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Resumo
Wilhelm Reich defendeu a psicanálise como instrumento de compreensão e transformação dos conflitos políticos, e isso teve consequências na história institucional do movimento psicanalítico. Partindo de sua expulsão, analisam-se os efeitos da institucionalização da psicanálise, em especial sobre a relação entre psicanálise e política. Sua obra Psicologia de massas do fascismo e a metapsicologia da cisão do eu, da recusa e do fetiche permitem refletir sobre o papel político das classes médias na ascensão do fascismo, tanto na Europa de 1933 como na conjuntura atual brasileira.


Palavras-chave
Wilhelm Reich, psicologia de massas, cisão do eu, fascismo, conjuntura brasileira.


Autor(es)
Mário Pablo Fuks Fuks
é médico psiquiatra e psicanalista argentino formado na Universidade Nacional de Buenos Aires, radicado em São Paulo, Brasil, desde 1977. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor do curso de psicanálise, coordenador do curso de psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, membro da equipe editorial do Boletim Online, membro do Grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise e supervisor do Projeto de Pesquisa e Intervenção em Anorexia e Bulimia. Delegado do Departamento da Flappsip, no Congresso de Porto Alegre. Na Argentina, foi médico-chefe do Departamento de Adultos do Serviço de Psicopatologia do Policlínico de Lanús, professor adjunto da Cátedra de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UNBA. Coordenador do plano piloto de formação do Centro de Docência e Investigação (cdi) da Coordenadora de Trabalhadores de Saúde Mental (ctsm) de Buenos Aires e professor adstrito ao Departamento de Investigação da Faculdade de Psicologia da UNBA.


Notas

 

1.Uma versão ampliada de "Reich e a relação entre psicanálise e política" foi publicada em 2019 na revista Intercambio Psicoanalítico, VII(1), 130-142.

2.E. Roudinesco e M. Plon, Dicionário de psicanálise.

3.Idem, p. 230 (ver verbete Fenichel).

4.L. Duarte-Plon, O inconsciente sociopolítico.

5.M. Langer, Prefácio, p. 9.

6.W. Reich, Psicologia de massa do fascismo, p. 46. É o nacional-socialismo o que traz a possibilidade de um sentimento de união. Como se forma e se sustenta dito sentimento? O fato de o movimento fascista ter podido unificar a pequena burguesia se explica pela psicologia de massas. "A posição das classes médias é determinada pela sua posição no modo de produção capitalista, pela sua posição no aparelho do estado capitalista, pela situação familiar particular, que é determinada diretamente pelo processo de produção, mas que fornece a chave para compreender a sua ideologia. Podemos comprová-lo no fato de que os pequenos camponeses, funcionários e comerciantes médios mostram diferenças. econômicas entre si, mas se caracterizam por uma situação familiar, em seus grandes traços, idêntica" (Idem, p. 44).

7.Idem, p. 46-47, itálico do autor.

8.Idem, p. 47.

9.Sinônimos: halo, auréola, anel brilhante.

10.    Segundo a tradução em espanhol, "acaba por cavar una fosa". Ver W. Reich, La psicología de masas del fascismo.

11.    W. Reich, Psicologia de massa do fascismo, p. 47.

12.    S. Freud, "Feticismo".

13.    "O sujeito contemporâneo, forte candidato à depressão, está encerrado num círculo de ferro. Ele tem, por um lado, uma exigência de autonomia proveniente dos ideais da época associados a um imperativo de gozo consumístico que transforma os bens em suprimentos narcísicos. E tem, por outro lado, a impossibilidade crescente de gerir autonomamente sua existência, dados os limites impostos por enormes poderes que não controla" (M. P. Fuks, Nos domínios das neuroses narcísicas e suas proximidades, p 212).

