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Resumo
Resenha de Cassandra Pereira França e Ana Cecilia Carvalho (orgs.), Universidade e psicanálise: um espaço de interlocução, São Paulo, Zagodoni Editora, 166 p.


Autor(es)
Maria de Lourdes Turbino Neves Neves
é doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


Notas

1.R. Mezan. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.


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 LEITURA

Interlocuções da psicanálise com a universidade

[Universidade e psicanálise: um espaço de interlocução]
Maria de Lourdes Turbino Neves Neves

Psicanálise e universidade são temas que vêm sendo discutidos por inúmeros psicanalistas, sem perder de vista a questão elaborada por Sigmund Freud: deve-se ensinar psicanálise na universidade? Hoje não vivemos mais sob a indagação se deve ou não estar presente na academia, tanto que o contato inicial de muitos profissionais com a psicanálise se deu na universidade. A verdade é que a psicanálise tem se difundido não só por meio de seu ensino e transmissão na graduação como, principalmente, na última década, pelos cursos de pós-graduação de mestrado e doutorado. No entanto, mesmo que sua presença se mostre consolidada nesse espaço acadêmico, manter-se em pé como campo de produção de saber ainda gera embates e desafia a psicanálise a resistir enquanto uma ciência do singular.

Um exemplo de sua consolidação é mostrado pelos psicanalistas Ana Cecilia Carvalho, Cassandra Pereira França, Eduardo Dias Gontijo, Lucio Roberto Marzagão, Maria Teresa de Melo Carvalho, Paulo de Carvalho Ribeiro e Riva Satovschi Schwartzman, que se empenharam na criação do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica (CETEP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Passados vinte anos desse feito, os autores relatam sua experiência no livro Universidade e psicanálise: um espaço de interlocução, como resposta à necessidade de atender a demanda dos jovens futuros psicólogos e psicanalistas.

O livro é composto de dez artigos, em sua maioria já publicados em revistas científicas, anais de congressos, fóruns, encontros, jornais e livros. Nessa produção, encontramos as convicções éticas que fundamentaram a criação do curso de especialização (lato sensu), proporcionando a formação de psicanalistas com criticidade no desempenho de suas funções. A obra apresenta a trajetória da inserção da psicanálise no curso de psicologia da UFMG desde a década de 1980, sua história como campo de pesquisa e atuação na universidade e o empenho de seus professores no intuito de legitimarem o estudo da psicanálise no universo acadêmico.

No primeiro texto, intitulado "A fertilização cruzada", Eduardo Dias Gontijo se refere à trajetória do grupo de professores no Departamento de Psicologia da UFMG, suas motivações e frustações, bem como as dificuldades encontradas para a inserção da psicanálise na universidade na década de 1980. Enfatiza que o ensino da psicanálise é possível e desejável na universidade, desde que se tenha uma perspectiva crítica da disciplina. E ainda salienta que, para que possa haver a fertilização cruzada que Freud mencionou, se torna necessária uma abertura intelectual para propiciar a troca acadêmica e, desse modo, ter motivação para estar sempre pesquisando, interessar-se em transmitir, ser capaz de cooperar e formar grupos com fins comuns a todos. Nessa perspectiva, o autor conclui que os projetos devem ser elaborados com paixão e amizade, pois só assim podem ser bem-sucedidos.

Entendemos que a inserção da psicanálise na universidade trouxe consequências para as instituições universitárias e psicanalíticas. De acordo com Mezan , para alguns psicanalistas, o primeiro contato com o ambiente acadêmico gerava certo estranhamento, devido às diferenças com o ambiente clínico com o qual estavam habituados. Para o autor, geralmente, as universidades se aproximam mais das questões teóricas, indo do estudo aprofundado de uma história de vida à análise das condições que afetam determinados grupos na sociedade. Alguns trabalhos examinam conceitos centrais da psicanálise, outros abordam mais diretamente a prática clínica e há aqueles que tratam de estruturas psicopatológicas ou da clínica em instituições.

É no contexto universitário que vivenciamos a pluralidade de pesquisas psicanalíticas encontradas nos diversos núcleos de psicanálise que mantêm interlocução com outras áreas do conhecimento, como direito, literatura, educação e várias especialidades da clínica médica. É também por meio das pesquisas que a psicanálise tem buscado abordar, na contemporaneidade, as diferentes modalidades de sofrimento psíquico que remetem ao corpo biológico.

Como uma continuação do primeiro texto, no artigo intitulado "Fim da inocência", Lucio Roberto Marzagão assevera que, na década de 1980, a psicanálise era exercida fora das universidades e que seus praticantes acreditavam ser portadores da palavra verdadeira ou psicanálise pura.

Entendemos que os psicanalistas de inúmeras escolas procuram programas de pós-graduação nas universidades pelos desafios que os parâmetros que sustentam a pesquisa na universidade podem provocar na aplicabilidade do seu aprendizado na experiência clínica. Também se beneficiam com a possibilidade de as pesquisas em psicanálise na universidade alinharem produção de conhecimento e demandas concretas da comunidade em suas vertentes de ensino, pesquisa e extensão.

