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Resumo
Ao retraçar a gênese e a evolução do modelo tradutivo do recalcamento em Jean Laplanche, busca-se, primeiramente, evidenciar suas fontes de inspiração em Sigmund Freud e Jacques Lacan e a formulação original que adveio da interpretação dessas fontes. Em seguida, busca-se identificar os principais impasses desse modelo e as vias abertas pelo próprio autor, bem como por alguns estudiosos de seu pensamento, para a superação de tais impasses.


Palavras-chave
Laplanche, modelo tradutivo do recalcamento, inconsciente, teoria da sedução.


Autor(es)
Maria Teresa de Melo Carvalho Carvalho
é doutora em psicanálise pela Universidade de Paris VII, na França.


Notas

1.J. Laplanche, Os fracassos da tradução, p. 117.

2.J. Laplanche, Le mur et l'arcade, p. 287-306.

3.J. Laplanche, Os fracassos da tradução, p. 116-130.

4.C. Dejours, Introduction, p. 10.

5.J. Laplanche e S. Leclaire, O inconsciente um estudo psicanalítico, p. 216.

6.J. Laplanche, Problemáticas IV: o inconsciente e o id, p. 35.

7.Idem, ibidem.

8.A esse respeito, destacamos as seguintes referências: J. Fletcher, La lettre dans l'inconscient: le signifiant énigmatique dans l'oeuvre de Jean Laplanche, p. 29-55; A. Costes, Lacan: le fourvoiement linguistique La Méthaphore introuvable.

9.J. Laplanche, Novos fundamentos para a psicanálise, p. 58.

10.    J. Laplanche, Problemáticas IV: o inconsciente e o id, p. 254-255, itálicos no original.

11.    J. Lacan, D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose, p. 557.

12.    J. Laplanche, Problemáticas IV: o inconsciente e o id, p. 217.

13.    J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Fantasme originaire Fantasme des origines Origine du fantasme.

14.    Essa transcrição foi composta com passagens do livro de J. Laplanche, Novos fundamentos para a psicanálise, e do prefácio que esse autor escreveu para o livro de S. Bleichmar, Aux origines du sujet psychique dans la clinique psychanalytique de l'enfant.

15.    J. Laplanche, Court traité de l'inconscient, p. 82.

16.    J. Laplanche, Séduction, persécution, révelation, p. 34, tradução nossa.

17.    Idem, ibidem.

18.    Idem, p. 35, tradução nossa.

19.    J. Laplanche, Três acepções da palavra "inconsciente" no âmbito da teoria da sedução generalizada, p. 197.

20.    M. R. Cardoso, Superego.

21.    L. C. Tarelho, Paranoia e teoria da sedução generalizada, p. 20.

22.    F. Robert, L'inconscient erratique: metábole et métabolisation, p. 87-95.

23.    Cf. J. Laplanche, Les forces en jeu dans le conflit psychique, p. 142.

24.    P. C. Ribeiro, O problema da identificação em Freud: recalcamento da identificação feminina primária.

25.    F. F. Lattanzio e P. C. Ribeiro, Recalque originário, gênero e sofrimento psíquico.

26.    Para um aprofundamento sobre essa concepção, remetemos o leitor a S. Bleichmar, Simbolizações de transição: uma clínica aberta ao real, p. 29-58.

27.    J. Laplanche e J.-B. Pontalis, op. cit., p. 28.

MEYER DITTMAR

1.A origem deste artigo remonta ao final de 2012, quando iniciamos o grupo de estudos e pesquisa Ciranda: perspectivas teórico-clínicas na psicanálise com crianças, no setor Clínica e Pesquisa do Departamento Psicanálise com Crianças. A pergunta de Marcia Porto Ferreira sobre as perversões motivou nosso primeiro ano de trabalho. Passados sete anos, algumas articulações se colocam, e as questões seguem se desdobrando.

2.C. A. Plastino (org.), Transgressões.

3.S. Bleichmar, O que resta de nossas teorias sexuais infantis?.

4.Sobre esse ponto, ver J. Laplanche, El psicoanálisis: mitos y teoría.

5.A esse respeito, ver J. Laplanche, Castração simbolizações: problemáticas II; S. L. Alonso, O conceito de gênero retrabalhado no marco da teoria da sedução generalizada.

6.S. Bleichmar, Paradojas de la sexualidad masculina, p. 228.

7.E. Enriquez, Um mundo sem transgressão.

8.E. Enriquez, op. cit., p. 115.

9.E. Enriquez, op. cit., p. 117.

10.    E. Enriquez, op. cit., p. 117.

11.    F. Ferraz, Uma visão winnicottiana da perversão: os caminhos da dissociação em Masud Khan.

12.    M. Khan, citado por F. Ferraz, op. cit., p. 80.

13.    A esse respeito ver, por exemplo, S. Bleichmar, Clínica psicanalítica e neogénesis; J. Laplanche, O inconsciente e o id: problemáticas IV.