14.    J. Souza, A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade.

15.    No capítulo III, "A teoria racial", Reich cita Mein Kampf, de Hitler (p. 224): "A mistura de sangue e o abaixamento por ela ocasionado do nível da raça, são a causa única da morte das civilizações antigas; pois os homens não perecem perdendo guerras mas perdendo essa força de resistência que é própria apenas do sangue puro" (W. Reich, Psicologia de massa do fascismo, p. 74-75).

16.    Literalmente, "crime de sangue", significa também pecado.

17.    Ver T. Bilenky, Pré-candidato, Bolsonaro tenta criar a "extrema direita light", Folha de S. Paulo, 9 jun. 2016, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1779759-pre-candidato-bolsonaro-tenta-criar-a-extrema-direita-light.shtml, consultado em: 15/2/2020.

18.    J. Souza, op.cit.



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Abstract
Wilhelm Reich defended psychoanalysis as an instrument to understand and to transform political conflicts, and this had consequences on the institutional history of the psychoanalytic movement. Beginning with Reich’s expulsion of the International Psychoanalytical Association, this text analyses the effect of institutionalization of psychoanalysis, bringing light specially to its relation with politics. Reich’s Psychology of the Masses of Fascism and the metapsychology of the splitting of the ego, disavowal and fetish allow the reader to think on the middle classes’ political role in the rise of fascism, both in Europe, in 1933, and in the current Brazilian conjuncture.


Keywords
Wilhelm Reich, mass psychology, splitting of the ego, fascism, Brazilian conjuncture.

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 TEXTO

Wilhelm Reich e a relação entre psicanálise e política

Wilhelm Reich and the relation between Psychoanalysis and Politics
Mário Pablo Fuks Fuks

O artigo que o leitor encontrará a seguir foi originalmente apresentado noCongresso Flappsip, Configurações atuais da violência. Desafios à psicanálise latino-americana, realizado em Montevidéu, nos dias 24, 25 e 26 de maio de 2019, através de gravação em vídeo (a gravação original, em espanhol, encontra-se disponível no site www.revistapercurso.uol.com.br)[1]. Também foi apresentado pelo autor no evento Dia Flappsip, realizado pelo Departamento de Psicanálise em 10 de agosto de 2019 no Instituto Sedes Sapientiae. Nesse evento, foram apresentados 32 trabalhos de membros do nosso Departamento que integraram o Congresso de Montevidéu.

O artigo de Mario Fuks foi escolhido pela Associação Escola de Psicanálise e Psicoterapia para Graduados de Buenos Aires, filiada a Flappsip, para ser lido na mesa realizada nessa associação após o congresso Flappsip. O autor recebeu a seguinte comunicação:

Nos complace en comunicarle que su trabajo "Reich y la relación entre psicoanálisis y política", presentado por usted en elCongreso Flappsip, fue elegido para ser leído en el marco de la mesa Post congreso Flappsip, a realizarse en nuestra asociación el 17 de julio próximo ya que resulta representativo de la problemática del congreso y de los motivos fundacionales de nuestra federación. La lectura de su trabajo dará cuenta del espíritu del congreso para aquellos de nuestros socios y alumnos que no pudieron participar del mismo.

Reciba nuestro afectuoso saludo, Norberto Lloves y Nora Rabinovich, Delegados de la aeapg en Flappsip.

É com satisfação que acompanhamos a escolha da Aeapg, publicando em Percurso este artigo. Além da importância do tema abordado, é também uma forma de representar a participação e implicação de tantos membros do Departamento naquele Congresso, através do artigo de Mario Fuks, psicanalista atuante na fundação e construção do Departamento de Psicanálise e que chegou ao Brasil já com uma longa história de engajamento político e clínico na Argentina.

Conselho editorial

 

A presença marcante e conflitiva de Wilhelm Reich no movimento psicanalítico foi processada institucionalmente pela via de sua expulsão da Sociedade Internacional de Psicanálise em 1934. Esse acontecimento coincide com o início de um longo período de fechamento ideológico e doutrinário da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e de suas filiais nos diversos países.

