do ânus, e vai por muito tempo ao banheiro. Os terapeutas têm a ideia de que ela foi ao banheiro para retirar as fezes do seu ânus, uma espécie de figuração do nascimento anal, que não se manifesta no nível da fantasia, mas no nível do agir corporal.

Depois tudo parece se desconstruir, as sessões sendo invadidas cada vez mais pelos berros de Melanie, principalmente por ocasião da partida três meses depois da psicóloga grávida. Isso vai se tornar progressivamente inviável, insuportável. Ela lança um fluxo de gritos estridentes e intermináveis, e ela salta, bate violentamente seus pés no chão, mostra seu ventre, especialmente no momento da menstruação, não para de dar chutes em uma porta que ela tenta arrebentar, quebra objetos...

E principalmente, Melanie descobre que ela pode acionar um botão de alarme, o que desencadeia a chegada de muitos profissionais do hospital, e ela consegue fazer isso várias vezes: ela festeja quando é bem-sucedida em apertar o botão e fazer todos chegarem: "ela está sozinha... ela faz birra... ela aperta o botão de alarme... isso faz barulho... os reforços chegam, eles não gostam... eles gritam muito alto..."

       A transferência sobre o enquadre consiste aqui na organização progressiva de uma situação-limite (R. Roussillon, 1991), cuja descrição clínica acima retraça as etapas principais. Essas situações limites que nesse caso ameaçam fazer explodir o enquadre terapêutico organizam-se para Melanie em torno da sirene de alarme, das quebras e dos gritos. Trata-se então paradoxalmente de um processo positivo, mesmo se esta situação coloca os terapeutas em dificuldade, porque ela significa que Melanie pode projetar uma parte de sua problemática sobre o enquadre terapêutico, o que permite não só coloca-la em cena, mas também, como veremos, permite organizar modos de resposta que poderão ter um efeito de mudança para a paciente. Esta situação extrema tenta representar os terrores violentos, a urgência de um pedido de socorro, mas também seu terror de que tudo seja quebrado e/ou que ela tenha quebrado tudo. Melanie imita também o bebê, identificada com o bebê da psicóloga, mas ela expressa também de alguma forma sua raiva contra o bebê, e também sua própria raiva de bebê, sua raiva destrutiva. Na vertente positiva, o laço mãe/bebê no centro da dinâmica grupal, apoiada pela presença dos clínicos, permite a ela esboçar uma representação de seu laço com sua "avó".

      Esses processos perceptíveis de transferência de Melanie sobre o enquadre representam indicadores preciosos de sua problemática, em ligação com sua história, história de seus laços com o objeto e de suas modalidades primeiras de simbolização, atualizadas por diferentes formas de relato, pela pintura, mas também pelas teatralizações corporais, o ato de coçar seu sexo e seu ânus, a quebradeira, os chutes na porta...

 

Contratransferência dos clínicos: afetos extremos, formas de transferência negativa e compartilhar de experiencias sensório-motoras traumáticas.

        Os processos de dessimbolização manifestam-se também nas vivências contratransferenciais dos clínicos.

        Os terapeutas associam em torno das imagens de fresadora infernal, sobre a vontade deles de amordaçá-la, de segurá-la e jogá-la para fora, de sacudi-la violentamente, de gritar em seus ouvidos até que ela finalmente se cale. O grito dela, que perfura horrivelmente os ouvidos e se mistura com o próprio grito mudo deles, de exasperação, de desespero. Os animadores do grupo se esgotam em estratégias de organização espacial para controla-la, mas eles sofrem com sua assustadora tirania. Também do meu lugar de intervisão, ela me impede de pensar, eu me sinto culpada de ter imposto essa escolha de pacientes gravíssimos, na definição mesma do grupo de pesquisa, e eu me sinto profundamente preocupada em relação à sobrevivência do dispositivo.

       Os afetos dos terapeutas aparecem como afetos extremos e mobilizam fantasias de passagem ao ato violentas contra a paciente. A tentação de exclui-la do grupo é grande, para preservar a existência do grupo. O pensamento encontra-se em estado de sideração, os clínicos já não conseguem mais pensar em outra coisa que não seja escapar a qualquer preço dessa situação insuportável.