14.    Aspecto destacado e trabalhado por Paulo Carvalho Ribeiro no artigo inédito "Pânico e dessexualização".

15.    Tema desenvolvido por Maria Tereza de Melo Carvalho no artigo "Gênese e evolução do modelo tradutivo do recalcamento em Jean Laplanche: dos primeiros impasses aos desafios atuais", neste mesmo número de Percurso.

16.    Essa perspectiva não exclui levar em conta que existem momentos estruturantes, em que a tópica psíquica se consolida, o que limita a possibilidade transformação.

17.    Em artigo anterior, trabalhei sobre a ligação entre a origem da ética e as operações fundantes do sujeito no pensamento de Bleichmar. Cf. M. C. V. M. Dittmar, Narcisismo transvazante: sobre a singularidade do encontro adulto-criança na origem e na situação analítica.

18.    M. C. V. M. Dittmar, op. cit., p. 44.

19.    E. Enriquez, op. cit., p. 124.

20.    Na revista Percurso n. 62 foram publicados dois artigos, de Ana Helena de Staal e Bruno Espósito, que contribuem para pensar sobre esse tema.



Referências bibliográficas

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Tarelho L. C. (2019). Paranoia e teoria da sedução generalizada. São Paulo: Zagodoni.





Abstract
In retracing the genesis and evolution of Jean Laplanche’s translational repression model, an effort is made to highlight his sources of inspiration in Sigmund Freud and Jacques Lacan and the original formulation resulting from the interpretation of these author’s ideas. Then, the main impasses of this translational model are pointed out as well as the paths opened by Laplanche himself and some of his followers to improve it are commented.


Keywords
Laplanche, repression’s translational model, unconscious, seduction theory.

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 TEXTO

Gênese e evolução do modelo tradutivo do recalcamento em Jean Laplanche: dos primeiros impasses aos desafios atuais

Genesis and evolution of Jean Laplanche’s translational model of repression: from the first impasses to current challenges
Maria Teresa de Melo Carvalho Carvalho

Introdução
O modelo tradutivo do recalcamento é um dos pilares da teoria da sedução generalizada (doravante TSG) de Jean Laplanche, ao qual o autor dedicou boa parte de sua obra. O tema da tradução esteve no horizonte de duas de suas principais atividades ao longo da vida, como ele mesmo declarou em 2002: "a tradução de Freud e uma elaboração metapsicológica já antiga que se explicita nos termos de ‘teoria tradutiva do inconsciente'" . Qual seria o elo entre essas duas atividades? Qual o trânsito possível entre a concepção da tradução interlingual que orientou os trabalhos de Laplanche, tradutor de Sigmund Freud, e a concepção do inconsciente como resíduo de tradução, resultado das elaborações de Laplanche, intérprete de Freud? A relação entre as duas concepções compõe o tema central de, pelo menos, dois importantes artigos de Laplanche, a saber, "Le mur et l'arcade" e "Os fracassos da tradução" . Em ambos o autor mantém a sutileza e a reserva que lhe são características ao tratar da aproximação de dois campos do conhecimento distintos, a fim de evitar assimilações apressadas, cuidando assim da especificidade do objeto da psicanálise. Podemos dizer, de forma bastante breve, que o pano de fundo da aproximação entre as duas concepções de tradução é a homologia entre aquilo que move o tradutor ante o texto a traduzir e aquilo que move o infans ante as mensagens que lhe chegam do mundo adulto. Em outras palavras, o enigma do texto a traduzir e o enigma do outro têm um solo comum. No presente artigo, nosso foco incide sobre o modelo tradutivo como elaboração metapsicológica, deixando as referências já citadas como ponto de partida ao leitor interessado em adentrar-se na rica seara constituída pelos elos entre a tradução interlingual e a tradução como conceito no interior da TSG.

O modelo tradutivo do recalcamento foi retomado por Laplanche ao longo de sua obra, nas sucessivas espirais de seu pensamento e até mesmo nos seus últimos textos, é apresentado como um modelo que ainda deixa várias questões em aberto. Além daquelas que ele próprio formulou, há aquelas que foram, e continuam sendo, aventadas pelos estudiosos de seu pensamento. A própria concepção de tradução no âmbito da TSG merece um questionamento para o qual nos convoca C. Dejours, na introdução da coletânea que reúne os artigos das Jornadas Internacionais Jean Laplanche, de 2016, ao lançar a seguinte pergunta: qual a especificidade da tradução relativamente aos termos de ligação e de simbolização, termos que muitas vezes parecem se equivaler no pensamento de Laplanche? Questão certamente pertinente, que retomaremos sucintamente neste artigo e que nos indica que a teoria tradutiva do recalcamento permanece, de fato, uma teoria inacabada, tal como assinalado no título da coletânea já citada. Inacabada, mas nem por isso frágil. Ao contrário, e por isso mesmo, revela-se como uma teoria de grande complexidade e de grande fecundidade em sua abertura a novos prolongamentos incitados pela tarefa clínica.

Acompanhamos, então, a gênese e a evolução do modelo tradutivo do recalcamento para colocar em relevo, primeiramente, suas fontes de inspiração em Freud e Jacques Lacan e a formulação original que adveio da interpretação dessas fontes. Em seguida, buscamos ressaltar os primeiros impasses com os quais esse modelo se deparou, as vias indicadas pelo seu autor para o enfrentamento desses impasses, para chegar, finalmente, aos questionamentos e prolongamentos encontrados nos trabalhos de alguns dos estudiosos da TSG.

