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Resumo
Resenha de Sarah Nettleton, A metapsicologia de Christopher Bollas: Uma introdução, São Paulo, Escuta, 2018, 151 p.


Autor(es)
Maria Vera Lucia Barbosa Barbosa
é psicanalista, psicóloga, mestra em educação especial pela ufscar. Membro do coletivo Christopher Bollas, coordenado pela psicanalista Amnéris Maroni.

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 LEITURA

Pelos caminhos de Christopher Bollas: teoria e clínica psicanalítica [A metapsicologia de Christopher Bollas: Uma introdução]

Through the paths of Christopher Bollas: Pshychoanalytic theory and clinic
Maria Vera Lucia Barbosa Barbosa

       Em cerca de trinta anos de contato com a obra bollasiana, Sarah Nettleton, psicanalista em Londres, teve oportunidade de se debruçar sobre o pensamento do autor, supervisionada pelo próprio, e tornar-se uma das responsáveis pela edição de seus livros. Disposta a compartilhar sua experiência, ela passa a lecionar sobre a obra de Bollas em vários países.

        Em 2017, o livro The metapsychology of Chris­topher Bollas: An introduction, saiu pela editora inglesa Routledge, tendo sido lançado no Brasil pela editora Escuta, em 2018, com o título A metapsicologia de Christopher Bollas: Uma introdução, numa tradução primorosa de Liracio Jr. e prefácio de Amnéris Maroni.

       Entusiasta e inspiradora, Sarah Nettleton vai norteando o leitor a transitar e mergulhar com fluidez na obra deste psicanalista cuja contribuição para a psicanálise contemporânea é de importância inquestionável. Christopher Bollas vem da literatura, da história e das artes, é autor de vasta obra também nestes campos, mas é do campo psicanalítico que trata o livro. Sarah Nettleton apresenta no início uma pequena biografia de Christopher Bollas, conta-nos que ele fez sua formação psicanalítica na Sociedade Britânica de Psicanálise, estudou e trabalhou na clínica Tavistock, fez treinamento no Instituto de Psicanálise, interessou-se pela psicanálise francesa e trabalhou com J. B. Pontalis e A. Green. Foi professor de psicanálise na universidade de Roma. Realizou oficinas com psicanalistas na Suécia, Alemanha, EUA. Também queremos lembrar que Christopher Bollas esteve no Brasil em agosto de 1997, a convite da Livraria Pulsional e de Moisés Rodrigues da Silva Jr., quando deu entrevista para a Revista Percurso número 20?- 1/1998.

      Sarah Nettleton conta, também, que Chris­topher Bollas recebeu influências consideráveis de psicanalistas tais como H. Kohut, W. R. Bion, J. Lacan e D. W. Winnicott. Fez um retorno a S. Freud e criou uma obra atravessada por uma pluralidade teórica endossada por essa incomum variedade de influências, que lhe permite um estilo e linguagem próprios. É isto que Sarah Nettleton nos mostra em seu livro. Ela nos apresenta o modo como Christopher Bollas amplia a linguagem da psicanálise e oferece um modelo abrangente do funcionamento psíquico. Como este modelo não está sistematicamente organizado nos escritos do autor, a autora organiza seu livro de maneira a facilitar a compreensão do arcabouço do pensamento bollasiano, assim como a localização de ensaios e o acesso a conceitos em sua obra. Desta forma, a publicação pode ser considerada um guia, ou uma espécie de mapa de rotas, que permite ao leitor compreender e mergulhar na obra de Christopher Bollas. Os doze capítulos abordam os temas centrais da teoria e da técnica bollasiana, tais como o inconsciente receptivo, os genera psíquicos, o idioma pessoal, o conhecido não pensado, o self e o personagem, o objeto evocativo, a complexidade inconsciente, a associação livre e o par freudiano.

