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Autor(es)
Nora B. Susmanscky de Miguelez Miguelez
é psicanalista. Doutora em Psicanálise pela pucsp. Membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, onde é professora e supervisora. Autora do livro Complexo de Édipo Hoje?, coautora do livro Política e Psicanálise. Tem artigos e debates publicados em diferentes revistas de psicanálise.

Leopold Nosek Nosek
é psicanalista, médico psiquiatra, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; autor de A disposição para o assombro (Perspectiva, 2017); Ganhador do Sigourney Award 2014.

Ana Rosa Chait Trachtenberg Trachtenberg
é médica psicanalista. Membro Titular com Função Didática da Sociedade Brasileira de Psicánalise de Porto Alegre


Notas

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 DEBATE CLÍNICO

Momentos de uma análise

Moments of an analysis
Nora B. Susmanscky de Miguelez Miguelez
Leopold Nosek Nosek
Ana Rosa Chait Trachtenberg Trachtenberg

Nos dias 26 e 27 de outubro de 2018 aconteceu no Instituto Sedes Sapientiae o evento "Clínicas Republicanas e Democráticas, Clínicas Públicas e Abertas", organizado pelo Departamento de Psicanálise. Suas mesas eram formadas por aqueles que praticam a clínica e a escuta nas ruas, nas praças, nas casas, nos campos, realizando trabalhos de recepção, de acolhimento e de cuidado. Uma escuta como dispositivo contra a exclusão em situações sociais críticas, dispositivo construído/inventado na urgência destes tempos de loucura social, para abrigar a angústia, a confusão, o medo, o desamparo e o temor dos cidadãos.

Na plateia ouvintes comovidos com o resgate de histórias e singularidades subjetivas graças à escuta solidária, à presença e à fé cega na vida daqueles que se dispõem a acolher o outro. Relatos de uma clínica encarnada, que se inventa construindo a confiança e buscando o que ainda faz brilhar o olhar do outro. Uma rica experiência de saúde mental. Um fazer psicanalítico, um resgate do sujeito.

A seção Debate da Revista Percurso convidou alguns colegas destas mesas para registrarem esta experiência.

 

Auro Danny Lescher
Uma ilha para Sancho Pança

     Existe no centro de São Paulo um campo de refugiados em torno do qual gravitam centenas de pessoas, crianças e jovens, adultos moradores de rua, andarilhos apressados, outros nem tanto, traficantes e policiais.

     O nome desse lugar faz referência à pedrinha que, fumada, arremessa o sujeito aos tempos da caverna do Neandertal. Abduzir-se à idade da pedra parece ser um exílio químico eficaz que torna suportável o insuportável.

    A Cracolândia não é o fim da linha porque não é uma linha. É um novelo, um emaranhado. Ali o exilado tem lugar, tem visibilidade, sai na mídia, entra na agenda dos políticos e governos.

    A droga acompanha frequentemente situações extremas que muitas pessoas são forçadas a viver?- os foragidos da fome e da sede, da pobreza extrema, das catástrofes naturais, os soldados no "front", ou ainda aqueles que pedem asilo depois de ameaçados e expulsos por governos tiranos ou guerras civis: a ruptura com a terra de origem, com a família e comunidade, com a "mátria".

    Há 21 anos, quando iniciamos nossas atividades no Projeto Quixote, era comum, em várias cidades, a internação compulsória das crianças que viviam nas ruas e que usavam drogas. Entidades assistencialistas que distribuíam alimentos e roupas, e acabavam perpetuando o ciclo. O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda era recém-nascido.

     O Projeto Quixote, em parceria com uma rede de serviços públicos governamentais e não governamentais, busca oferecer a esses jovens o acesso a um outro circuito, alternativo à rua, que inclui arte, saúde, educação e cultura.

     Na linha de frente dessa tarefa estão os Educadores Terapêuticos (ets), munidos de suas mochilas lúdicas. Vão a campo e oferecem a disponibilidade de escuta, de testemunho, de curiosidade. Uma bola, um jogo, um tamborzinho, um gravador, um lápis com um papel. A presença contínua dos educadores nas ruas lhes confere legitimidade afetiva e vão se tornando bons conselheiros.

    Um dia, Bruna chama a dupla de educadores até seu cobertor. Dá de presente um par de brincos e as pistas de um jogo de detetive: a região de onde ela veio e o nome da escola onde estudou. "Quero ver, tio, se você é bom detetive mesmo. Quero ver se descobre onde mora a minha mãe".