Gênese e evolução do modelo tradutivo do recalcamento

Uma formulação precursora do modelo tradutivo do recalcamento, senão a formulação precursora deste modelo, encontra-se no texto "O inconsciente um estudo psicanalítico", escrito em colaboração com Serge Leclaire para o colóquio de Bonneval, em 1960, texto de grande importância histórica e teórica na trajetória de Laplanche. Importância histórica por representar o início de sua ruptura com Lacan, que teve consequências significativas para a história da psicanálise na França, uma vez que esse momento se inseriu num movimento de cisão mais amplo, envolvendo também outros personagens no seio do grupo lacaniano. Importância teórica por conter o germe da reflexão que levou Laplanche a questionar a linguística estruturalista como fundamento para a psicanálise e a propor os elementos que antecipam o seu modelo tradutivo do recalcamento e a concepção do inconsciente que lhe é correlativa.

O início desse texto tem também significativo valor histórico ao propor uma reflexão e uma tomada de posição relativamente à importante crítica de G. Politzer que, em 1928, publicou o primeiro volume de sua Critique des fondements de la psychologie, obra que, segundo Laplanche, teve grande influência sobre o devir da psicanálise na França, tendo funcionado, para toda uma geração, como uma verdadeira introdução à descoberta freudiana. Politzer, filósofo marxista, buscava fundar o que chamou de psicologia concreta, desembaraçada tanto de uma abordagem fisiológica quanto de uma abordagem introspectiva, e encontrou na psicanálise, em particular no modelo do tratamento psicanalítico, uma via fecunda na direção de seu objetivo. Ao valorizar a descoberta da psicanálise, tal como esta se configura no tratamento psicanalítico, Politzer convocava os jovens psicanalistas a se liberar do apego ao aparelho conceitual da metapsicologia ao qual uma adesão enrijecida acabaria por funcionar como defesa contra o pensamento. Advertência pertinente, sem dúvida, mas cuja consequência não deveria ser um decreto de "morte à metapsicologia" . Se Politzer considerava a metapsicologia como um "entulho metafísico, coisista e idealista" , Laplanche pensava, ao contrário, que "existe uma verdade do coisismo em psicanálise" e que devemos, sim, conceber o inconsciente em termos de coisas introjetadas, objetos internos que, no entanto, não têm a inércia das coisas porque são fontes de excitação. O que está em questão na primeira parte do texto de Bonneval é, portanto, a defesa do realismo do inconsciente contra uma concepção que acaba por tomá-lo como puro fenômeno de sentido, o que aproximaria a psicanálise de uma fenomenologia. Trata-se então, para Laplanche, de afirmar o inconsciente como uma realidade e não como um sentido imanente subjacente ao conteúdo manifesto, comparável à relação que liga uma peça de teatro a seu tema, conforme defendia Politzer.

Para proceder à defesa do realismo do inconsciente, Laplanche encontra apoio tanto em Freud quanto em Lacan. A realidade ou materialidade do inconsciente estaria afirmada em Freud na noção de representação, quando este fala de representações inconscientes. Do mesmo modo, estaria afirmada na noção de significante em Lacan, que adota esse termo em sua acepção mais material. Portanto, no início do texto, Laplanche está em sintonia com Lacan ao recorrer à relação entre inconsciente e linguagem para tentar apreender a materialidade do inconsciente. Como podemos conceber a relação das representações de coisa, que, de acordo com Freud, constituiriam os conteúdos do inconsciente, com o significante linguístico? Em primeiro lugar, é necessário reiterar a concepção do inconsciente como sistema, diferenciado dos sistemas pré-consciente e consciente, com leis próprias de funcionamento e com conteúdos próprios, tal como Freud formulou no seu texto "O inconsciente", de 1915, principal baliza da argumentação de Laplanche. Se num primeiro momento a aproximação entre inconsciente e linguagem parece promissora para se definir a materialidade dos conteúdos inconscientes, à medida que o texto avança o autor vai se distanciando das teses lacanianas que ligam o inconsciente e a linguagem e sua interpretação do texto freudiano acaba levando-o a inverter a asserção segundo a qual a linguagem é a condição do inconsciente ao afirmar que o inconsciente é a condição da linguagem. Essa questão, que diz respeito ao estatuto da linguagem na tópica psíquica, passou a representar o ponto chave da divergência entre os dois autores. Não cabe entrar aqui nos meandros dessa divergência que já foi explorada por outros autores . O próprio Laplanche a retomou em detalhes em suas Problématiques IV e também de forma breve em Novos fundamentos para a psicanálise, momento em que seu distanciamento em relação à tese segundo a qual o inconsciente está estruturado como uma linguagem já estava suficientemente elaborado a ponto de se autorizar a conceber uma nova inversão de uma máxima lacaniana, propondo a seguinte formulação: "o inconsciente é um como-uma-linguagem não estruturado[a]" . Formulação provocativa, sem dúvida, porém no bom sentido, isto é, no sentido de um convite à reflexão sobre a natureza dos conteúdos inconscientes. Que tipo de realidade possuem? Qual sua relação com os significantes linguísticos? Ora, se no início de suas elaborações Laplanche estava em sintonia com Lacan na defesa do realismo do inconsciente, ele acaba por afirmar um tipo de realidade dos conteúdos inconscientes bem diferente daquele ao qual subscreveria Lacan. Pois bem, vejamos a seguir a concepção do recalcamento originário precursora do modelo tradutivo do recalcamento:

A origem do inconsciente deve ser procurada no processo que introduz o sujeito no universo simbólico. Poderíamos abstratamente descrever duas etapas desse processo. Num primeiro nível de simbolização, a rede, a trama das oposições significantes, é lançada sobre o universo subjetivo; mas nenhum significado particular é colhido em uma malha particular. O que é simplesmente introduzido com esse sistema coextensivo ao vivenciado é a pura diferença, a escansão, a barra: no gesto do "fort-da", a borda da cama. Trata-se, cumpre repetir, de uma etapa puramente mítica, mas os fenômenos da linguagem psicótica mostram que ela pode ressurgir a "posteriori" na "regressão", sob a forma do shift incontrolável de um par de elementos diferenciais.


O segundo nível de simbolização é o que descrevemos, segundo Freud, como recalcamento originário, segundo J. Lacan como metáfora. É esse segundo nível que realmente cria o inconsciente, introduzindo assim esse lastro que faltará sempre a uma linguagem unilinear e que está ausente?- de modo mais ou menos extenso?- no mundo simbólico do esquizofrênico.

 

Nessa formulação encontram-se alguns elementos tributários da abordagem da linguística estrutural do inconsciente, tais como a relação estreita entre a fundação do inconsciente e o acesso ao universo simbólico e o caráter mítico desse momento fundante, elementos que são refutados no percurso subsequente de Laplanche. Contudo, é mantida e valorizada a ideia segundo a qual não há um inconsciente inato constituído por fantasias filogenéticas, sendo o recalcamento originário o processo que funda o inconsciente. Ideia extremamente cara a Laplanche, tal como lhe é cara a hipótese dos dois tempos ou duas etapas do recalcamento, o que é objeto de criteriosas argumentações ao longo de sua obra.


Na passagem citada, há ainda a referência à concepção lacaniana da metáfora no processo de simbolização e a fórmula da metáfora, retomada do texto de Lacan sobre as psicoses , é utilizada para representar o recalcamento como um processo de substituição de significantes, na seguinte apresentação:

 

S/S^' x S^'/s →S x I/s (esquema 1)

 

A fórmula da metáfora, se não é explicitamente enunciada por Lacan como modelo para o recalcamento originário, presta-se bem para representá-lo, sobretudo se nos lembramos da metáfora paterna na qual o desejo da mãe significado ao sujeito sofre a ação metaforizante do significante Nome do Pai, que passa a substituí-lo na cadeia de significantes e marca a introdução do sujeito no universo simbólico. Ao retomar essa fórmula, Laplanche espera que ela possa contemplar também as exigências da concepção freudiana do inconsciente como sistema e a especificidade atribuída a seus conteúdos. Valendo-se de um artifício matemático, transforma-a na apresentação mostrada a seguir, que passa a representar seu próprio modelo do recalcamento:

 

S'/S x S/s → (S'/s)/(S/S) (esquema 2)

 

Essa nova apresentação tem para Laplanche um valor sugestivo, isto é, vêm sugerir o realismo dos sistemas psíquicos como sistemas distintos, porém correlativos: o Pcs./Cs. representados pelo par S'/s, no andar de cima e o Ics. representado pelo par S/S, no andar de baixo. Por outro lado, a conservação daquilo que foi simplificado pela substituição de significantes, isto é, o par S/S no denominador do lado direito, sugere o realismo do conteúdo inconsciente, formado por um significante que remete a ele próprio e não a um significado. O que isso quer dizer? Isso visa a indicar sua especificidade como representação de coisa sem ligação com a representação de palavra correspondente, tal como propôs Freud. Seria melhor designá-lo como representação-coisa, isto é, um significante tornado coisa, sujeito a uma circulação não regulada, afastada de todo objetivo referencial e, portanto, sem respeito pela estrutura linguageira. A linguagem do inconsciente, "se possui o caráter essencial de ser uma circulação de Vorstellungen, só é comparável àquela camada vertiginosa da linguagem que certos poetas [ou certos esquizofrênicos, poder-se-ia acrescentar] nos deixam entrever" .