      De início, Sarah Nettleton trata da dualidade psíquica, uma modalidade existente desde o nascimento que constitui formas de ser, cujo equilíbrio influencia todos os aspectos das relações com a vida intrapsíquica e com o mundo. Segundo a autora esta dualidade, que perpassa toda metapsicologia bollasiana, é representada por vários pares de conceitos como, por exemplo, o recalcado e o inconsciente receptivo, os genera psíquicos e o trauma psíquico. Ao longo dos capítulos, Sarah Nettleton mostra como Christopher Bollas vai além dos conceitos psicanalíticos clássicos e apresenta conceitos novos. Partindo do inconsciente freudiano, ele não se prende ao recalcado, mas inclui e explora os conceitos de inconsciente receptivo, inconsciente criativo e os genera psíquicos, sugerindo a presença de outros mecanismos cruciais para a expansão da mente e para o desenvolvimento do self, e propõe um novo modelo metapsicológico. Neste modelo, o processo de receptividade criativa é o mecanismo por meio do qual a mente inconsciente se expande e é estruturada, de forma dinâmica e mutável, engendrando um tipo particular de organização psíquica da experiência, que resulta em novas e criativas concepções de vida.

      Para melhor compreensão desse tema, Chris­topher Bollas nos propõe, de acordo com Sarah Nettleton, pensar o sonhar. Diz ele que o sonho é um processo inconsciente de atividade criativa complexa, sofisticada forma de pensar que contempla passado, presente e futuro e reúne milhares de pensamentos e afetos implícitos nas experiências do dia. O sonho constitui relações objetais complexas, em que a figura do sonhador aparece com seus muitos selves; enquanto uma parte é representada como o self que experiencia, as outras podem aparecer como personagens do drama. Um teatro, cujo teor da trama não pode ser fruto de um inconsciente recalcado, mas sim de um inconsciente com inteligência, criativo e receptivo.

       Sarah Nettleton deixa claro como Christopher Bollas revê conceitos valiosos da psicanálise e os re-significa. Dentre eles tem destaque o conceito de self, de um self plural e ilimitado, constituído e organizado através do relacionamento intersubjetivo, de acordo com o processo parental internalizado. Um self que é ao mesmo tempo sujeito e objeto, que dialoga consigo mesmo de forma a organizar o cotidiano, expandir as experiências vividas ao longo da vida e gerenciar os sentimentos. Com um núcleo essencial, que dá a forma estética única de ser de cada pessoa, que Bollas chama de idioma pessoal.

       O idioma é, conforme descrição de Sarah Nettleton, uma espécie de impressão digital (finger print), simplesmente existe, é irredutível e insubstituível. Conta com uma pulsão inata para expressar-se e elaborar-se e busca ativamente a interação com o mundo exterior, relações com dispositivos culturais e sociais, encontros com objetos que possibilitem engajamento criativo e transformacional. Lembrando que para Christopher Bollas, de acordo com a autora, a pulsão "implica algo para além da satisfação instintiva: ela envolve uma dimensão e objetivo estéticos?- o prazer particular do ser individual em elaborar seu idioma" (p. 47).

       Segundo Sarah Nettleton, o idioma pessoal começa a ser desenvolvido na primeira fase da vida do bebê, anterior à linguagem, quando o primeiro objeto transformacional?- a mãe?- é percebido como um processo de transformação e irá influenciá-lo ao logo da vida. A mãe ensina a criança a sua lógica, a criança assimila operacionalmente e antes que seja capaz de representações mentais já conta com os fundamentos básicos do ser e do relacionar-se. Este conhecimento transmitido pelas relações parentais e adquirido pelo bebê não foi estabelecido por meio de representações mentais e torna-se parte do que o autor vai chamar de conhecido não pensado, um dos temas centrais de sua teoria. São experiências existenciais que criam gramáticas inconscientes do ser e do relacionar-se e de mudanças de estado do self do bebê; são profundamente formativas, mas não são lembradas conscientemente, não são pensadas.

      Segundo afirmação da autora, Christopher Bollas refere-se ao idioma do self, cuja gramática enunciamos acima, com o termo personagem. A forma como interagimos, como nos comunicamos com nossos objetos, nos revela ao outro, mas nunca a nós mesmos. Existe, então, uma desconexão entre a consciência que temos de nós e o efeito inconsciente que provocamos nos outros. Quando confrontados com o que o mundo está percebendo sentimos um impacto, pois nunca podemos conhecer nosso próprio personagem. Ou seja, para Sarah Nettleton, "Christopher Bollas usa o termo personagem para se referir à forma em que nos comunicamos inconscientemente com outra pessoa, ou somos por ela percebidos" (p. 65). Ela acrescenta: "Esta é uma das ocasiões em que ele toma uma palavra em uso comum e atribui-lhe um significado idiossincrático. Ao fazê-lo ele normalmente está destacando um aspecto muito específico do nosso mundo interior, e, nesse caso, é um aspecto que é relativamente pouco considerado pela psicanálise" (p. 65).

