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Resumo
Resenha de Ana Maria Sigal, Bárbara Conte e Samyra Assad (orgs.), Ofício do psicanalista II: por que não regulamentar a psicanálise, São Paulo, Escuta, 2019, 206 p.


Autor(es)
Flavio Carvalho Ferraz Ferraz
é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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 LEITURA

Em defesa do ofício do psicanalista [Ofício do psicanalista II: por que não regulamentar a psicanálise]

Defending our psychoanalytic craft
Flavio Carvalho Ferraz Ferraz

Depois da publicação da primeira coletânea de trabalhos em torno do tema da formação do psicanalista face às querelas da regulamentação de sua prática, o grupo "Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras" volta à carga com mais um livro prenhe de reflexões valorosas para todos os que se dedicam à psicanálise.


O alicerce da argumentação central desse livro já estava construído no volume anterior (Ofício do psicanalista: formação vs regulamentação, organizado por Sonia Alberti, Wilson Amendoeira, Edson Lannes, Achyses Lopes e Eduardo Rocha e publicado pela Casa do Psicólogo em 2009). Ali se achava a história do movimento "Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras", criado no ano 2000 com o propósito de defender a psicanálise tal como Freud a formulara, ou seja, lutar para que se mantenham asseguradas as condições de possibilidade de sua existência e desenvolvimento de acordo com a ética particular e genuína por ela própria estabelecida.


Esta conformidade da psicanálise?- em sua prática, em sua pesquisa e na formação de analistas?- com a ética que lhe é inerente é o ponto fundamental do que se discute nesse livro, por mais que os operadores teóricos de cada autor comportem variações expressivas. Essa ética, que norteia o ofício cotidiano do analista, passa pelas diretrizes de sua formação nas entidades de transmissão e vai até a definição das relações da psicanálise com a ciência, a sociedade, a cultura e as estruturas de poder do Estado.


A criação do grupo Articulação se deu em razão da necessidade de os psicanalistas virem a público para defender a psicanálise dos diversos ataques que ela recebe praticamente desde sua invenção por Freud.


Não é surpresa, portanto, que muito do que se discute nesse livro esteja inspirado no primeiro grande texto de defesa da psicanálise, "A questão da análise leiga", publicado por Freud em 1926. Ali, com o objetivo de defender Theodor Reik do processo judicial que o acusava de charlatanismo por praticar a psicanálise a despeito de não portar um diploma médico, Freud acaba por produzir um documento sobre a ética peculiar a sua disciplina. E, em conformidade com a epistemologia solidária a essa mesma ética, ele produz definitivamente o descolamento da psicanálise do campo da medicina, donde a expressão qualificativa "leiga".


Desde Freud, em diversos momentos históricos, a psicanálise viu-se obrigada a reafirmar sua especificidade epistemológica diante de forças que visavam a enfraquecê-la ou mesmo a exterminá-la. Algumas vezes, a partir de um discurso pretensamente hegemônico na definição do que seria a ciência, visou-se à negação de uma legitimidade da prática analítica, uma vez que não se pode enquadrá-la nos requisitos das ditas ciências duras. Outras vezes, foram as políticas de regimes autoritários que tentaram proscrevê-la pelo seu caráter subversivo.


O grupo Articulação nasce no contexto de um desses ataques, no nível mundial, quando surgiram na Europa projetos de regulamentação da prática analítica que tinham em vista a política de saúde subvencionada pelo Estado. Neste momento, no Brasil, a psicanálise se via ante uma ameaça que, por sua particularidade, era ainda mais grave. Trata-se do ataque violento de instituições que deturpavam totalmente seus princípios, propondo cursos e programas de treinamento geridos por igrejas evangélicas. Esse fato impressionante ganhou ares paroxísticos quando esses grupos, amparados pelo crescimento de sua influência na política nacional, passaram a arregimentar forças nos poderes da república a fim de impor uma regulamentação que atendesse a seus interesses e, ao mesmo tempo, alijasse as instituições sérias que tradicionalmente ofereciam a formação psicanalítica.


Pois bem, desse ataque resultou o que melhor se poderia esperar: entidades psicanalíticas das mais diversas tendências se uniram num grupo que conseguiu permanecer coeso graças à definição do que havia de comum entre todos. Esse traço de comunidade era a ética da psicanálise, seu caráter leigo e os elementos inegociáveis da formação do analista, como a análise pessoal levada a sério. Poderia parecer improvável, mas o grupo Articulação passou a contar com entidades que iam desde a Febrapsi, representante nacional da IPA, até associações francamente lacanianas, passando por grupos mais pluralistas, como o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, do qual Ana Maria Sigal foi uma aguerrida representante desde o momento inicial.