Com essa divergência, Laplanche abre mão do recurso à linguística estruturalista para fundamentar a descoberta da psicanálise e inicia, à sua maneira, o retorno ao texto de Freud, o incansável trabalho de tradutor e intérprete de Freud. Depois da parceria com Leclaire, foi com Jean-Bertrand Pontalis que nosso autor deu o passo seguinte na busca de apreensão do originário, no texto escrito a quatro mãos: Fantasme originaire Fantasme des origines Origine du fantasme. Nesse texto, buscam uma via alternativa para a concepção do originário diferente daquela que o postula como momento mítico e o atrela ao acesso ao Simbólico. Porém, conservam ainda uma perspectiva estruturalista ao postularem que a estrutura configurada no conflito psíquico do adulto reproduzir-se-ia nas fantasias da criança, ou seja, a dimensão estrutural que une as fantasias de desejo e a interdição do lado do adulto é o que daria forma às fantasias e aos conflitos da criança . Portanto, nesse texto, o privilégio é ainda concedido às estruturas transindividuais e não à alteridade do outro, como será posteriormente na TSG. Entre esse texto em colaboração com Pontalis e os Novos fundamentos para a psicanálise, no qual o modelo tradutivo do recalcamento é apresentado, a teoria de Laplanche vai sendo gestada com base em extensas análises do paradigma freudiano da teoria da sedução, desenvolvido entre os anos 1895 e 1897. Esse paradigma, ele o elege por considerá-lo a tentativa mais bem elaborada e única em toda a obra de Freud no sentido de explicar as engrenagens do processo de recalcamento que fazem com que a sexualidade infantil, e somente ela, constitua o recalcado por excelência. No entanto, certos obstáculos impediram Freud de levar adiante sua teoria para conservá-la como eixo de sua metapsicologia. Analisando tais obstáculos, a interpretação de Laplanche busca superar, por um lado, a oposição entre a sedução como realidade e a sedução como fantasia e, por outro, a restrição ao caráter patológico do adulto sedutor. Chega assim à sua concepção da sedução generalizada como fundamento do inconsciente. Contemporânea da teoria freudiana da sedução, a famosa carta 112 da correspondência completa com Wilhelm Fliess, na qual Freud concebe o recalcamento como fracasso de tradução, é também tomada por Laplanche como fonte de inspiração para seu modelo tradutivo do recalcamento.


Vejamos então a concepção do recalcamento originário elaborada no interior da TSG, valendo-nos de um expediente que pode nos ajudar a ressaltar as diferenças dessa nova concepção relativamente a sua precursora. Vamos transcrever, a seguir, a primeira concepção, porém modificada com o recurso aos novos aportes teóricos que se encontram nos Novos fundamentos para a psicanálise:

 

A origem do inconsciente deve ser procurada na situação originária de sedução da criança pelo adulto. Podemos descrever dois tempos desse processo fundante do psiquismo. O primeiro tempo corresponde à implantação do significante enigmático, antes de qualquer tentativa de tradução. Nesse primeiro tempo, poder-se-ia dizer que o significante enigmático é concretamente implantado na periferia do indivíduo, em particular nos pontos que chamaremos zonas erógenas.


O segundo tempo do recalcamento originário é o tempo da tradução, pela criança, do significante enigmático, correlativo da constituição do inconsciente, que conterá os restos não traduzidos, e do Eu, que conterá as traduções. É esse segundo tempo que realmente cria o inconsciente, no mesmo movimento em que se passa do Eu-corpo ao Eu-instância. Não se trata de uma etapa mítica, mas de um movimento real de constituição do aparelho psíquico, que, embora não possa ser diretamente observado, pode ser cercado como se cerca um elemento na tabela periódica de Mendeleiev, para retomar uma feliz metáfora empregada por Sílvia Bleichmar.

 

Passamos a enumerar e a comentar as diferenças entre a nova concepção e aquela do texto de Bonneval.


1) Na nova concepção a origem do inconsciente é correlativa da sedução originária da criança pelo adulto e não do seu acesso ao universo simbólico. A sedução se dá pelo endereçamento de significantes enigmáticos do adulto à criança. Não se trata somente de significantes verbais, nesse termo estão também incluídos significantes não verbais e mesmo comportamentais. O que é essencial agora no uso do termo significante não advém de sua inserção numa estrutura de linguagem, mas de sua característica de interpelação; o significante é enigmático não por sua polissemia no interior da linguagem, mas por conter um endereçamento portador de um significado que não é nem pode ser fornecido pelo adulto à criança, pois o próprio adulto o desconhece. Para realçar a dimensão de interpelação do significante e para marcar mais explicitamente seu afastamento em relação à abordagem lacaniana, Laplanche passa a empregar, nos seus textos subsequentes, o termo mensagem enigmática, em vez de significante enigmático. Pois bem, essa mensagem enigmática Laplanche a equipara ao primeiro registro psíquico mostrado no esquema freudiano da carta 112 e nomeado como signo de percepção (Wz). Mas podemos também equipará-la ao "desejo da mãe", para retomarmos o primeiro termo da metáfora paterna de Lacan. No entanto, em Laplanche, o desejo da mãe, veiculado nos cuidados dispensados à criança, não se define na forma pela qual a criança está presente no seu discurso (da mãe), ele não se define na estrutura da linguagem ou na cadeia de significantes na qual a criança será capturada. O desejo da mãe encontra-se no modo, bem singular e bem concreto, como a mãe se ocupa da criança. Os cuidados, as manobras, as atenções e atitudes que a mãe dirige à criança veiculam e ao mesmo tempo escondem um significado que ela própria desconhece, uma vez que é habitado por suas fantasias inconscientes.