No capítulo seguinte, Ana Cecilia Carvalho traz o texto intitulado "Uma carta sempre chega ao seu destino". Trata-se, supostamente, de uma carta escrita por Freud, em 5 de maio de 1938, encontrada na biblioteca de uma cidade dos Estados Unidos. Na referida carta, entre outros assuntos, o mestre reitera seu pensamento acerca do ensino da psicanálise nas universidades. Apresenta uma posição favorável não só sobre a possibilidade da expansão do saber psicanalítico no meio acadêmico como também sobre uma prática clínica social mais ampla. Concorda que a inclusão da psicanálise como disciplina universitária seria de grande importância na formação de médicos e cientistas, ainda que, ele próprio, não soubesse como tornar tal inclusão possível dentro da estrutura educacional, confiando a responsabilidade de como efetivar sua entrada nos currículos dos cursos universitários à universidade, caso assentisse a importância do ensino da psicanálise.

Em seguida, Maria Teresa de Melo Carvalho faz uma releitura da metapsicologia como um dos lugares da experiência psicanalítica. Questiona: para que serve a metapsicologia? Ao longo do texto intitulado "A metapsicologia como um dos lugares da experiência psicanalítica", responde com fineza intelectual, mostrando ao leitor que a metapsicologia está atrelada a características peculiares à construção do saber em psicanálise. A autora afirma que há um aparente descompasso entre a metapsicologia e a clínica e que isso pode ser entendido a partir de vários pontos de vista: pensar na crítica segundo a qual a linguagem da metapsicologia é distante da linguagem da clínica; considerar que a produção teórica nem sempre corresponde ao sucesso da prática clínica; entender que se deve levar em conta as diversas manifestações psicopatológicas que vêm sendo apresentadas em diferentes momentos, desde o nascimento da psicanálise até os dias atuais. Para a autora, a metapsicologia e a clínica sempre estiveram ligadas nos trabalhos dos grandes autores psicanalíticos (Melanie Klein, Jacques Lacan, entre outros), mesmo que a linguagem da metapsicologia seja distante da linguagem da clínica; distante tanto no sentido em que a metapsicologia não nos fornece, de forma direta, a maneira de intervir na clínica, como no sentido em que a singularidade de uma história clínica nunca será completamente apreendida pela universalidade do discurso teórico.

A história da metapsicologia freudiana resulta de contínuas descobertas do seu objeto, bem como de sucessivos desvios em relação à descoberta inaugural. As teorias em psicanálise continuarão contribuindo com suas novas formulações ao conhecimento do nosso objeto, mas também se desviando dele em algum ponto. De acordo com Carvalho, ainda não terminamos de descobrir o inconsciente e a sexualidade infantil; daí dizermos que não está encerrada a tarefa de fundar o nosso campo, tarefa que é inseparável daquela que a cada dia estabelece uma situação clínica.

No texto seguinte, Cassandra Pereira França destaca as mulheres que Freud delineou, abordando com clareza o tema da feminilidade e fazendo um percurso histórico- social da mulher, do século passado até nossos dias. A autora trabalha o tema de forma poética, tendo como ponto de partida a obra freudiana, porém avançando em alguns aspectos ao tratar da feminilidade em três tempos: a inveja do pênis, a maternidade e a castração, mostrando que a mulher castradora é uma representação que atemoriza alguns homens e os leva a quadros de disfunção erétil ou, ainda, de ejaculação precoce. A autora conclui que os modelos de mulher apresentados na obra freudiana não são excludentes e que, tal como um caleidoscópio, se superpõem e formam novas configurações.

Ao pensarmos os escritos freudianos sobre a feminilidade, é necessário considerar também o contexto cultural daquela época. Dito de outro modo, as ideias de Freud não podem ser dissociadas do contexto social em que sua obra está inserida, de maneira que seus estudos fizeram parte e contribuíram para a legitimação do lugar social ocupado pela mulher na época e fomentaram as ideias de que, mesmo com a aceitação da diferença entre os sexos, se tem a perpetuação do primado do masculino.

Os autores Paulo de Carvalho Ribeiro e Maria Teresa de Melo Carvalho abordam com precisão intelectual os modelos do trauma em Freud e suas repercussões na psicanálise pós-freudiana. A primeira concepção de Freud sobre o trauma está na teoria sobre a patogênese da histeria; trata-se da teoria da sedução, momento em que o trauma é sempre um trauma sexual. De acordo com o primeiro modelo do trauma freudiano, o psicanalista Jean Laplanche afirma que aquilo que se constitui como traumático pertence ao campo da sexualidade. O segundo modelo teórico de trauma na teoria freudiana está no texto "Além do princípio do prazer", de 1920, no qual Freud faz uma analogia entre o trauma como afluxo de excitação vinda do exterior (da realidade externa) e a pulsão como afluxo de excitação vinda do interior (do psiquismo). No texto "Inibição, sintoma e angústia", de 1926, Freud retoma a noção de trauma, para reexaminar o problema da angústia. Nesse texto, o mestre propõe que a angústia não procede do recalcamento, mas constitui um motivo para ele. A angústia aparece no Eu como um sinal para o recalcamento. Nessa teoria da angústia, é grande o peso conferido à realidade. Ribeiro e Carvalho finalizam dizendo que o trauma talvez seja o principal elemento de uma teoria capaz de juntar os conceitos principais da psicanálise.