Nos anos 1930 em Viena (Áustria), a juventude intelectual era atraída intensamente pela psicanálise e pelo marxismo. Sigmund Freud e Karl Marx haviam criado duas ciências que traziam uma nova consciência ao homem. Um grupo significativo de analistas austríacos e alemães compartilhava esse interesse. O mais destacado foi Wilhelm Reich. Para ele, a aproximação e complementação entre os dois pensamentos iria enriquecer cada um deles. Para Emilio Rodrigué e Elisabeth Roudinesco, não há dúvida de que a expulsão de Reich foi uma decisão política. As posições ideológicas e políticas assumidas pelos analistas de esquerda, principalmente por Reich, entram em uma dinâmica de oposição com as posições dominantes na instituição psicanalítica, e isso desemboca na formulação, pela primeira vez, de uma política oficial. Rodrigué afirma que Wilhelm Reich foi o primeiro sintoma, no sentido psicanalítico do termo, da institucionalização da psicanálise.

Nos anos 1970, a relação política-psicanálise volta a movimentar a psicanálise e o "caso Reich" é retomado como um analisador dessa problemática e dos processos de institucionalização. A instituição psicanalítica "oficial" é questionada, e se produzem movimentos de inovação, ruptura e criação de novos projetos coletivos?- como o Centro de Docência e Investigação da Coordenadora de Trabalhadores de Saúde Mental em Buenos Aires, o Curso de Psicanálise (1976) e o Departamento de Psicanálise (1985), ambos no Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo?- como espaços psicanalíticos autônomos e politizados.

Marie Langer aporta seu testemunho direto sobre as circunstâncias reais político-institucionais. Ela, que tinha na época 24 anos, era médica e estava iniciando sua formação psicanalítica em Viena, relata que esteve em 1932 em Berlim (Alemanha), ouviu Adolf Hitler falar diante de uma concentração de nazistas e tomou a decisão de militar na esquerda. Sentia que era absurdo entregar-se sem lutar. Freud, diz ela, negava o perigo, idealizava a Alemanha de Goethe, que achava avessa às extravagâncias bélicas. "Nós, os jovens politizados, pensávamos diferente", diz a autora.

Na Áustria todos os partidos de oposição foram proibidos; a metade da população pertencia a eles, e muitos militavam clandestinamente. Frente a isso, as autoridades da Associação Vienense decidiram que, para preservar a psicanálise, era necessário proibir seus integrantes de exercer qualquer atividade política ilegal e de atender pessoas que estivessem em tal situação. Precisavam optar. Frente à circulação de rumores quanto ao engajamento político de Langer, o seu analista lhe colocou as seguintes possibilidades: ou ela escolhia a militância política e abandonava a análise, ou ficava na psicanálise e renunciava à prática política. Havia uma terceira possibilidade, manter as duas coisas, mas evitar falar muito disso na análise. Solução obviamente problemática desde o ponto de vista dos princípios do método e da ética da psicanálise. Fica nessa situação por um tempo, mas após um incidente policial que complica sua situação na instituição, decide sair dela e exilar-se. Vai para Espanha e se engaja como médica nas Brigadas Internacionais, que lutam contra o franquismo. Após a derrota dos republicanos, ela abandona Europa, vai para o Uruguai e acaba por radicar-se finalmente em Buenos Aires (Argentina), onde retoma o trabalho psicanalítico. Junto a colegas argentinos e outros analistas, também imigrantes, funda em 1946 a Associação Psicanalítica Argentina, a primeira na América do Sul a ser reconhecida pela IPA.