       As vivências dos terapeutas nesse contexto remetem menos a afetos e mais a sensações de dor corporal, e a uma espécie de compartilhar em espelho os atos violentos da paciente, sob a forma de fantasias de atos violentos contra ela (segurá-la, jogá-la fora da sala, sacudi-la violentamente, gritar em seus ouvidos...). Trata-se aqui do que poderíamos chamar de formas de contratransferência corporal dos terapeutas, que se veem reduzidos a imaginar respostas em linguagem sensório-motora.  É esse compartilhar experiencias sensório-motoras, próximas de sensações alucinadas, compartilhar de uma forma de imagens motoras, segundo o conceito de Freud (1895), que permite aos clínicos representar-se as experiencias subjetivas traumáticas dos pacientes, que muitas vezes relevam do que Winnicott nomeou como agonias primitivas.

     Nós resistimos tanto quanto possível nos servindo da ideia de que essa situação extrema de dessimbolização busca representar alguma coisa terrificante, e reatualiza uma parte da história da paciente. Pensamos, é claro, num bebê gritando, invadido pela ira destrutiva e o terror de uma destruição total. Tentamos assim dar um sentido aos seus atos destrutivos. Esta busca de sentido permitirá aos clínicos sobreviverem à transferência.

 

Fase 2: RESPOSTAS DOS CLÍNICOS E PROCESSO DE SURGIMENTO DA SIMBOLIZAÇÃO

      Os atos destrutivos da paciente não contem na verdade mensagens esboçadas que seria suficiente decifrar traduzindo-as em linguagem verbal, são mensagens sem mensagens, e é preciso construir progressivamente o sentido delas: a especificidade dessa construção passa pela atenção às modalidades da contratransferência corporal, às vivências sensório-motoras e às imagens motoras suscitadas nos clínicos. Para chegar a descrever as lógicas da linguagem mimo-gesto-postural dos pacientes com distúrbios psicóticos e autisticos, é imperativo partir do registro sensório-motor, tanto do lado das experiencias corporais contratransferenciais do terapeuta, como da escuta da associatividade sensório-motora desses pacientes: trata-se de tentar decifrar mensagens corporais enigmáticas, mensagens sem conteúdo nem sujeito, em espera de tradução.

 

Co-figuração e atribuição de sentido

        Alguns dos comportamentos de Melanie, como por exemplo bater sem parar os pés no chão, aparecem frequentemente nas problemáticas psicóticas ou autistas, e são muitas vezes interpretados como estereótipos desprovidos de sentido; numerosos autores apontam o valor auto-calmante dessas repetições gestuais, frequentemente associadas para os autistas à necessidade de se dar "um sentimento contínuo de existir", por uma gestualidade rítmica.

       Sem negar o valor repetitivo, defensivo, auto-calmante dessas estereotipias gestuais, eu proponho na intervisão abordar toda a mimo-gestualidade dos pacientes como sendo um relato corporal e gestual, e também nos questionar sobre a maneira pela qual esse relato em ato retraça encontros anteriores com o objeto, e os fracassos do vínculo.

       Ao contrário da teorização clássica que interpreta em termos de auto-sensualidade ou de angústias catastróficas, sem nenhuma ligação com o objeto, segundo uma teoria solipsista dos autismos que demonstra uma penetração agida (J.L.Donnet, R. Roussillon), nós tentamos pensar a ligação com o objeto no centro do que aparece muitas vezes como sendo estereótipos desprovidos de sentido.

         Quando a paciente chuta violentamente a porta, deitada no chão, ela não estaria tentando fazer de alguma maneira seu buraco em um objeto porta fechada, objeto duro, sem colo, sem de refúgio, sem espaço de acolhimento?

        As questões colocadas dessa forma vão condicionar as respostas dos clínicos e encadear uma dinâmica intersubjetiva.

        Os terapeutas tentam diversas respostas: quando ela bate violentamente contra a porta, eles dizem com um tom lúdico "toc, toc, toc, quem está aí?" tentando uma sintonização moderadora, transpondo o gesto em som, com uma diminuição da intensidade, ao mesmo tempo em que mostram que seu apelo foi ouvido. Ou eles tentam introduzir uma função reflexiva, teatralizando a raiva de Melanie, por mímicas e pela voz, como os pais podem teatralizar a raiva de seu bebê, refletindo-lhe seu próprio afeto.

        O trabalho terapêutico consiste assim em inicialmente relançar as harmonizações primeiras entre a criança e seus primeiros objetos: toda a clínica da primeira infância mostra efetivamente a importância do compartilhar as sensações corporais entre o bebê e seu ambiente para constituir um fundo sobre o qual se estabelece a possibilidade de uma sintonização emocional: D. Stern (1989) designa como uma coreografia primeira, o ajustamento dos gestos, das mímicas e das posturas entre a criança e o objeto primário. Na clínica dos bebês, o destino das sensorialidades primitivas depende então da resposta do ambiente. É a articulação entre a sensorialidade do bebê e as respostas do ambiente que se encontra na origem da potencialidade de um surgimento das formas primárias de simbolização.