    Frente ao desejo onipotente de tirar cada um daqueles meninos imediatamente da rua, os educadores se lembram da complexidade do fenômeno. Apoiam-se uns nos outros e guardam para si seus ímpetos salvacionistas. E tudo o que fazem é marcar um encontro para o dia seguinte.

    Miguel de Cervantes inseminou no ventre da humanidade um alerta: querer salvar o mundo é sublime, julgar-se o salvador é ridículo.

    Os ETs são uma espécie de ego auxiliar, uma ponte entre a ficção, o delírio e a realidade.
Sancho Pança é um et para Dom Quixote.

    A ideia central do trabalho é o de um rematriamento possível. Esse retorno à mátria, tecendo junto com a criança sua história, seu presente e os seus desejos futuros possíveis. E junto às famílias acompanhamos a (re)construção de uma rede de cuidados sociais, de saúde, educação, cultura.

    Os jovens da terra do crack não são toxicômanos precoces, mas pessoas que buscam no exílio a afirmação de suas vidas.

    De qualquer maneira, o que está em jogo é o reencontro tenso e intenso de alguém com sua mátria.

    Poder transformar a própria história é uma declaração de amor-próprio. Matéria-prima da narrativa do sujeito como um ser autônomo, único, que fia sua vida com uma linha que não separa, aliena nem esquarteja, mas alinhava, define e protege.

 

Emília Estivalet Broide e Jorge Broide
A psicanálise é uma práxis instituinte...

    Em tempos de convocação ao pensamento único, são extremamente importantes iniciativas como a do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, que durante o ano 2018 colocou em discussão e debate?- em três eventos consecutivos?- as "Questões sociais e políticas na história da psicanálise". O terceiro encontro da série, sob o título "Clínicas Republicanas e Democráticas, Clínicas Públicas e Abertas", ocorrido nos dias 26 e 27 de outubro passado, foi um momento privilegiado de conversa entre analistas acerca das diversas modalidades de trabalho que combinam a investigação e a intervenção clínica em diversos contextos sociais.

    O debate foi marcado pela sustentação do exercício inventivo da psicanálise que não se fecha ao dogmatismo identitário e/ou religioso, tampouco a qualquer forma de humanitarismo pueril. Partindo da mais pura tradição freudiana, que situa no cerne da experiência clínica o inconsciente e seus fundamentos, relembramos puxando o fio da história que a ideia de clínicas públicas de psicanálise não é propriamente uma novidade, pois Freud, por ocasião do Congresso de Budapeste em 1918, já expressava o desejo de tornar acessível o tratamento psicanalítico a um maior número de pessoas e àquelas mais carentes. Em 1920, a ideia se efetiva com a criação da Policlínica de Berlim, ligada ao Instituto de Berlim, que tinha como objetivo formar jovens médicos interessados na psicanálise. Inaugura-se na ocasião a experiência da associação de um modelo clínico de atendimento na formação psicanalítica que, ao mesmo tempo, tornava acessível o tratamento à população empobrecida que sofria as consequências do pós-guerra na Europa.

    Segundo o interessante texto de Elizabeth Ann Danto[1] (2005), a partir daí a primeira e segunda geração de psicanalistas se envolve fortemente no trabalho na criação das clínicas dos institutos de formação em instituições públicas e privadas. Entre 1920 e 1938 foram criadas ao menos 12 clínicas de atendimento psicanalítico gratuito envolvendo diferentes cidades em 7 países, de Londres a Zagreb. Ao menos 1/5 dos trabalhos dos psicanalistas da primeira e segunda geração foram realizados com população empobrecida, além de estudantes, artistas, operários, professores, etc.

    Vale a pena citar alguns destes psicanalistas envolvidos no projeto proposto por Freud desde "Novos caminhos da psicoterapia psicanalítica". Entre eles estão Erik Ericson, Karen Horney, Sandor Ferenczi, Erich Fromm, Bruno Bettelheim, Melanie Klein, Anna Freud, Franz Alexander, Annie Reich, Wilheim Reich, Otto Fenichel, Helene Deutsch, Alice Balint, Hermann Numberg, Eitingon, Karl Abraham.