Com o início da Segunda Guerra Mundial se produz a diáspora dos analistas centro-europeus para diversas regiões do mundo, e a psicanálise torna-se não só apolítica como também acrítica, adaptativa, tendendo ao isolamento e ao encapsulamento intrainstitucional. As instituições psicanalíticas se transformaram em corporações profissionalistas, verticais, burocráticas. Segundo Roudinesco[2], os analistas da esquerda freudiana, assim como muitos outros da chamada segunda geração internacional, tiveram de enfrentar o exílio e a integração numa nova cultura. "Encontraram na IPA uma nova pátria freudiana, e foram então os artífices do legitimismo ou, ao contrário, contestaram o aparelho freudiano, chegando até a cisão, o exílio interior, ou ainda a mudança de prática."[3]

Em 1971, Langer escreve Psicanálise e/ou revolução social. Afirma que nos anos 1930 os analistas da geração jovem foram convencidos pelo grupo de analistas mais velhos a optar por uma ou pela outra. Agora, em 1970, os analistas mais velhos acompanham os jovens que decidem questionar a instituição e construir um caminho que não exclui essas possibilidades, acrescento eu, não fomos poucos os jovens nem em número nem em entusiasmo. Langer se constituiu em porta-voz do Grupo Plataforma que, junto com o Grupo Documento, também da Associação Psicanalítica Argentina, protagoniza a primeira saída por motivos ideológicos e políticos na história do movimento psicanalítico. Além dos analistas europeus ligados à Plataforma Internacional, já existiam na América Latina outros grupos, como aqui em São Paulo, desde a década de 1960. Um deles, com Regina Schnaiderman entre seus líderes, funda em 1976 o já mencionado Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ao qual viemos nos somar analistas argentinos que migramos ao Brasil devido à repressão na Argentina.

Na América Latina, ao longo da Guerra Fria, e em diversos graus e formas, as instituições oficiais estiveram submissas e, às vezes, até sintonizadas com os regimes ditatoriais, fato que no Brasil existiram exemplos flagrantes.

Os acontecimentos na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro se revestem de uma gravidade sem comparação. Descobriu-se ali que um candidato em formação, o Dr. Amílcar Lobo, desempenhava-se, de forma paralela e clandestina, usando o codinome "Dr. Cordeiro" como tenente médico das equipes de tortura da ditadura. A informação chega a Buenos Aires por meio de uma carta anônima que, logo depois, teve sua autoria identificada, mercê a utilização de estudos grafológicos de "corte" policial, na instituição do Rio de Janeiro, como sendo de Helena Besserman Viana, o que desencadeou pressões e ameaças por parte das autoridades. Anos depois, quando o escândalo estoura, ela publica um livro que intitula Não conte a ninguém, pondo em evidência a atitude de encobrimento por parte das autoridades nacionais e internacionais. O livro sacudiu o establishment psicanalítico. Obrigou a:

[...] tomar conhecimento dos sintomas que podem produzir na realidade, a implicação desconhecida da dimensão política na transmissão da experiência analítica e nas instituições psicanalíticas. Os sintomas que se manifestaram no Rio não eram apenas locais ou regionais, mas internacionais, pois diziam respeito a todo o movimento desde a Segunda Guerra.[4]

 

Psicologia de massas do fascismo

São novas perguntas emergindo também de novos acontecimentos políticos, o que leva Reich a escrever uma de suas obras mais importantes: Psicologia de massas do fascismo. Por que a proposta socialista, com seus ideais de liberdade e igualdade, foi derrotada nas urnas, subjugada pela ideologia nacional-socialista? Hitler chega ao poder pela via eleitoral, e este é o fato mais inquietante, o fato maldito, para as forças de esquerda, e que requer novas respostas.