     Como segunda modalidade do trabalho terapêutico nessa última sequência, o recurso à teatralização para relançar um processo de composição do afeto. Esse registro de intervenção dos terapeutas corresponde às descobertas recentes da psicologia do desenvolvimento: os trabalhos de Gergely (2003) mostraram que o bebê toma consciência de suas emoções por ocasião dos gestos teatralizados dos pais, que permitem a ele compreender que seus pais lhe refletem sua própria emoção, que ele pode então identificar e da qual ele pode se apropriar. Esse é o trabalho efetuado pelos clínicos com Melanie.

       O clínico é então confrontado a atos sem endereçamento, aparentemente sem significação, a atos que vão afetá-lo, como vimos, e também a atos que deixam marcas no enquadre terapêutico, como as coisas quebradas. Essas formas de linguagem constituem de fato tentativas de troca e de comunicação com o objeto, como a sequência seguinte vai mostrar.

 

Espacialização: criação de uma tópica da cisão

       Quando ela quebra um objeto, muitas vezes os pequenos potes de pintura, o psicólogo varre primeiro os pedaços, mas a paciente tenta de novo quebrar um outro pote. Constatamos que a única vez em que ela não tentou quebrar um outro pote depois da varredura do primeiro foi numa sessão na qual os terapeutas deixaram os pedaços no chão. Por outro lado, uma vez quando a psicóloga tinha dito que o pote que Melanie tinha acabado de jogar não tinha quebrado, ela imediatamente jogou-o no chão uma segunda vez. Nós formulamos a hipótese de que ela está identificada com o objeto quebrado e que é preciso que os psicólogos reconheçam a quebra para que ela não tenha mais necessidade de quebrar de novo. Uma vez mais, a problemática desses pacientes se exprime primeiro em uma linguagem sensório-motora, tudo se passa como se Melanie representasse aqui uma experiência primitiva, aquela de "ser um bebê quebrado em pedaços". Não se trata então para a paciente de fazer sumir o objeto quebrado, mas, ao contrário, trata-se de expô-lo.

       Eu sugiro então, durante a intervisão, criar uma tópica no espaço mesmo da terapia: quando a paciente quebra um potinho de vidro para a pintura, os terapeutas podem organizar dois espaços diferentes na mesma sala, um lugar no qual se juntam os pedaços quebrados, e um outro lugar no qual se tira o quebrado para empurrá-lo mais longe, em outro espaço. Da mesma forma, organiza-se pouco a pouco um lugar no qual a paciente grita, uma salinha ao lado da oficina, e um lugar, o do grupo terapêutico, no qual não se grita e onde se pinta. Trata-se de encenar por uma espacialização no enquadre terapêutico, uma cisão possível entre uma parte da paciente quebrada e que grita, sua parte psicótica, e uma parte que emerge do autismo.

 

Da décima segunda até a décima sétima sessão, Melanie efetua uma pintura de manchas muito pobres, sem personagens humanos, ele se lambuza as mãos de vermelho falando de sangue: estamos no registro da equação simbólica, a pintura é o sangue. Por outro lado, ela passa de um grito estridente a fazer modulações em torno do grito. Na décima oitava sessão ela se representa em pintura com um balão de pensamento.

 

Assistimos ao surgimento da possibilidade de se representar começando a representar em sua cabeça. É uma etapa de mutação, anunciadora do desenvolvimento da potencialidade reflexiva. O que permite o aparecimento desse espaço de pensamento, materializado pelo balão de pensamento na pintura, parece incontestavelmente ligado às modalidades de intervenção dos terapeutas, que a acompanham com uma ressonância afetiva nos seus atos, sob a forma de um verdadeiro coro emocional.