       A autora assinala que, na teoria do inconsciente receptivo, Christopher Bollas mostra a importância do mundo objetal para a formação e o funcionamento da mente, da seleção e do uso de objetos como meio de expressar e elaborar o idioma pessoal. Existiria um estágio no qual a criança se tornaria consciente da integridade do objeto, que ele define como identificação perceptiva. Este envolve o reconhecimento de que o objeto tem existência distinta do self e de que o self é afetado pelo objeto. Neste estágio é a especificidade do próprio objeto que importa. O objeto é percebido por sua própria identidade e amado pelo que é e não porque reflete o self. O objeto tem, portanto, uma existência distinta do self, sendo o self afetado por ele, o que provoca o gozo, jouissance da diferença. Segundo a autora, Christopher Bollas assegura que buscamos e selecionamos objetos que oferecem formas diferentes de experiências, que nos afetam estruturalmente por sua integridade individual e conceitual. E não existiria diferença, para o inconsciente, entre um objeto evocativo animado e inanimado, pois toda vez que há um encontro, os aspectos do ambiente inanimado terão também efeito de afetação, porque somos afetados pela integridade estrutural da coisa em si. Poderíamos usar um objeto tanto para fins projetivos, identificação projetiva com o objeto, quanto para a interação, e esses dois aspectos, projetivo e perceptivo, com frequência, ocorreriam simultaneamente. No entanto, nem todo objeto seria evocativo, já que há também os objetos terminais, que incorporam estados primitivos de defesa e renúncia e não propiciam elaboração do idioma. Desconectam o sujeito da sua criatividade inconsciente e do seu desejo de conexão com a vida exterior. A escolha do objeto seria uma forma de pensamento inconsciente que atenderia alguma necessidade interna do momento.

       Sarah Nettleton entende que os conceitos aparecem separados na metapsicologia bollasiana, mas intimamente conectados. Para ela, o analista precisa manter essa complexidade em mente, para evitar reducionismos e poder explorar criativamente as relações internas e externas do analisando, de forma a permitir que ele desenvolva a consciência e a curiosidade sobre a complexidade de seus mundos. A autora mostra que Christopher Bollas destaca a associação livre como um meio de obtermos acesso ao fio da complexa teia de pensamentos não pensados, que poderá encontrar caminho para a consciência. Central na análise, a associação livre é a base do trabalho psicanalítico com todos os tipos de patologias. É um processo terapêutico em si mesmo, ferramenta que desenvolve a capacidade de novas conexões com o inconsciente e a elaboração criativa do idioma pessoal e a transformação do self. A autora ressalta que, para que isto se dê, é fundamental que o analisando seja encorajado a falar livremente sobre o que se passa em sua mente, e que o analista se mantenha em estado de atenção suspensa, receptivo, mas não intrusivo. Isso possibilitaria ao analisando articular, explorar e compreender os conteúdos que emergem da complexidade do inconsciente. De acordo com Sarah Nettleton, a comunicação de inconscientes, que se dá nessa nova relação de objeto, denominada par freudiano por Christopher Bollas, é reveladora da sabedoria do inconsciente do analisando e da capacidade do analista de responder inconscientemente.

       A autora esclarece que todos esses conceitos teóricos permitem conceber a abertura na experiência do analista com seu paciente. O livro faz-nos compreender que a filiação a uma única escola de psicanálise, nas lentes de Christopher Bollas, restringe o analista a uma maneira única de pensar e de se relacionar com o seu paciente: quanto maior o alcance do analista, maior o potencial de ir além da análise de patologias, alcançar a complexidade da mente, e possibilitar a transformação do self.

         Sarah Nettleton mostra que a metapsicologia de Christopher Bollas oferece conceitos inovadores e ricos para o pensamento psicanalítico. Assegura: "Se admitirmos o inconsciente receptivo como um modelo metapsicológico válido, devemos esperar que ele ofereça uma maneira de pensar sobre o desenvolvimento da mente e do self, para iluminar nossa compreensão da psicopatologia e da saúde e para contribuir com a teoria da técnica terapêutica" (p. 38). Assim, a autora guia o leitor pela obra bollasiana que, além de oferecer um modelo diferenciado da estrutura e do funcionamento da mente, defende o pluralismo teórico.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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