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63
Fronteiras e travessias
ano XXXII - Dezembro 2019
201 páginas
capa: Liana Cardoso Soares
  
 

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Resumo
Resenha de Márcio de Freitas Giovannetti. Clínica psicanalítica: testemunha e hospitalidade, São Paulo, Blucher, 2019, 175 p.


Autor(es)
Any Trajber Waisbich? Waisbich?
é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), coordenadora de seminário junto ao Instituto de Psicanálise de São Paulo.

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 LEITURA

Psicanálise implicada [Clínica psicanalítica: testemunha e hospitalidade]

Implied Psychoanalysis
Any Trajber Waisbich? Waisbich?

O que mais chama a atenção ao longo do livro de Marcio de Freitas Giovannetti é que, a cada momento, o autor se repensa, enquanto psicanalista. Por essa razão, seus artigos não apresentam conclusões fáceis. Ousadia de um pensador que, apoiado em autores para além de sua área de conforto, introduz no corpo da teoria psicanalítica a função do analista como testemunho, termo utilizado por Giorgio Agamben para definir esse papel fundamental na historização do sofrimento humano. Mostra que o trabalho evocado por Primo Levi e levado adiante por Agamben é pleno de significado também ao ser considerado em relação ao fazer psicanalítico, ultrapassando fronteiras delimitadas.

Giovannetti nos diz que o analista deve se surpreender ao constatar que a tradição impede o pensamento; com isso, deve procurar sair da área de conforto do já pensado, o que não é tarefa fácil. Área de conforto: o termo por traz de seu pensamento que expressa, por oposição, o desassossego assumido como perspectiva.

O autor dispõe-se a percorrer um território virgem de toda análise, deixando-se levar por aquilo que está vivo no conteúdo das sessões, sem prever seu percurso. Leva-nos a nos perguntarmos até que ponto nossa escuta analítica pode ser inovadora, quando não há sinalizações precedentes. Questiona hábitos sombreados por condutas repetitivas e sustenta a imprevisibilidade em cada ato, que por sua vez corresponde à ideia emblemática do fazer psicanalítico para um pensador que se considera esgotado em relação à prática que não leva a descobertas criativas.

Giovannetti faz referência a psicanalistas cujos escritos, a seu ver, fazem coro à empreitada que propõe e, ao mesmo tempo, discute com eles. Por exemplo, compartilha conosco o seguinte:
 

[...] concordo plenamente com Green, porém, acrescento: somente o espaço da transicionalidade sinalizado por Freud, conceituado só cinquenta nos depois por Winnicott, pela ruptura com o modelo rígido e radical de doença e saúde é que poderá ajudar tanto o analista quanto o paciente a se aproximarem da imensa perplexidade que a experiência da vida nos impõe (p. 44).

 

É verdade que o autor não abre mão das ideias de inconsciente, de transferência, de interpretação, de setting interno do analista e dos sonhos. No entanto, considera que todo o resto pode ser contestado. Além daqueles, também coloca suas concepções a dialogar com o novo e o inusitado, auxiliado por teóricos de outras áreas do conhecimento. Por exemplo, em "Esboço para uma cena primária e para uma cena analítica no início do séc. XX" (p. 25), menciona Jean Baudrillard (p. 27) e Paul Virilio (p. 28) como interlocutores.


Vamos acompanhando no livro a tarefa nada simples do psicanalista, que se depara com leituras viciadas das teorias, inúmeras vezes utilizadas durante pouco mais de um século. Observar o novo no velho é trabalho para especialista em sofrimento humano, e não há nada de diletantismo ao longo das 175 páginas.


Na coletânea de textos, escritos ao longo de uma vida profissional, encontramos artigos que se complementam, numa coerência reflexiva, e outros que mostram novas tomadas de posição. Diríamos que se trata de uma obra de um errante das letras com a curiosidade de cientista, se não percebêssemos o trabalho sendo elaborado com base na construção de prototeorias a respeito de cada paciente, teorias que devem ser refeitas a cada momento. Nada de moldar o analisando, é a posição reafirmada.


Não vou me ater a todos os capítulos, até porque tiraria um pouco do mistério narrativo do livro. Embora não tenha selecionado nenhum deles com um critério específico, destaco "Sobre a função testemunho em psicanálise" (p. 17), no qual aparece a contundente frase que designa a função por excelência do psicanalista: "aquele que atravessou e viveu uma experiência até o final e pode, portanto, dar testemunho disso" (p. 17).