 

Co-experimentar, coro emocional

        Eis o exemplo de uma sessão de volta das férias, pouco depois na sessão na qual Melanie se representou com um balão de pensamento surgindo de sua cabeça. Ao entrar na sala do grupo, ela escapa dos enfermeiros, se precipita e quebra uma janela com a mão. O psicólogo intervém imediatamente segurando sua mão. Ela se mostra contrariada, recua, depois se balança gemendo, evocando aos clínicos uma cena condensando um coito e choros de bebê. O psicólogo verbaliza em voz alta, na direção dos acompanhantes que ficam mudos, siderados, dizendo a eles que é importante falar com ela e não deixa-la sozinha, e ele descreve tudo o que esse episódio de quebra do vidro faz viver ao grupo. Melanie se acalma e o escuta atentamente, ela deita no chão e geme. O psicólogo tenta ligar a situação com o que a separação das férias pode tê-la feito viver. Ele diz a ela que talvez ela tivesse necessidade de ser um bebê que encontra uma mamãe que se ocupa dele, que cuida dele, o embala, troca sua fralda. Imediatamente Melanie fala com ele de sua "raiva", depois de "Joris", com expressão marcada dessa vez de tristeza. Ela lhe mostra seu ventre, depois sua cabeça: ele se lembra de sua última pintura com um personagem que pensa no interior de uma bolha, e diz a ela que há talvez pensamentos que fazem coisas no seu ventre. Ela sacode ativamente a cabeça em sinal de concordância, depois mostra a ele seu pulso que sangrou depois de ter penetrado violentamente o vidro. Em seguida ela representa a cena da janela quebrada. O psicólogo disse depois na intervisão ter sido invadido por imagens de um quarto sórdido e escuro, no qual um bebê berra e desaparece, enquanto uma mãe fantasmagórica e cadavérica está caída no chão, com um braço dependurado.

 

Algumas sessões depois ela se representa pela primeira vez apertando o botão do alarme.

Os terapeutas aqui criaram uma espécie de coro emocional, com uma co-experiência, e a paciente em seguida pode retomar por sua conta e encenar sua atuação destrutiva: ela pode aceder ao faz-de-conta. Ela representa a cena de maneira mimo-gestual, e aparece aqui uma "figuração cênica", com o visto compartilhado, segundo a expressão de P. Aulagnier (1986), e esse processo sinaliza a possibilidade de fazer de conta, conquista imensa para uma problemática com uma vertente autistica. A figuração cênica passa depois para a representação pictural.

 

Das figuras da dessimbolização à emergência da simbolização

          A partir do caso de Melanie, é possível modelizar os processos que permitem aos pacientes com problemáticas psicóticas, ou mesmo autisticas, acederem a potencialidades simbolizantes[1]. De maneira geral, o paciente sai da não-simbolização pela organização de uma situação extrema que coloca em risco o enquadre e o tratamento. A sobrevivência do enquadre e dos clínicos depende da co-criação de respostas específicas a esses diferentes tipos de situações-limite.

          Do lado dos afetos, o coro emocional; passa-se de um desregramento extremo e solipsista, graças principalmente à sintonizações moderadoras, a uma experiencia partilhada, sentida por todos. No que diz respeito ao vivido no campo contratransferencial, trata-se para os psicólogos de sobreviver aos violentos ataques de ódio, ao sentimento de não existência, à glaciação e à sideração: a reanimação é muitas vezes apontada pelo surgimento de imagens quase alucinatórias, como aquela do bebê berrando com o cadáver da mãe. É a capacidade de figuração dos clínicos, sob uma forma alucinatória, e a encenação de tais imagens no contexto da intervisão, que permitem de um lado aos terapeutas "sobreviverem", e, de outro lado, aos pacientes, iniciarem uma cenarização.

         Como essa segunda fase do grupo traduziu-se para Joris?

 

Jogos de teatralização e de transposições sensoriais

       Do lado dos clínicos, o trabalho terapêutico consiste inicialmente em relançar as sintonizações primeiras entre a criança e seus primeiros objetos (D.Stern.1989), sintonizações que permitem ao bebê aceder às primeiras formas de simbolização, a partir de um compartilhar de sensações corporais; essa coreografia primeira, o ajustamento dos gestos, das mímicas e das posturas entre a criança e o objeto primário, constitui o fundo sobre o qual se estabelece a possibilidade de uma sintonização emocional: na clínica da primeira infância, as sensorialidades primitivas tornam-se então mensageiras, em ligação com a resposta do ambiente. Os jogos de teatralização propostos pelos terapeutas se efetuam frequentemente a partir de transposições sensoriais de um registro sensorial a outro, o que é uma forma típica das harmonizações.

       Nessa perspectiva, enquanto os clínicos tentam desde o início do grupo responder à destrutividade dos pacientes por meio de teatralizações e transposições sensoriais, por exemplo passando do registro sonoro ao registro do movimento, ou inversamente, do movimento ao sonoro por uma vocalização dos gestos gráficos, Joris começa ele mesmo a fazer essas transposições sensoriais.