    Somos herdeiros dessa tradição, que não cinde o trabalho no campo social com a clínica privada do consultório, tampouco transpõe de forma mimética o exercício clínico de um contexto para o outro. De nossa parte, pensamos que o trabalho psicanalítico nas situações sociais críticas convoca a responsabilidade do analista frente à cultura e seu mal-estar, frente ao desamparo psíquico e social, frente aos interrogantes que colocam desafios e desacomodações ao pensamento teórico, ao exercício clínico e à práxis psicanalítica. Pensamos que o psicanalista, frente às situações sociais críticas, coloca em relevo algo do inconsciente lá onde a precariedade e o drama da vida humana se apresentam e clamam?- num apelo resistencial?- pela economia do pensamento, pela burocratização dos gestos e pelo ensurdecimento dos ouvidos frente ao drama singular do sujeito em situação de vulnerabilidade.

    Em nosso trabalho nas situações sociais críticas, formulamos a noção de "escuta territorial", na qual se busca captar as marcas e as inscrições, as formas de laço social que os sujeitos estabelecem no território urbano e com a cidade. Estes trabalhos ocorrem junto às políticas públicas, no terceiro setor e na iniciativa privada, em capacitações, supervisões, assessorias, pesquisas, grupos e atendimentos individuais nos quais os determinantes inconscientes friccionam o caso social. O lócus no qual as distintas experiências que temos desenvolvido se encontram não define o trabalho. O que orienta, dirige e vetoriza nossa práxis é uma posição de escuta que coloca no cerne da experiência o desejo de analista e a relação transferencial como operador do trabalho clínico.

    No evento "Clínicas Republicanas e Democráticas, Clínicas Públicas e Abertas" nos somamos às experiências apresentadas sem a pretensão de formar uma totalidade, mas sim de compor um solo comum, base de um espaço de trabalho compartilhado, de pensamento clínico e crítico que possibilita aos analistas tornar público o compromisso com o ato analítico nas praças, nas ruas, com populações vulneráveis, nas mais diversas situações sociais críticas.

 

Ilana Katz e Christian Dunker
Dois anos, dois dias

    "Clínicas Republicanas e Democráticas, Clínicas Públicas e Abertas" foi um encontro de psicanalistas interessados no debate sobre as experiências clínicas que acontecem nos espaços públicos urbanos. Depois de um encontro sobre este tema no Instituto de Psicologia da USP, no semestre anterior, a data aqui era crucial, pois, dois dias depois, o Brasil elegeria seu presidente. O lugar também não era qualquer: o Sedes Sapientae marca a história da psicanálise como instituição de acolhimento e resistência democrática.

    Psicanálise e democracia possuem condicionantes comuns: a livre circulação da palavra, a criação de futuros contingentes, a universalidade inclusiva do inconsciente. O público inquieto e incisivo nos fazia pensar, em estado de urgência e contra o estado de exceção. A clínica pública, no espaço aberto da cidade, é uma contraexperiência, uma prova em ato de que é possível uma resposta contra a segregação como gramática fundamental de nosso sofrimento.

    Levamos, para aquele encontro no Sedes Sapientiae, a experiência "Clínica do Cuidado" com os ribeirinhos, tornados refugiados pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira. A nossa equipe é composta por 16 clínicos e dois jornalistas, que, além de responsáveis por todo o processo de documentação de nossa experiência, no instante da intervenção, foram também interlocutores vigorosos na invenção de nosso modelo de atenção. Naquela noite, viemos todos os que pudemos, de diferentes lugares do Brasil. A equipe clínica estava quase completa, bem representada em sua diversidade.

    Assistimos ao documentário de Eliane Brum, "Eu +1, uma jornada de saúde mental na Amazônia"[2]. Ouvimo-nos em cena retrospectiva e prospectiva. Depoimentos tomados durante a intervenção e o seu impacto sobre cada um de nós estavam pulsando nas palavras. Dois anos depois, foi a primeira vez que nos encontramos em uma reunião formal, para falar com outros, sobre a experiência de campo da Clínica do Cuidado. Já havíamos falado entre nós, aos pares, cada um de nós com outros, e, dessa vez, ganhamos a oportunidade de nos escutarmos, juntos e com os outros, sob a perspectiva dos efeitos recolhidos.

    Sem termos podido antecipar o acontecimento, vivemos naquela noite uma experiência de testemunho. Fomos conhecendo juntos as versões particulares do projeto que compartilhamos e redimensionando a experiência de cidadania produzida no encontro com outro modo de vida, que repercutiu também sobre a condição de analista de cada um dos cuidantes?- nome que demos aos psicanalistas na ação da Clínica do Cuidado. Esses efeitos interessaram aos interlocutores que acolheram nossos depoimentos, e nos puseram para trabalhar.