No capítulo seguinte, Ana Cecilia Carvalho, tendo como base os textos freudianos, faz uma reflexão com base em sua prática clínica, focalizando não apenas a tarefa do analista e o modo de sua execução como também os problemas encontrados nessa jornada. A autora ressalta o caráter indissociável da teoria com a prática, para que seja possível compreender de que modo se deu a constituição psíquica do sujeito que busca ajuda e as intervenções pertinentes na história singular desse sujeito. Em relação à experiência da psicanálise na universidade, a autora diz que há um ganho adicional, pois as interpelações dos outros campos de conhecimento (filosofia, artes, história etc.) se entrelaçam e eles, por sua vez, também são redimensionados pela inquietação trazida pela psicanálise em contextos em que o psicanalista habitualmente trabalha.

Entendemos que tanto as crescentes demandas sociais quanto as diferentes psicopatologias consideradas graves são motivos e desafios para continuarmos com as pesquisas psicanalíticas nas universidades. Essas demandas, enquanto objetos de estudos, favorecem o alcance do aprimoramento da terapêutica psicanalítica.

A propósito das patologias atuais, Riva Satovschi Schwartzman aborda a temática da escuta psicanalítica na síndrome de pânico, discutindo um caso clínico à luz da psicanálise. A autora aborda também as diferenças entre as conversões histéricas e os transtornos psicossomáticos e questiona a grande aceitação pela medicina psiquiátrica da doença de pânico, que prende o indivíduo a um diagnóstico e ao tratamento medicamentoso, assegurando-lhe a criação de uma proteção externa que foi rompida pela invasão do seu excedente pulsional. Na clínica de Freud, as conversões histéricas eram uma manifestação neurótica de uma época em que havia pressões entre a estimulação sexual e a impossibilidade de uma prática sexual satisfatória. No que tange à síndrome de pânico, a autora levanta a hipótese de que existe hoje uma idealização da independência pessoal e da autonomia, pressionando as pessoas a sair de suas cidades e a tentar a vida em outros lugares, obrigando-as a refazer suas referências. No entanto, o que adoece o ser humano não é necessariamente essa nova maneira de viver algo, mas o surgimento de algo que sempre existiu e estava oculto.

Paulo de Carvalho Ribeiro faz uma análise psicanalítica do filme Eyes wide shut (1999), de Stanley Kubrick, enfocando a relação entre revelação e paranoia. A referência à paranoia é evidente; o protagonista percebe que está sendo seguido e, embora não consiga ter clareza quanto à identidade do perseguidor, deixa claro que o motivo da perseguição se relaciona com sua entrada numa casa secreta e transgressiva, onde algumas mulheres transitam envoltas em enigma. Durante o filme, os diversos acontecimentos produzem nos protagonistas a suspeita de uma conexão enigmática que os interliga, ao mesmo tempo que os remete à ideia de morte associada ao encontro de uma mulher. O desejo do protagonista por essa mulher que se sacrificaria por ele parece se confundir com um sentimento sobre si mesmo e com o impulso de desvelar todo o mistério que ela representa, mesmo que para isso deva se arriscar até a morte.

De acordo com o autor, a trama mostra a existência de uma sexualidade desagregadora das referências identitárias nos principais personagens, referências que se impõem da realidade externa e lançam o sujeito num fluxo de verdades que deveriam ter permanecido inconscientes, ao mesmo tempo que o engaja num processo de restauração, cujo resultado nem sempre é promissor. É essa significação sexual que adquire o status de uma revelação na medida de sua impossibilidade de ser reconhecida como própria, apesar da interioridade de seus efeitos. Desse modo, retrata uma verdade sobre a sexualidade e as relações entre homens e mulheres que não pode ser vista impunemente; é preciso pagar um preço para mostrá-la, mesmo que esse preço seja a morte.

Por fim, no texto "O destino precisa ser tão funesto?", Cassandra Pereira França escreve uma carta a Freud, relembrando o mestre das cartas que escreveu para alguns expoentes da psicanálise no Brasil, compartilhando suas inquietações a respeito da psicanálise na universidade.

Como tantas outras disciplinas, a psicanálise pode ter lugar na universidade, mas sua existência ultrapassa os limites institucionais. A psicanálise sustenta-se no exercício clínico nos diversos campos em que atua. Desse modo, respeitando a ética psicanalítica, está sempre livre para criar seus princípios de rigor acadêmico e aplicar seu método de investigação, que inclui a transferência e a singularidade do caso clínico.
 
Acredito que a leitura dessa obra desperta novas inquietações e alimenta o espírito crítico de todos aqueles que se dedicam a produzir conhecimento fundamentado no método de investigação psicanalítica.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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