      Diferentemente de Melanie, Joris efetua uma pintura não representativa, multissensorial; vários indicadores de simbolização são perceptíveis a partir da evolução das formas e de sua relação com o material pictural. Na 23ª sessão anuncia-se uma etapa de mutação na pintura de Joris, que inclui em sua figuração pictural traços dos laços que ele começa a engajar no grupo.

 

Ele saltita e cantarola, girando em volta de um círculo formado com cadeiras, depois ele cantarola e dança com a folha de papel. Ele salta e revira-se sobre a mesa, parece desafiar o peso; seu canto e seus gritinhos acompanham a rítmica de seus passos de dança.

Então, pela primeira vez, ele não representa traços sem volta, mas ele materializa um contorno. Ele efetua traços rítmicos e pontilhados, que denotam segundo G. Haag (1995) uma referência possível ao objeto. Ele associa sua gestualidade, seu saltitar, ao seu canto ritmado e à ritmicidade do pontilhado. Ele faz também uma ciranda rítmica com as palavras do grupo.

     O que vai confirmar essa hipótese da simbolização em sua pintura de elementos do enquadre/dispositivo e de sua ligação com o grupo, é o fato dele se mostrar cada vez mais fascinado pelo eco, pelo salto... do pincel, da espuma, salto que ele faz acontecer crescendo ou decrescendo. Ele transpõe o efeito do salto do vocal ao pictural. Ele retoma com um atraso os gritos de Melanie, mas começando mais baixo, depois vai decrescendo, como um eco que se perderia. Além disso, Joris retoma no seu canto a primeira sílaba de uma palavra dita por um outro, é uma maneira de entrar na cadeia associativa grupal (R. Kaës, 1993) pelo sonoro.

      Esses processos dão conta da ativação de um modo de simbolização por transmodalidade sensorial: Joris estabelece assim as ligações entre as diferentes modalidades sensoriais, com o respaldo do grupo, usando principalmente uma transposição sensorial do vocal e do mimo-gestual ao pictural. 

 

Contratransferência dos clínicos e significantes formais compartilhados

           Essa evolução da associatividade formal se efetua em ligação com as respostas dos clínicos, caracterizadas por afetos extremos, formas de transferência negativa, e um compartilhar de experiências sensório-motoras traumáticas. Uma atenção especial é requisitada para detectar e interpretar as respostas tônicas, muitas vezes inconscientes, dos terapeutas. As projeções identificatórias, características da vivência contratransferencial provocada pela confrontação com pacientes psicóticos, tocam aqui o terapeuta em sua própria corporeidade, e remetem às vivências corporais dos pacientes, e à identificação de ecos entre as experiências corporais dos pacientes e aquelas dos terapeutas. É esse compartilhar de experiencias sensório-motoras, próximas de sensações alucinadas, que eu propus chamar significantes formais compartilhados. Essas formas de contratransferência corporal dos terapeutas permitem aos clínicos operar a representação das experiencias subjetivas traumáticas dos pacientes, e contribuem para a figuração delas dentro do espaço do grupo.

 

Evolução da associatividade formal: da irreversibilidade e da destruição da forma à reversibilidade da transformação.

 

       Joris, a partir da vigésima sessão, pinta sempre uma forma de casca grossa mole-frágil-ensanguentada. Até então, as formas que ele justapunha sobre a primeira camada diluíam-se inexoravelmente e retornavam ao magma primitivo. Mas ele agora cola a areia à sua pintura, é um material que se mantém sobre um fundo. Isso permite a ele repintar (sempre e somente com o rolo) sobre a areia, que torna-se não mais somente a camada externa granulosa de sua pintura -  que coça e descasca como as partes de sua pele que ele arranca - mas um suporte sobre o qual uma forma pode permanecer. O fundo começa a se constituir, ainda que por enquanto isso faça pensar em pântanos, areias movediças ressecadas... um começo de uma ilha que sai do mar.

        Em Joris então, figura expressiva da evolução do grupo, se podemos propor esse termo, no registro das funções fóricas descritas por Kaës (1976, 1994), a associatividade formal passa dos estados de base de uma matéria não transformável à transformabilidade dos estados da matéria. Os significantes formais evoluem de "isso arranca, isso se esfola" à "casca", "impressionabilidade da matéria", "isso amolece e isso se solidifica", "isso gruda", "isso aglomera", "isso se solidifica, isso seca", "isso se transforma em massa". A produção pictural evolui de um magma de matéria à uma diferenciação das texturas, de significantes formais do tipo "um corpo líquido escorre" a "isso se solidifica, isso seca, casca, isso se aglomera, isso se aglutina, isso se transforma em massa". Em seguida, uma diferenciação das texturas e das cores se fará pouco a pouco.