    A invenção da Clínica do Cuidado foi uma estratégia articulada para atender à comunidade ribeirinha atingida por Belo Monte. Sua proposição?- um modelo de atenção ao sofrimento psíquico, metodologicamente orientado pela psicanálise, que incluiu dispositivos de cuidado abertos e articulados ao território?- visava ao cuidado com essa população submetida a uma situação de extrema vulnerabilidade psicossocial.

    Quando cunhamos a expressão "Clínica do Cuidado", tínhamos em mente uma das traduções possíveis do conceito de cura (cure, em francês) que é justamente "cuidado", como na "cura sui" dos latinos, e que parece localizar-se na arqueologia da prática psicanalítica entendida como uma ética (Dunker, 2012)[3].

    Foi durante a intervenção, nas margens do rio Xingu, que a ideia de comunidade testou suas fronteiras. Estávamos ali, implicados no Cuidado com os ribeirinhos, uma comunidade tradicional e de hábitos extrativistas. A escuta de cada uma das suas histórias apresentou-nos uma experiência de cultura?- de relação entre pessoas, e destas com as instituições, com a produção, com o dinheiro e com a terra. Formas de vida à qual somos estrangeiros: não é a nossa cultura, não nos organizamos diante desses elementos da mesma maneira que um ribeirinho, e, ainda assim, é uma cultura que tem lugar no nosso mundo. Tem lugar, esse lugar precisa ser garantido, e isso nos diz respeito.

    O dispositivo da escuta clínica cumpriu sua função de informar modos de gozo e de organização da vida, estranhos à nossa experiência. Nos testemunhos dos cuidantes sobre o seu fazer, escutamos suas perguntas sobre a função que o analista poderia assumir naquela experiência de território, e escutamos também como a sua condição de estrangeiros àquela cultura sustentou a intervenção. Mais além, os cuidantes, um a um, transmitiram os efeitos dessas perguntas sobre suas práticas clínicas.

    O exercício sobre a ideia de comunidade que a travessia de fronteiras geográficas e simbólicas propôs alcançou, na volta do Xingu, a dimensão da responsabilidade no fazer de cada um. Uma pergunta se colocou: que efeitos aquela experiência produziu sobre a relação de cada um de nós com a psicanálise? Uma pergunta sobre os efeitos, e que produz efeitos.

    Atravessados por essa experiência, pelos questionamentos nela produzidos, e na condição de psicanalistas, procuramos dar lugar a atividades e ações que se engajassem na proposição de uma experiência política comprometida com a construção do comum, e voltada ao interesse público. Nesses dois anos, realizamos pesquisas acadêmicas e atividades clínicas que se orientam nessa direção. Estamos todos, e cada um, mergulhados num trabalho de invenção: os outros trabalhos que esse evento acolhe também fazem parte dessa iniciativa, e alguns dos cuidantes estão, inclusive, engajados nessas outras intervenções. Há quem tenha mudado para Altamira para viver e trabalhar, e quem ainda mantenha outras relações de trabalho com a região.

    Para além do lugar que cada um encontrou e inventou para trabalhar, há algo que podemos depurar de nossos depoimentos. As notícias que recolhemos dos desdobramentos sobre a prática de cada um apresentam a dimensão da (de)formação do analista[4].

    Na micropolítica da experiência, entendemos que a operação clínica teceu efeitos sobre a posição dos sujeitos acolhidos pela Clínica do Cuidado[5]. Para além dos efeitos clínicos diretos, ganhamos a oportunidade de compreender que, ainda que todos os elementos de estabelecimento do setting clássico estivessem suspensos na estratégia da intervenção, a ética da psicanálise, reguladora da clínica, encontrou lugar na função desejo de analista para sustentar, como único elemento indispensável e incontornável ao fazer do analista, a realização da clínica.

    A estratégia Clínica do Cuidado renovou nossa aposta em uma prática que pretendeu não se realizar pelo exercício de um poder, mas, ao contrário, propor, como política, uma discussão do poder.

    Esse é um efeito formativo que trazemos de Altamira para compor, de maneira decisiva, a nossa relação com a psicanálise. É com essa posição que nos recolocamos na relação com a cidade.