2) Na nova formulação, tal como na primeira, concebe-se dois tempos do recalcamento originário, mas trata-se agora de momentos reais e não de momentos míticos. A referência a Silvia Bleichmar é significativa nesse contexto. Laplanche orientou a tese de doutorado dessa autora na mesma época em que formalizava sua TSG. Bleichmar, por sua vez, chegou até seu orientador com uma bagagem clínica expressiva, particularmente no atendimento de crianças, e com uma convicção muito firme de que a noção de recalcamento originário não era apenas uma necessidade lógica da teoria. Postulá-lo como um momento real na constituição do sujeito tem importância teórica e incidências na tarefa clínica. Do ponto de vista teórico, significa a defesa de uma gênese histórica, contingente do sujeito, contrária ao ponto de vista para o qual existiria uma estrutura fundamental transcendente que rege e predetermina as vicissitudes individuais e factuais. Do ponto de vista clínico e, em particular, da clínica com crianças, a suposição de que a tópica psíquica não se constitui de uma só vez e, sim, em momentos renovados da história da criança, leva-nos a acreditar que o tratamento psicanalítico pode ser capaz de recolocar em marcha os seus movimentos constitutivos, proporcionando aberturas àquilo que, porventura, esteja bloqueando o seu curso e em via de ocasionar o fracasso do estabelecimento das fronteiras intrapsíquicas. Destaca-se, pois, a importância dessa autora no sentido de conferir maior peso ao realismo do inconsciente e também à realidade dos seus momentos fundantes.


3) O recalcamento originário define-se, na nova concepção, como um processo de tradução das mensagens enigmáticas inscritas no primeiro tempo, sendo o inconsciente constituído pelos elementos que escapam à tradução, pelos resíduos da tradução representados por S/S no esquema 2. Também denominado por Laplanche significante dessignificado, S/S corresponde a fragmentos de percepções oriundas do sensório visual ou do sensório auditivo tais como restos de cenas, restos de palavras, de frases, de fonemas, etc.; fragmentos que se desprenderam das mensagens enigmáticas e que, perdendo sua inserção na linguagem, tornaram-se representação coisificada. O conteúdo recalcado é um reliquat da mensagem e não a totalidade desta, na medida em que a mensagem é parcialmente traduzida e parcialmente recalcada . Essa definição vem reinterpretar a fórmula da metáfora constitutiva do inconsciente, doravante chamada metábole recalcante, para significar que a substituição de significantes que caracteriza a tradução pode se dar tanto pela via da metáfora quanto da metonímia e, ao mesmo tempo, que entre a inscrição da mensagem e sua tradução há, como no metabolismo, um processo de decomposição e recomposição. Retomando a questão mencionada no início deste texto a respeito da distinção entre tradução e simbolização em Laplanche, arriscamos dizer que toda tradução corresponde a uma simbolização, mas o termo simbolização não comporta, necessariamente, tal como o termo tradução, essa ideia de decomposição e recomposição, tampouco nos remete ao enigma da mensagem a traduzir.


4) Na primeira concepção, as implicações do recalcamento originário para o ponto de vista tópico já estavam indicadas, mas na nova concepção a tópica psíquica ganha maior relevo com a referência ao surgimento do Eu-instância, que se dá concomitantemente à instauração do Ics. e do Pcs. como sistemas diferenciados.


Conforme já mencionamos, o modelo tradutivo do recalcamento foi retomado e repensado por Laplanche até o final de sua obra. Passamos a discutir os desafios que levaram nosso autor a buscar um aperfeiçoamento de seu modelo para, em seguida, abordamos os questionamentos apresentados por estudiosos da TSG e as novas proposições que daí resultaram.


Primeiros desafios ao modelo tradutivo e seu enfrentamento por meio da concepção de uma nova tópica psíquica

O primeiro desafio colocado ao modelo tradutivo do recalcamento diz respeito ao seu alcance: poderia ele abranger em sua potencialidade elucidativa manifestações psicopatológicas diversas? O próprio Laplanche apontou, em seu texto de 1993, "Séduction, persécution, révélation", a necessidade de reavaliá-lo a partir da psicose. Em suas palavras: "Com aquilo que pressentimos da psicose, esse modelo só poderia ser invocado para mostrar seu fracasso radical" . Com efeito, tendo como inspiração, por um lado, a teoria freudiana que buscava entender o recalcamento partindo do sintoma neurótico e, por outro lado, a concepção lacaniana da metáfora paterna, supostamente falha nos casos de psicose, esse modelo não poderia estar bem aparelhado para contemplar a psicose. Há de se considerar então que o modelo tradutivo fracassa diante do fracasso radical de tradução por parte do psicótico. Se a situação originária de sedução é a situação antropológica fundamental, logo o primeiro tempo do modelo tradutivo também é universal, ou seja, a mensagem enigmática inscreve-se em todos os seres humanos. "Seria necessário então supor que, na psicose, a mensagem permanece inalterada, em espera, suspensa? Em que estado? E onde?" A essas perguntas o autor não propõe respostas nesse texto, mas faz considerações que dizem respeito, justamente, à dificuldade de propor um modelo que não recorra a alguma forma de inclusão dentro de um sujeito. Onde e como estariam as mensagens não traduzidas? Ora, para responder a essa questão, "seria então necessário conceber um processo que não seja em primeira pessoa, nem mesmo talvez em pessoa" , argumenta ele. Mas afinal, acrescenta, qualquer modelo corre necessariamente o risco de ser capturado pelo pensamento identitário, pelo recentramento ptolomaico, para retomar aqui a analogia entre a revolução freudiana e a revolução copernicana.