 

Técnica da ecoar pelo meio e por uma outra modalidade sensorial

         Na sessão 26 o psicólogo nota que se ele chega perto de Joris, esse paciente se coça e pinica a perna e o braço, e até a testa. Ele tem a impressão de que suas aproximações bruscas lhe fazem experimentar uma intrusão corporal, como um espinho ou uma farpa sob a pele, que ele tenta ejetar pelo pinçar e pela coceira. Pouco a pouco, o psicólogo é aceito mais perto por um tempo curto, de certa forma como um visitante. Para abordá-lo, o psicólogo escolhe então uma modalidade sensorial privilegiada, a aérea, ele ritma e assopra sobre os grãos de areia. Sem intrusão, ele materializa o impacto bem leve do clínico sobre o meio, que é então partilhado. A resposta passa pelo meio, pela invenção e transposição de uma modalidade sensorial privilegiada, a aérea, para evitar ser percebido como um espinho irritante na pele. Ele ritma e sopra sobre os grãos de areia como dando vida à folha, materializando o impacto muito leve do clínico sobre o meio que é então compartilhado.

        Esse exemplo mostra como as respostas dos clínicos, a partir principalmente dos significantes formais compartilhados, permitem aos pacientes do grupo acederem à figuração das marcas perceptivas de vividos arcaicos, graças à transformação deles em formas primárias de simbolização (A. Brun, 2014).

 

Joris começa então a realizar uma série de pinturas com o rolo de modo essencialmente vibratório, materializando as vibrações de um vínculo reencontrado com o objeto.

 

Fase 3: FIGURAS DE REFLEXIVIDADE

          O que permite a emergência da potencialidade reflexiva, no sentido da possibilidade "de se ver, de se escutar, de se sentir", segundo uma formulação de R. Roussillon, parece incontestavelmente estar ligado nessa clínica grupal às modalidades de intervenção dos terapeutas. Notamos anteriormente na pintura de Melanie uma etapa da mutação, anunciadora do desenvolvimento da potencialidade reflexiva, ou seja, a emergência da possibilidade de se representar no processo de representar dentro da cabeça, com o espaço do pensamento materializado por uma bolha, no desenho. Assistimos depois progressivamente um processo pictural de constituição do duplo, na pintura de Melanie.

 

Auto-representação e figuração do duplo

            Pelas produções picturais de Melanie nós observaremos assim uma passagem pela dinâmica do duplo, por uma representação em duplo antes da figuração de três personagens, e posteriormente do grupo inteiro. É a passagem pela ligação em duplo, correspondente da reconstituição do laço primordial com o objeto, que permite o acesso à figuração de cenas com muitos.

 

Na 28ª sessão, Melanie fala de casa e diz de maneira um pouco confusa que ela não poderia mais ir para casa se ela fosse desagradável e gritasse, e também que ela estava cansada. Sobre a pintura, ela se pintou em duplo, e acrescenta uma casa (com duas janelas, uma porta, e um longo telhado sob o qual parece estar refugiado um personagem). O psicólogo pergunta a ela o que são os pontinhos, e depois de alguns segundos de perplexidade, ela responde: "É na sua cabeça!". Os psicólogos compreendem que se trata de uma bolha de história em quadrinhos.

Essa pintura corresponde ao momento em que seus gritos diminuem. Ela pode figurar a casa de sua família da qual ela não seria excluída, ao mesmo tempo em que ela pode figurar um espaço de pensamento casa/grupo/refúgio.

 

Na sessão que se seguiu à figuração miniatura da casa de sua família, Melanie pinta um outro paciente, que ela nomeia, com o qual ela muitas vezes briga, dentro de uma bolha. Em sua pintura isso dá a impressão de uma boneca miniatura que se debate para escapar da mãe onipotente, tirânica. É dela também que se trata, tomada dentro da boca do outro, presa.

 

Melanie descreve uma cena na qual ela teria apertado o botão de alarme (o vermelho em sua pintura), mas os agentes da segurança não teriam vindo e um enfermeiro a teria prendido...

      O botão vermelho do alarme inchou-se desmesuradamente... Na intervisão, as associações se relacionam com um sexo inchado e transbordando de sangue, por causa da relação de Melanie com a menstruação. Os psicólogos relatam também as palavras dos enfermeiros que se queixavam dos dias de menstruação de Melanie porque ela fazia "muitas bobagens com os absorventes".