    Resta ainda o outro lado da pergunta: de que maneira o que ali foi construído como modelo de atenção ao sofrimento psíquico pode seguir em operação no território?

    É aqui que nos encontramos, novamente, com a proposição do evento "Clínicas Republicanas e Democráticas, Clínicas Públicas e Abertas".

    Sabemos que, para que modelos de intervenção e de atenção ao sofrimento psíquico tenham lugar naquele território, precisaremos nos articular na construção de políticas públicas que impliquem o Estado na sua sustentação. O movimento de cada um de nós, de cada Eu+1, é necessário para constituir essa possibilidade. Nosso engajamento com o projeto Refugiados de Belo Monte, no qual se insere a iniciativa da Clínica de Cuidado, ao implicar nosso fazer com o que resta das operações civilizatórias, faz valer para cada um a função social do psicanalista. Nosso engajamento nos faz ver, ainda, que a democracia é a condição de sustentação de sua possibilidade.

    Sob qual condição de relação com o Estado podemos reivindicar que políticas públicas assegurem o interesse público? Foi assim, com essa pergunta, que, naquela noite, articularam-se os dois anos que passaram?- e os dois dias que tínhamos pela frente.

 

Marco Fernandes
A clínica internacionalista na escola dos Sem Terra

    A Escola Nacional Florestan Fernandes (enff), organizada pelo mst desde 2005, no município de Guararema (Grande São Paulo), se tornou uma importante referência internacional na formação política de militantes de movimentos populares. Com cursos que cobrem várias áreas do conhecimento, como história, sociologia, filosofia, teoria política, artes, economia, entre outras, e que são ministrados em português, espanhol, inglês (e, brevemente, em francês), a Escola recebe, todos os anos, centenas de militantes de mais de 50 países de todos os continentes do planeta. Talvez já fosse o caso de mudar o seu nome para "Escola Internacional". Poder-se-ia dizer que a enff é mais uma das demonstrações do comprometimento do mst com questões que transcendem a luta imediata pela terra e a reforma agrária, como a educação popular para a transformação da sociedade, e os princípios do internacionalismo da classe trabalhadora, que aprendemos com tantas experiências de lutas e de solidariedade entre os povos ao redor do mundo.

    Também a psicanálise foi, aos poucos, se assentando por lá. Em 2006, Maria Rita Kehl e Noemi Araújo iniciaram as primeiras experiências de atendimentos psicanalíticos. Nossa segunda experiência vem se dando desde 2013, no chamado "Curso Latino". O Curso Latino começou a ser organizado a partir de 2007. São dezenas de militantes de toda a América Latina que ali permanecem durante três meses, numa riquíssima embora exaustiva rotina que envolve muitas horas de estudos, trabalho e algum lazer nas horas vagas. É o curso mais longo da Escola e o que mais exige dos educandos. O princípio da coletividade rege os espaços da enff, assim, além das salas de aula, são também compartilhados o refeitório, os locais de trabalho e o alojamento. A maioria destas pessoas está na faixa dos 20 a 30 anos, e me parece natural que, vez por outra, alguns sintam uma espécie de "overdose de coletivo" e que isso gere algumas tensões. Pensando nisso, em conversas com a coordenação, decidimos propor um espaço de atendimento individual voltado a esse curso, para aqueles que assim o desejassem. Dispus-me a ir todos os finais de semana durante três meses (sábado ou domingo, a depender da semana) e a atendê-los em cerca de 10 a 11 sessões, numa espécie de "psicoterapia breve". A essa altura, agosto de 2013, eu já havia iniciado a minha formação no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mas, tendo vindo de outra área (História), ainda não tinha experiência clínica como terapeuta. Por ser militante do mst e por lecionar na enff desde 2005, me senti honrado em iniciar a minha prática psicanalítica nesse espaço, ainda que no início não tenha sido fácil, dada a minha inexperiência e ao fato de os atendimentos serem em castelhano.