Essas primeiras questões colocadas ao modelo tradutivo do recalcamento permanecem em aberto nesse texto de 1993; são mencionadas em debates posteriores e somente em 2003, dez anos depois, são contempladas com um novo modelo. É curioso notar que esse novo modelo propõe, justamente, a inclusão dentro de uma tópica das mensagens não traduzidas. Estas encontram seu lugar no assim chamado inconsciente encravado, distinto do sistema inconsciente que abriga o recalcado. Com essa observação, queremos chamar a atenção para o fato de que a resposta ao problema do fracasso radical do recalcamento é dada pela via da criação de uma nova tópica, ou seja, a nova proposição amplia a tópica psíquica criando o inconsciente encravado para abrigar as mensagens não traduzidas, deixando para futuras investigações os questionamentos mais diretamente ligados ao aspecto tradutivo do modelo, como, por exemplo: quais são as condições, as causas de um fracasso radical da tradução? O próprio Laplanche formula essa questão, mas limita-se a abrir uma pista de investigação que não explora nesse texto, "confiando a outros o cuidado de continuá-la caso se mostre viável" .


Cabe então retomar, em linhas gerais, as vias que foram exploradas nos trabalhos de colegas que se debruçaram sobre a questão do fracasso radical de tradução, propondo soluções originais aos desafios postos ao modelo tradutivo do recalcamento, entre os quais destacamos M. R. Cardoso, L. C. Tarelho, P. C. Ribeiro e S. Bleichmar.


Questionamentos e prolongamentos ao modelo tradutivo do recalcamento nos trabalhos de estudiosos do pensamento de Laplanche
A primeira investigação de grande fôlego que chegou a propor hipóteses originais a respeito das características das mensagens não passíveis de tradução foi a tese de M. R. Cardoso sobre o supereu, defendida em 1995. Essa investigação tomou como ponto de partida proposições de Laplanche que destacam o caráter não metabolizável dos imperativos categóricos do supereu. Sobre a instância do supereu, nosso autor deixou pouco mais do que essas proposições, que seria melhor qualificar de indícios ou esboços, uma vez que não as desenvolveu. Pois bem, esses indícios são tomados por Cardoso como uma instigação para o início de sua pesquisa: como entender essas proposições para extrair daí uma concepção do supereu condizente com a TSG? O que caracterizaria os imperativos superegoicos que os tornaria equivalentes a mensagens não metabolizáveis, portanto, intraduzíveis? Podemos acompanhar as elaborações de Cardoso sobre essas questões no seu livro Superego e em artigos posteriores.


L. C. Tarelho dedicou-se também a investigar as características das mensagens que estariam destinadas a formar enclaves psicóticos no psiquismo. Na introdução à recente edição brasileira de sua tese de doutorado, ele é muito claro ao expor seu objetivo principal, isto é, ao afirmar que seu trabalho busca exatamente preencher a lacuna deixada pela teorização laplancheana a respeito daquilo que torna uma mensagem rebelde a todo tipo de metábole . Tarelho retoma a questão dos paradoxos pragmáticos, já associada ao universo da psicose e aos entraves de simbolização e interpreta, à luz da TSG, a noção de duplo vínculo proposta pela escola de Palo Alto, o que o leva a formular a seguinte hipótese: o paradoxo seria, no campo das psicoses, o equivalente ao enigmático no campo das neuroses. Salientando o caráter paradoxal que uma mensagem pode conter, esse autor trabalha, em particular, o tipo de mensagem na qual a sexualização e seu combate mostram-se inseparáveis, tornando-a intraduzível.


Além da necessidade de aprofundamento da investigação sobre as mensagens intraduzíveis, diagnosticada pelo próprio Laplanche, novas críticas foram endereçadas ao modelo tradutivo do recalcamento, como a que foi formulada por F. Robert nos seguintes termos: "Pode-se dizer que a criança consegue simbolizar ou teorizar desde o início? Há aí um tipo de adultomorfismo latente em Jean Laplanche, que o leva a falar de uma criança traduzindo ou teorizando desde a origem, ainda que de maneira muito rudimentar" . Essa mesma crítica é encontrada nos trabalhos de S. Bleichmar e de P. C. Ribeiro. Parece-lhes contraditório falar em tradução antes da constituição da instância egoica, que é justamente a instância tradutora e cuja gênese é correlativa do recalcamento originário. Em outros termos, se não há um Eu nas origens do sujeito, quem seria interpelado pelo enigma e quem proporia uma tradução para a mensagem enigmática?