       Na pintura dela, o enfermeiro parece segurá-la pelas costas. Ao mesmo tempo, aparece aqui como que um desdobramento, com a intrusão de uma espécie de fantasma: esta representação de Melanie evoca um significante formal descrito por D. Anzieu (1987):"um duplo me controla e me persegue"; "um duplo se aproxima e me deixa" (porque eu o represento). A paciente representa ao mesmo tempo a intrusão do objeto, que faz parte quase que do mesmo corpo, e a tomada de distância em relação ao objeto.

 

Tornar-se sujeito no grupo e pelo grupo

 

 

Durante a 56ª sessão, Melanie separa sobre sua pintura um dos personagens do grupo, personagem em negro no interior de um quadro, que a representa porque ela o designa como sendo ela mesma.

       Melanie se representa então pintando o que acontece repetidamente na sessão do grupo de pintura, trata-se de uma representação da representação, típica do acesso a uma posição reflexiva. Ao se representar pintando o conjunto da cena, ela retoma à sua maneira a atividade do psicólogo observador escritor do grupo, do qual ela se aproximou muito. Notamos também que a cada grupo de personagens (há três cenas, três planos diferentes) está associado um retângulo de cor que parece representar uma folha de pintura. Cada um deles pinta (como acontece no grupo de pintura) e é representado, figurado no interior de Melanie.

       Esse quadro evoca de maneira notável o quadro das Meninas, de Vélasquez, que remete também a um jogo de espelho e é composto de maneira idêntica, com a representação do pintor do quadro dentro do quadro.

        É notável que a paciente possa se representar como sujeito de sua representação, no momento mesmo em que ela pode representar o grupo: ela se tornou sujeito dentro do grupo e ela representa como tornar-se sujeito passa pela representação do grupo dentro do sujeito (R. Kaës, 1994).

       Como Joris se inscreveu também nos processos de reflexividade? Depois de três anos de trabalho terapêutico, vão aparecer rostos na pintura de Joris.

 

Essa pintura é o primeiro aparecimento do rosto, no centro, com os olhos e o nariz em azul, e uma espécie de contorno vago marcado pela areia; os terapeutas perplexos se perguntam se eles não estão alucinando esses rostos, mas muitas vezes os primeiros rostos dos pacientes aparecem e desaparecem ao mesmo tempo. Os clínicos propõem então jogos em espelho em torno dos rostos deles, do de Joris e do da pintura, com uma teatralização jubilatória da descoberta dos olhos, do nariz e da boca.

 

É nesse contexto desses jogos em torno do rosto que ele vai pintar quatro cabeças rostos em vermelho, como os quatro pacientes do grupo, primeiro aparecimento nítido de formes humanas. O rosto da direita é riscado e coberto num segundo tempo, com um jogo de destruído/criado característico do aparecimento dos rostos.

 

Duas pinturas se alternam aqui, um rosto sozinho e a representação dos rostos do grupo: o sujeito emerge sobre o fundo grupal com o aparecimento de formas radiais. À esquerda, Joris integra materiais diversos, areia, algodão...

 

Com o tempo, as técnicas de representação dos rostos se modificam.

 

Os primeiros homens aparecem como superposições de rostos. Os dentes são marcadamente representados, o que se acompanha de uma modificação da atitude de Joris no grupo: ele não fica mais numa atitude de retraimento marcado e pode até se defender e atacar, devorar, morder para mostrar que ele não está contente. Até o final do grupo, durante seis meses, Joris efetuará numerosas variações técnicas em torno dessa temática recorrente dos rostos.

 

A última pintura no final do grupo, depois de 3 anos e meio de trabalho terapêutico, guarda o traço de um processo de apagamento dos rostos que acompanha o aparecimento deles.

        Joris teve uma evolução importante segundo a equipe da residência assistida onde ele mora. Ele é agora muito mais capaz de expressar suas emoções, e está mais ligado aos terapeutas e aos outros residentes, mais alegre. Ele começou também a participar das atividades grupais de seu lugar de vida. Por fim, a linguagem começou a aparecer.

       Nessa última fase que nos propomos nomear "posição de figurabilidade" aparecem novas figuras, que muitas vezes não correspondem mais aos significantes formais, porque não nos situamos mais em um espaço bidimensional sem sujeito e os cenários fantasmáticos aparecem. É uma fase que se define pela constituição de um envelope diferenciado, que se distingue muitas vezes pelo significante formal "um limite se interpõe", ou "uma estrutura enquadrante aparece". O Eu torna-se ator e sujeito das transformações, e por fim emergem formas representativas com conteúdo figurativo. Cenários fantasmáticos aparecem, figurados sobre a folha e/ou verbalizados.