No artigo "Da transição do nome próprio à fala outra: revisitando a psicopatologia da vida cotidiana" (p. 36), o autor enfatiza a incapacidade do analista em acompanhar pacientes cada vez mais criativos; também denuncia essa fragilidade quando situações inusitadas se apresentam: "Como que reagindo às modificações da história... o paciente de que tratam as novas teorias psicanalíticas... é o homem dividido. Cindido, explodido" (p. 39).


Em outro capítulo, intitulado "Instinto: da teoria da autoconservação à teoria da mortalidade" (p. 44), encontramos a crítica de modos de entender a ideia da pulsão de morte que parecem qualificar a pulsão como advinda do mal; cito o autor: "É importante notar como o impacto da conceitualização do instinto de morte se reflete na produção teórica e na prática psicanalítica até o presente quando é tratado basicamente como agressão, ou autoagressão qualificado e identificado com o mal, numa forma maniqueísta de ver o mundo" (p. 54).


Já no artigo "O término do processo psicanalítico: rimas e rumos" (p. 57), o autor direciona o olhar para a abordagem do temor da morte nas análises. Diz ser um mal olhar, porque analistas tendem a não lidar com as idealizações, principalmente em se tratando das análises didáticas. Essa tendência, aponta o texto, leva a uma institucionalização da conceitualização do que seja uma análise completa: "Impossível falar do término de uma análise isoladamente. Ele é uma consequência e uma decorrência de seu percurso: como a própria vida, alguns percursos mais bem-sucedidos que outros, dependendo do ponto de vista adotado" (p. 64).


Nos artigos sobre instituições, como "O divã e a Medusa" (p. 95), Giovannetti ironiza o aprisionamento dos profissionais, a fidelidade ao pai da horda primitiva, pai sempre ameaçador para todo aquele que questiona escolas. Seriam como filhos assustados por não conseguirem matar o pai devorador de pensamento. Como consequência, estabelecer-se-iam famílias institucionalizantes, impeditivas de um trabalho efetivo, tornando-se obstáculos para o conhecimento e a liberdade.


Outro texto instigante é aquele que relata o percurso de uma análise pela internet?-"Hospitalidade na clínica psicanalítica hoje" (p. 128)?- e repensa o setting como o lugar do encontro, atravessando as fronteiras do estabelecido: "É absolutamente revelador que estas construções caminhem em paralelo com a construção ou desconstrução de um setting analítico possível, não clássico" (p. 134).


O autor revisita teorias psicanalíticas, incluindo achados contemporâneos que têm um papel fundamental na compreensão do mundo em que vivemos. Olha em volta e sai do consultório. Entra nas instituições, estuda seu caráter conservador e discrimina seu impacto na psicanálise, sem se esquecer de sua função agregadora e promovedora de conhecimento compartilhado com outras instituições, como diz no artigo "Sobre a natureza e a função do currículo na formação analítica": "Se não temos em nosso quadro docente colegas que sejam capazes de coordenar seminários nessas áreas, o instituto poderia fazer parcerias com a universidade..." (p. 110).


Descreve como a função do currículo está imbricada com a constante necessidade de atualização, argumentando que a permanência na instituição não leva a nada, caso o conhecimento se torne estanque e impeditivo de algo transformador.


Muito antes de se tornar um tema atual na formação da Sociedade de Psicanálise, o autor já refletia sobre as dificuldades que tornam a escrita de relatórios tão penosa para muitos membros filiados. Para ele, escrever é se apresentar, deixar sua assinatura e atestar sua mortalidade: "No ato da escrita, ato solitário por excelência, a palavra se encontra em seu estado agonizante, é letra quase morta, por assim dizer, e seu poder comunicativo precisa ser resgatado... Na escrita é a ausência do outro que deve ser tolerada" (p. 77-78).


Por fim, no artigo "Uma questão hamletiana" (p. 79), o autor descreve o modo pelo qual Wilfred Bion questiona o sinal de oscilação na equação kleiniana que implica em fazer com que o paciente atinja a posição depressiva no fim de cada análise. Propõe colocar autores em conversa como recurso para que cada analista possa se afastar de seu analista de formação.


A obra, não por acaso, inaugura o projeto de uma coleção voltada para a produção intelectual de psicanalistas ligados à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), com curadoria de Marina Massi, uma especialista em trazer a memória e a história viva da instituição para o centro das discussões. Como se não bastasse, a introdução está a cargo de Cecília Orsini, estudiosa dos textos psicanalíticos, que os esmiúça com rigor e isenção.


Com tantos temas e tópicos, a leitura do livro de Giovannetti se faz necessária, sobretudo, para aquele que se deixa surpreender pelo inusitado da psicanálise, ciência antropológica que não explica nada e que se produz na interface da clínica com a teoria, desde que esta seja desvinculada de uma formação escolástica.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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