Laplanche não se deteve nessas questões ainda que tenha reconhecido sua importância ao afirmar que, por ter insistido nos elementos de desligamento incluídos nas mensagens do outro, correu o risco de negligenciar o fato de que o outro, parental ou não, fornece também à criança o essencial de seu arsenal de ligação; seu amor, seus cuidados, sua manutenção (holding) e ainda os elementos verbais ou extraverbais indispensáveis à sua autoteorização, às suas traduções . Por seu lado, S. Bleichmar, imersa nos desafios colocados pela clínica com crianças, e muitas vezes com crianças muito novas, foi levada a deter-se nesse problema e a salientar, a partir daí, a dupla faceta do adulto na situação originária. O adulto, como sujeito cindido, possui um inconsciente, sede das fantasias sexuais recalcadas que se infiltrarão nos cuidados com o bebê, mas possui, ao mesmo tempo, um Eu com sua capacidade de amor narcísico, que tornará possível a ligação das excitações que ele próprio gera na criança. Esse movimento de excitação/contenção vindo do adulto está presente desde os primeiríssimos tempos, antes mesmo de qualquer possibilidade de ligação ou de tradução por parte da criança, o que nos leva a propor uma distinção entre as noções de ligação e tradução. Toda tradução implica em ligações das representações que vão constituir a trama egoica, mas só há sentido em falar de tradução a partir do momento em que há um sujeito capaz de ser impulsionado pelo enigma da alteridade, de seu próprio inconsciente e do inconsciente do outro. Antes disso, isto é, no primeiro tempo do recalcamento originário, o termo ligação é mais conveniente para designar aquilo que se inscreve no incipiente aparelho psíquico a partir dos aportes continentes do adulto e que ocorrem essencialmente no domínio do sensorial: o olhar e a voz do adulto que cuida da criança, seus gestos de suporte e de aconchego, entre tantos outros.


Ribeiro concorda com Bleichmar sobre a prioridade do outro no que diz respeito às primeiras traduções, ou seja, sobre a posição do adulto como tradutor originário, agente do recalcamento originário. Mas ele enfrenta a aporia do bebê tradutor por vias diferentes dessa autora ao propor seu próprio modelo do recalcamento originário em seu livro O problema da identificação em Freud e em textos mais recentes, entre os quais se destaca "Recalque originário, gênero e sofrimento psíquico", em coautoria com F. F. Lattanzio .


O último questionamento ao modelo tradutivo do recalcamento que gostaríamos de salientar diz respeito ao primeiro tempo desse modelo. Conforme vimos, Laplanche define o primeiro tempo como o tempo da implantação da mensagem enigmática e afirma ainda que, nesse momento, a mensagem enigmática é externa, muito concretamente implantada na periferia do indivíduo. Ora, essa proposição não deixa de nos interpelar: como conceber uma implantação de mensagem enigmática na periferia do indivíduo? Devemos tomá-la simplesmente como uma metáfora? Podemos constatar que, embora tendo sugerido o realismo dessas inscrições inaugurais, Laplanche não se deteve na sua elucidação, como fez com os conteúdos inconscientes. Cabe então perguntar pelo tipo de realidade dessas primeiras inscrições. Convém nomeá-las como mensagens enigmáticas se não há ainda um sujeito a ser interpelado?


Encontramos, mais uma vez em Bleichmar, um ponto de vista novo sobre essas questões. Não é possível retomar, dentro dos limites deste artigo, o extenso percurso da autora para construir sua concepção das inscrições inaugurais no aparelho psíquico, que contém divergências significativas em relação à concepção laplancheana, ao mesmo tempo que surge de um diálogo muito fecundo com a clínica. Para dar apenas uma primeira indicação, podemos dizer que ela concebeu essas primeiras inscrições a partir do paradigma freudiano da experiência de satisfação, desenvolvido no Projeto de uma psicologia, com sua concepção dos traços mnêmicos desprendidos das vivências que estiveram na sua origem . Segundo a autora, esses traços mnêmicos só se tornam mensagens enigmáticas no segundo tempo do recalcamento originário, momento em que começa a haver um sujeito capaz de ser impulsionado pelo enigma da alteridade.


Como o leitor pode constatar, são muitas e diversas as investigações que enfrentaram os problemas que foram sendo identificados à medida que Laplanche avançava na construção de seu modelo tradutivo do recalcamento. Privilegiamos aqui as referências aos autores brasileiros e a Bleichmar não só por estarem mais próximos de nós, mas por sua importância, sua fecundidade e pelas diferentes perspectivas que abrem no sentido indicado por Laplanche, isto é, na tentativa de minimizar o recentramento necessariamente operado pelos modelos teóricos. Esses autores enfrentaram os desafios ao modelo tradutivo a partir de seu ponto mais delicado, isto é, da paradoxal tarefa que consiste em apreender "um sujeito anterior ao sujeito e recebendo seu ser, seu ser sexual, de um exterior anterior à distinção interior-exterior" , conforme a bela formulação de Laplanche e Pontalis. Tarefa que buscamos relançar com a presente reflexão.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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