      O grupo terapêutico de pesquisa apresentado aqui mostrou como as mediações terapêuticas permitem aos pacientes que sofrem de autismos acederem a processos de apropriação subjetiva, a partir do trabalho com o meio e da ligação deles com o grupo. As experiencias traumáticas arcaicas são reconfiguradas na pintura e dentro da dinâmica grupal, com sua possível integração na trama associativa grupal, principalmente por meio de diferentes formas de jogo, iniciados pelos terapeutas. De modo geral, na clinica dos bebês, as sensorialidades primitivas ecoadas pelo ambiente resultam nas formas primárias de simbolização, senão essa sensorialidade primária pode perder sua virtualidade simbolizante e ficar de certo modo em retiro. Mas essa potencialidade simbolizante pode ser relançada, no contexto das mediações terapêuticas, pela introdução de jogos sensoriais arcaicos, principalmente jogos de transposições sensoriais e da teatralização. Esses jogos com as formas sensório-motoras, que podemos nomear "jogos de associatividade formal", participam então da emergência das formas primárias de simbolização, nas atividades com o material e nas formas de linguagem sensório-motora que lhe são associadas. 

       Trata-se de detectar de modo fino a linguagem sensório-afetivo-motora, que não temos o hábito de perceber. É essa identificação que vai nos incitar a buscar mensagens sensório-afetivo-motoras e a responder a elas. Paradoxalmente, é nossa resposta que fará surgir enquanto mensagens significantes essas mensagens sem mensagem, mensagens sem conteúdo prévio.
 

Conclusão

        O grupo terapêutico de pesquisa apresentado aqui mostrou como as mediações terapêuticas permitem aos pacientes sofrendo de patologias pesadas emergirem de processos de certa forma sem sujeito, para aceder a processos de apropriação subjetiva a partir do trabalho com o meio e da ligação com o grupo. As experiências traumáticas arcaicas são reconfiguradas na pintura e na dinâmica grupal, com sua possível integração na trama associativa grupal, principalmente por meio do jogo, iniciado pelos terapeutas. Vimos como os processos em jogo no grupo de mediação permitem inicialmente uma figuração da destrutividade nas formas que surgem, depois o aparecimento de processos de simbolização em relação com as respostas dos clínicos, para chegar à representação de figuras da reflexividade, uma das questões mais cruciais da problemática autística.

       Na pintura dos pacientes autistas, trata-se frequentemente do surgimento da possibilidade de uma figuração de si pela representação possível dos primeiros rostos ou primeiras figuras humanas. Passa-se do aparecimento de formas primárias de simbolização à possível elaboração de cenários fantasmáticos.

      O quadro reproduzido aqui abaixo visa sintetizar por uma modelização de alcance geral, os processos em jogo no grupo de mediação, permitindo uma passagem da dessimbolização à uma figuração desta dessimbolização, depois à emergência de processos de simbolização ligados às respostas dos clínicos, para chegar finalmente à representação de figuras da reflexividade, uma das questões mais cruciais da problemática psicótica.

 
Mediação pictural: da dessimbolização às figuras de reflexividade
 

 

FIGURAS DA DESSIMBOLIZAÇÃO

RESPOSTAS DOS CLÍNICOS E EMERGÊNCIAS DA SIMBOLIZAÇÃO

FIGURAS DE REFLEXIVIDADE

TRANSFERÊNCIA sobre o MEIO

ASSOCIATIVIDADE FORMAL

Uma pele comum é arrancada

 

Estados de base da matéria não transformável

 

Irreversibilidade e destruição da forma 

Fantasia de pele comum

 

Transformabilidade da matéria

 

 

 Reversibilidade da transformação

 

 

Constituição de um envelope diferenciado

 

Eu ator e sujeito das transformações da “matéria a simbolizar”

 

Formas representativas com conteúdo figurativo

TRANSFERÊNCIA

sobre o ENQUADRE

 

Organização de uma situação limite

Co-criação de uma resposta específica

 

Espacialização: criação de uma tópica da cisão

 

Configuração cênica

 

 Projeção de tópica interna

TRANSFERÊNCIA e CONTRA

TRANSFERÊNCIA

(Grupo)

 

Afetos extremos

Formas de contratransferência negativa

 Coro emocional

 

 Teatralização

 

 Harmonizações: transmodalidade sensorial

 

 Imagens contratransferências quase alucinatórias

 Capacidade de sobrevivência à transferência e de reanimação

 

 Co-fantasmatização

 

 Figuração de cenas


    
    
    
    
 

 


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