Foi a prática em Sex-Pol?- movimento em que se debatiam desde problemas de moradia e dilemas religiosos até as atitudes negativistas dos educadores em relação à sexualidade e às dificuldades erótico-afetivas vivenciadas por crianças e adolescentes?- o que possibilitou a Reich ver a crise em que estava imersa a juventude. Ver de que maneira e até que grau a moral autoritária implantada desde a infância, através da repressão sexual inerente ao patriarcado, entrava em choque com novos valores morais, formas de vida e concepções de mundo que irrompiam na cena social, sinalizados pelos movimentos artísticos de vanguarda, as revolucionárias descobertas científicas, a onda de impacto produzida pela Revolução Russa, a luta pelos direitos sociais da mulher, as formulações da psicanálise e a franqueza com a qual as questões sexuais começavam a ser abordadas. Esse conflito axial tornava o jovem apático e temeroso de se responsabilizar por seu próprio destino. "As massas, frustradas sexualmente, tornam-se neuróticas, e o neurótico sabe sofrer, mas não sabe lutar", dirá mais tarde Langer, comentando as conclusões de Reich[5].

É nesse campo ideológico contraditório que o nazismo vai explorar e manipular a ideologia nacionalista, racista, da honra e do dever, da disciplina e da exaltação da virilidade.

Mas há um ponto importante a destacar de começo: é a análise que faz Reich da psicologia de massa da pequena burguesia, em função do papel determinante que lhe coube naquelas eleições. O sucesso de Hitler não reside em sua personalidade nem em sua ideologia objetiva e não se explica por uma "mistificação" das massas induzida só do exterior. A questão central é saber o que acontecia no seio das massas para que elas se somassem a um partido cujos chefes perseguiam uma política oposta aos interesses das massas trabalhadoras. O nacional-socialismo pôs a descoberto o conjunto de contradições que caracterizam a psicologia de massas da pequena burguesia.

O homem da classe média não pode solidarizar-se, nem com a própria camada social, nem tampouco com o proletariado; com a própria camada social, porque nela reina a concorrência, com o proletariado industrial, porque o que ele mais teme é precisamente a proletarização.[6]

A consciência social do funcionário do Estado e do empregado médio não se caracteriza pela consciência de uma comunidade de destino com seus colegas de trabalho, mas por sua posição em relação à autoridade pública e à nação. "Esta posição consiste numa completa identificação com o poder de estado; no empregado, numa identificação com a empresa que serve"[7]. Tudo se resume a uma fórmula: "Eu sou o estado, a autoridade, a empresa, a nação"; esta identificação "representa uma realidade psíquica e constitui um dos melhores exemplos de uma ideologia transformada em força material"[8].

Trata-se, então, de algo da ordem do ser, que o coloca acima do proletário e no meio, entre ele e a autoridade. Reich explicita claramente o sentido do conceito de identificação na psicanálise, que, conforme sabemos, foi amplamente trabalhado por Freud na Psicologia das massas e análise do eu como constitutivo da estrutura de uma massa psicológica, pela dupla identificação dos membros com o líder e consequentemente entre seus eus.

Essa identificação vertical não daria lugar a uma identificação solidária lateral com seus colegas, com sua classe, não só em razão da concorrência como também porque o que galvaniza o sujeito é a posição intermediária que ocupa entre a autoridade e o trabalhador manual ou proletário. É um subalterno com respeito a essa autoridade, e um representante dela em suas relações com seus subordinados, gozando, por esse motivo, de uma especial proteção moral (não material).

Poderíamos dizer que se trata de um halo[9] protetor, de uma investidura emblemática, de um efeito fetichístico, resultado de um processo que começa com buscar parecer com seus superiores idealizados, para ir se transformando em algo à imagem e semelhança da classe dominante.