Tratava-se, pois, de defender a psicanálise de sua apropriação oficial por grupos oportunistas que nem sequer compreendiam qual era sua particularidade no campo do conhecimento. Como se concluía no primeiro volume, não há vigília destinada a garantir o espaço da psicanálise que não inclua a luta contra sua regulamentação pelos poderes do Estado. Esta é uma unanimidade entre as entidades que participam da Articulação: desde Freud, a psicanálise só se sustenta em duas regras: a associação livre, por parte do analisando, e a abstinência, pelo lado do analista.


Assim, é a partir dessa concepção em comum, ou desse "inegociável", que o livro Ofício do psicanalista II se estrutura. Nele encontramos autores com ponto de vista e referenciais teóricos próprios que vão, capítulo por capítulo, compondo um tecido de argumentações que destacam os fundamentos da asserção de que a psicanálise não pode ser regulamentada. Há, entre outros, capítulos de forte tonalidade lacaniana, que recorrem ao próprio ensino de Lacan para encontrar as justificativas no seio mesmo da sua teoria. Se não, vejamos.


Logo na apresentação, assinada pelas organizadoras, somos lembrados de que a resistência à psicanálise, desde sempre, esteve ligada a seu potencial subversivo, condizente com sua recusa a tudo aquilo que já está dado ou é imposto moralmente. Nesse sentido, faz-se referência à genealogia do grupo Articulação, que, de certo modo, é tributário do expressivo acontecimento que foi a reunião dos Estados Gerais da Psicanálise, em Paris, no ano 2000. Ali se afirmava a autonomia da psicanálise em relação a todas as modalidades de psicoterapia e sua independência em relação aos poderes regulatórios do Estado. Note-se que isso já coincidia com a primeira proposta de regulamentação da psicanálise no Brasil, levada a cabo por um deputado pastor evangélico que apresentava um modelo de formação que mais tendia a uma bizarrice.


Ainda na apresentação, as organizadoras sintetizam de modo claro o argumento fundante de todo o volume:

 

A questão que se repete, e que é objeto do livro, está centrada na ideia de que não é possível pensar a formação de um psicanalista com regras e normas determinadas por uma regulamentação. Reafirma-se que a formação supõe um percurso singular, único e pessoal: a travessia subjetiva da experiência analítica, a qual se torna um instrumento de trabalho fundamental para a posição de escuta, além da supervisão e do arcabouço teórico. Estes são os três pilares que, se regulamentados, podem vir a se transformar em leis vazias que justificariam projetos de cunho religioso, ou cursos com interesses econômicos (p. 8).

 

O texto de apresentação é finalizado com um levantamento do trabalho efetivo do grupo Articulação, trazendo a lista de documentos já produzidos por ele. Trata-se de intervenções junto aos poderes da república, em defesa dos pontos de vista referidos acima.


Ana Maria Sigal, além de caracterizar o grupo Articulação e aquilo que o fundamenta, lembra que o próprio Freud já afirmara que, como profissão, a psicanálise é algo impossível. Daí a escolha do termo "ofício" para designar sua prática. Argumenta que, na psicanálise, visa-se ao encontro do sujeito com sua verdade, o que não pode seguir as leis da lógica cartesiana, mas as leis do inconsciente. Isso a tornaria avessa a leis externas, esquemas burocratizantes e normas a cumprir.


Antônia Portela Magalhães busca um argumento na história: lembra a diferença entre Freud e seus mestres quanto à posição frente ao que se escuta de um paciente. A descoberta do inconsciente só foi possível porque Freud se encontrava numa posição não regulamentável frente ao desejo.


Bárbara de Souza Conte afirma que a transmissão e a garantia do adequado exercício da psicanálise buscados numa instituição decorrem de um pressuposto freudiano que é o mesmo da ciência moderna: "o descentramento do sujeito, ou seja, o homem, em sua razão, não detém o domínio do conhecimento" (p. 31).


Denise Maurano, reiterando que a autorização para a prática da psicanálise não provém de um diploma universitário nem de nenhuma titulação, aprofunda-se na argumentação lançando quase que uma provocação: não se pode regulamentar a psicanálise porque o psicanalista não existe! Ele é uma função assumida por alguém que, tendo passado pelo tripé da formação psicanalítica, situa-se no campo da transferência. Ocupa a "estranha" função de fazer-se meio para o Outro.


Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura defendem a ideia de que é impossível ordenar, prever e regulamentar a exigência central da análise, qual seja, a de abrir para o sujeito a via do desejo, da decisão subjetiva e do ato sempre contingente que lhes corresponde. No lugar de regulamentação, o que legitima a análise é a transferência produzida em trabalho.