"Com o olhar constantemente virado para o alto [afirma Reich] o homem da classe média acaba formando uma forquilha[10], uma bifurcação que vai se aprofundando entre sua situação econômica e sua ideologia"[11]. Vive em condições de penúria, mas se preocupa antes de mais nada com a aparência, o chapéu alto e a casaca, a vestimenta, o visível. Não aparece no texto de Reich nenhuma referência explícita aos conceitos de cisão ou clivagem do eu, de recusa e de fetiche, introduzidos por Freud alguns anos antes, para explicar metapsicologicamente alguns aspectos do fetichismo e das psicoses[12]. Mas não é difícil reconhecer sua possível pertinência nesse valioso estudo sobre a ideologia da pequena burguesia. Principalmente quando sentimos quanto ecoa?- na ideia reichiana de "forquilha" ou de "fossa que é cavada"?- o conceito de cisão ou clivagem vertical do eu. Esta se produz entre uma parte do eu que acolhe a percepção de uma realidade factual porém recusada (verleugne) em sua significação angustiante e outra parte do mesmo em que domina a aderência a uma crença narcísica onipotente à qual não se renuncia e que se teima em sustentar através do investimento perceptual repetitivo e estereotipado do fetiche.

Aprendemos, por nossa parte, que os complexos processos de subjetivação contemporâneos impõem fragilizações e crises narcísicas que envolvem defesas desse tipo: recusa da realidade?- ou de determinados aspectos dela?- com sua concomitante criação de realidade ou de uma neorrealidade, que busca impor-se ao mundo dos objetos compartilhados com tenacidade adictógena.

"Consumimos" angústia narcisista em suas diferentes formas de apresentação: paranoia, divisão e polarização "eles versus nós", fabricação de bodes expiatórios, medo de estranhos atravessando as fronteiras e vindo bater em nossa porta, etc.

O espaço compartido se impregna desses objetos assustadores, formando uma trama, um véu embaixo do qual se escondem vivências diversas: ressentimento e frustração devido à redução do salário e ao status social e qualidade de vida, que geram culpa dada sua interpretação subjetiva neoliberal[13] em termos de fracasso pessoal, ao mesmo tempo que o medo real da proletarização se incrementa ao máximo pela desumanização que transborda do passado de escravidão. "Socializado no mercado, o homem de classe média só busca neutralizar uma autopercepção desvalorizada e culposa de fracasso pessoal, capaz de levá-lo a uma autoagressão destrutiva de alcoolismo e depressão, canalizando essa agressividade para um objeto externo"[14]. Reich demonstra como ser portador de uma moral de honra e dever, é possuir uma diferença essencial, uma superioridade ligada a uma identidade nacional e racial pura. O eixo em torno do qual se organiza a ideologia fascista alemã e sua teoria racial. A tarefa mais nobre de uma nação consiste em salvaguardar a pureza da raça, e salvaguardá-la da mestiçagem, que conduz sempre à decadência da raça superior[15]. Se apoia em razões naturais (seleção natural, supervivência do mais forte), mas a mescla de sangue também implica um pecado, contrariar a vontade do Criador eterno. Sua realização prática e a persecução e aniquilamento dos judeus, na Alemanha e nos territórios ocupados.

Mas observa, ao mesmo tempo, de maneira aguçada, que a expressão mescla de sangue (blutschande[16]) significa também pecado, contrariar a vontade do Criador eterno. São articuladas aí, dessa maneira, fantasias inconscientes de forte carga afetiva: a outra acepção de blutschande é incesto.

Na relação que a massa estabelece com o líder, está presente também essa identificação profunda e fusional com ele e com a pátria, a nação, que ele encarna, que ele é. O líder constrói seu discurso sem necessidade de argumentos, com base em um apelo afetivo direto de modo a propiciar essa identificação.

Em uma declaração, em junho de 2016, do deputado Jair Bolsonaro, referida ao povo, na ocasião de responder se adequaria seu discurso à situação de pré-candidatura: "Costumo dizer que não falo o que o povo quer. Eu sou o que o povo quer"[17] (itálico meu). Trata-se aqui, novamente, de algo posto no sentido de um ser: ser completo, autossuficiente, que não representa, que não precisa de mandato, que é propriamente o soberano absoluto, ao modo do pai onipotente e despótico da horda primitiva postulado por Freud.

Já havia protagonizado diversos episódios de ressonância, como sua homenagem pública, durante o impeachment de Dilma Rousseff (agosto de 2016), dirigida ao coronel Brilhante Ustra?- torturador que chefiou um dos maiores órgãos de repressão da ditadura?-, suas tomadas de posição sexistas, homofóbicas e misóginas violentas, seu desprezo pelas minoras étnicas.

fato inaudito dessas evidências de fascismo no pré-candidato, em ascensão em 2016, transforma-se no fato maldito, em novembro de 2018, em que ganha o primeiro e o segundo turno das eleições. Não dá para dizer que não se sabia do que se tratava. A classe média voltou a jogar seu papel. Igual ao candidato de ultradireita, é uma classe "ferida". Revoltada com o desemprego estrutural, ameaçada pelo sentimento de fracasso derivado de sua ideologia, ela tem despejado toda sua fúria agressiva contra um bode expiatório: o Partido dos Trabalhadores (PT) esquerdista e corrupto. A ideologia fascista serviu para projetar para fora essa agressão, configurando um laço paranoico que impregna o ambiente político cultural, incrementa a hostilidade e empobrece a reflexão e o debate.

O antipetismo é incentivado como modo de colonizar o sentimento antipopular da classe aliada da elite conservadora e tropa de choque de seus interesses. Ódio e desprezo pelo povo são encobertos por um discurso de ódio e desprezo pela política. Destinado a impedir, sendo isso o que teria sido fundamental, sua identificação com os mais pobres. Estes precisam, "sim", da política.

Repetindo. O perigo da proletarização é real. Ao mesmo tempo, a sensibilidade moral que exibem demonstra uma superioridade?- de halo, de fetiche?- que faltaria às pessoas inferiorizadas que aceitam a corrupção seletiva, porque supostamente sobrevivem à custa do Estado.

Por aí é que colhe o bolsonarismo. Tenderá a expressar-se no ódio ao pobre e à sua representação política, a esquerda. Esse parece ser o aspecto crucial da prédica política de Bolsonaro. Sem explicitar qualquer tipo de proposta política, expressa o ódio e a frustração de classe dos ameaçados pela decadência social[18].

Uma parte menor, porém importante, da classe média apoiou o candidato petista e se sentiu representada, configurando a base potencial para uma frente antifascista, possibilidade que começou a circular entre o primeiro e o segundo tempo eleitorais. Muitos psicanalistas brasileiros comprometidos na luta, apoiaram ativamente essa iniciativa em defesa dos direitos conquistados e em apoio da democracia?- e continuam a fazê-lo?- criando diversos espaços de articulação e expressão. Formaram amplas redes organizativas, formularam declarações coletivas, difundiram-nas dentro e fora do Brasil, publicaram-nas em FLAPPSIP. Criaram em seus âmbitos institucionais dispositivos originais como as rodas de conversa, horizontais e abertas a uma escuta ampla, solidária e reflexiva das demandas emergentes.

No entanto, a frente política antifascista não vingou. Foi consagrado um político de ultradireita, negacionista da ditadura militar, autoritário e fascista, como presidente do Brasil.

A classe média quebrou o pacto democrático para abraçar a ideia de que a corrupção do Estado é a fonte de todos os males do Brasil e não, por exemplo, o saqueio "legalizado" pelos bancos e as grandes corporações. É óbvio que a corrupção é recriminável, mas não foi ela que deixou a população mais pobre.

A análise do papel desempenhado pelo fascismo vem ganhando relevância a partir dos acontecimentos políticos dos últimos tempos no continente, nos Estados Unidos e na Europa. Entretanto, depois dos últimos acontecimentos no Brasil, torna-se imperioso instaurar este debate na América Latina, por tudo o que já temos atravessado, por tudo o que nos irmana, por tudo o que nos une, aprofundando e ressignificando juntos, a partir de conjunturas novas, a relação entre psicanálise e política.


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