Gêisa de Carvalho S. Ferreira, partindo da ideia de que "o sujeito freudiano, marcado pela Spaltung, é antinômico à boa ordem, à harmonia e à felicidade", concluirá que a formação do analista não se ajusta a modelos profissionalizantes convencionais nem a certificações oficiais.


Gustavo Soares e Valéria Quadros traçam um histórico minucioso do movimento Articulação, enfatizando sua ligação com os Estados Gerais da Psicanálise. Alertam para o risco representado por uma situação em que um Estado regulador passasse a ter o poder de dizer o que é ou não psicanálise e quem poderia ou não transmiti-la.


Hemerson Ari Mendes retoma a trajetória de Freud, que teve que transitar da identidade médica à psicanalítica, em meio à resistência da ciência oficial e acadêmica frente ao modelo que então estava em vias de criar. A partir daí, traça um histórico dos diversos momentos em que a psicanálise se viu sob ataque em todo o mundo. E conclui: "Há um poder na psicanálise que não é o de dominação que assujeita o outro, é um poder que advém do contrapoder, porque questiona o instituído e possibilita a construção da singularidade, da pluralidade de posições e do diálogo entre os sujeitos" (p. 83).


Mariana Mayerhoffer também refaz o trajeto do movimento Articulação, reiterando sua tarefa de manter a psicanálise como leiga. A partir do referencial lacaniano, afirma que tanto a clínica como a política psicanalíticas se definem por uma operação de "fazer furo", isto é, questionar o sujeito diante daquilo que lhe vem pronto para que ele o reproduza. Daí a incompatibilidade entre a ética da psicanálise e todas as formas de regulamentação, que seriam movidas pela totalização discursiva na contabilização capitalista. Regulamentar a psicanálise seria tentar fazer o Um da repetição, identificando os sujeitos em uma unificação, com a assistência do "mestre" em que o analista se transformaria.


Maria Teresa Saraiva Melloni e colaboradores, baseando-se no Seminário XV de Lacan, "O ato psicanalítico", partem do princípio de que o ato analítico é produto de uma operação lógica inconsciente. Ora, isso faz com que esse ato escape a qualquer definição, preconcepção ou regulamentação. E vão mais longe, lançando questões daí decorrentes, como, por exemplo: "Como podemos verificar que há um psicanalista? Como regular uma prática da ordem de uma arte? Como determinar um tempo de duração, um objetivo a ser alcançado, um preço a ser pago?" (p. 103).


Samyra Assad defende a sobrevivência da psicanálise por meio da sustentação do real, em contrário a sua sustentação por uma burocracia ou um ideal religioso. Para ela, manter a psicanálise fora da regulamentação pela lei do Estado é um verdadeiro "dever ético" dos psicanalistas.


Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho nomeiam seu capítulo com o curioso título "Somos todos Theodor Reik!". Retomam o texto de Freud sobre a questão da análise leiga, passam por "Análise terminável e interminável", para chegar até Lacan. Relembram que, pela via da regulamentação do "ato médico", o Estado é cooptado a assumir o discurso que designa aquilo que é verdadeiramente científico. Em contrário, defendem que o melhor dos casos seria pairar a incerteza sobre isso: "Se o sujeito aparece sempre representado por um significante em relação a outro, temos sempre um campo deslizante frente à questão da legitimidade" (p. 132).


Sonia Alberti também retoma o texto de Freud de 1926, sobre a questão da análise leiga, para reiterar que o analista não é leigo apenas por não ter que portar o diploma médico, mas o é no sentido mais amplo do termo. Não se inscreve em nenhuma profissão existente e, a fortiori, em uma profissão de fé! Afirma que qualquer regra que viesse a regulamentar a psicanálise ameaçaria sua própriaregulação, isto é, aquela que lhe é eticamente inerente, concernente à associação livre e à abstinência.


Enfim, após essa demonstração do que se argumenta nesse livro, podemos concluir que sua grande contribuição pode ser localizada em, pelo menos, dois planos. O primeiro seria inerente a sua própria fundamentação e argumentação, ou seja: ele amplia sobremaneira nossa literatura referente à ética e à epistemologia da psicanálise e de sua clínica, fornecendo-nos um arsenal teórico com o qual nos habilitamos a continuar defendendo nosso ofício das mais variadas formas de ataque, mormente as tentativas de regulamentação.


O segundo plano concerne ao testemunho de um grupo que se articulou com propósitos políticos de defesa da psicanálise em solo brasileiro, que agora vem a público relatar não só que o pensou, mas também o que já realizou concretamente em termos de luta. É bom que saibamos que, enquanto exercermos nosso ofício cotidiano, muitas vezes sem nos preocupar com aquilo que nos ameaça, um aguerrido grupo de trabalho cuida de nos defender com afinco e rigor intelectual.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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