    Nesse primeiro ano, atendi a seis educandos. Era o meu limite, embora tivéssemos mais sete ou oito na lista de espera. Ficou claro que a demanda não era pequena. No ano seguinte, 2014, Daniel Guimarães (analista em formação no Departamento de Psicanálise), um dos criadores da Clínica Pública de Psicanálise, aceitou meu convite para se juntar a mim nestes atendimentos. Tales Ab'Saber, um dos criadores da Clínica Aberta de Psicanálise, nos supervisionou semanalmente. Atendemos a 12 pessoas, mas ao menos meia dúzia ficou na lista de espera. Em 2015, por ter sido convocado pela enff para uma tarefa de relações internacionais, não pude garantir a mesma frequência de sessões. Daniel convidou Ricardo Guimarães (também formado no Sedes e hoje analista da Clínica Aberta) para auxiliá-lo nos atendimentos. Nos anos de 2016 e 2017, todos os envolvidos não puderam manter esta clínica e somente em 2018 retomei os atendimentos. Bianca Lima de Oliveira (psicóloga/puc) e Leonardo Freire (psicólogo/usp) toparam o desafio, e assim nós três lá estivemos em todos os finais de semana durante três meses, atendendo a 17 educandos do Curso Latino. Desta vez, contamos com a supervisão de Noemi Moritz Kon, professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e uma das organizadoras desse colóquio. Tanto o trabalho de atendimento quanto o de supervisão foram realizados sem remuneração, em uma aposta de que há psicanálise possível sem a mediação do dinheiro. A Escola garantiu nosso transporte e alimentação (almoço, lanche da tarde e jantar).

    Tentarei resumir o que, em nossa experiência desses anos, parecem ser os elementos comuns dessa modalidade de clínica que estamos construindo na enff. São evidentes os limites de uma terapia tão breve, mas arrisco dizer que algumas das condições do curso a potencializam. Três meses num espaço como o da Escola não equivalem a três meses de um cotidiano "comum". O tempo como que se condensa. Imaginem o que é conviver, durante doze semanas, com militantes de cerca de quinze países diferentes, em um clima de compartilhamento de uma forte identidade, forjada nas lutas populares e na aposta de uma sociedade justa. É grande a intensidade das trocas intelectuais, políticas, afetivas, sexuais etc. Os debates são permanentes, em sala de aula, nos grupos de trabalho, durante as refeições, nos quiosques, nos dormitórios e nas "noites culturais" de sábado à noite, onde encontros e desencontros amorosos também acontecem. Para muitos educandos (a maioria das classes populares), trata-se da primeira experiência internacional, e mesmo a primeira vez que passam tanto tempo longe de casa e de seus círculos familiares, de amizades e de militância. Essa condição permite a muitos deles produzir certos deslocamentos subjetivos difíceis de serem realizados em "condições normais de temperatura e pressão".

    Como ouvi de um deles, "vim pra cá com a esperança de poder me tornar outra pessoa, pois aqui ninguém me conhece, então eu posso ser quem eu quiser". Esse companheiro pôde, pela primeira vez na vida, contar para alguns colegas e para mim, em sessão, que havia sido abusado durante alguns anos da sua infância, tendo iniciado o duro processo de elaborar esse trauma. Ele trouxe muitos sonhos para as sessões, com cenas de automutilação dos dedos, muito sangue, episódios com cobras (das quais tinha fobia), e ainda uma explosão de raiva que o fez falar alto enquanto dormia um sono agitado. Raiva que muito pouco se permitia sentir, em seu semblante extremamente doce. Em sua penúltima sessão, nos conta um belo sonho: voltava a sua cidade natal junto com toda a turma, faziam uma festa num grande salão e, de alguma forma, contava ao seu pai sobre os abusos. O pai chorava muito ao ficar sabendo e isso parece ter lhe trazido algum conforto. Dizia que o coletivo lhe dera forças para tentar se livrar desse "peso que carregou sozinho durante tanto tempo".

    Outra companheira, muito inteligente e bonita, aos 27 anos queixava-se de certa dificuldade em suas relações afetivas. Era filha de militantes que haviam se conhecido na cadeia durante a ditadura militar. Ela idealizava o pai e subestimava a mãe, reproduzindo a narrativa construída durante anos em sua casa. Aos poucos, foi se dando conta dessa dinâmica. Numa semana, em que a turma participou de um debate com uma militante da mesma geração que seus pais, se deu conta de que aquela mulher, que todos na turma admiraram tanto, parecia muito com a sua própria mãe. Chorou muito ao contar isso na sessão. Na semana seguinte, numa noite cultural, cantou duas músicas que sua mãe havia composto nos anos de cadeia e foi aplaudida de pé pela turma, o que pareceu fazê-la reconhecer que em seu "romance familiar" havia algo de injusto em relação ao lugar reservado a sua mãe. Ao mesmo tempo, pôde manter por três meses um romance com um rapaz da turma, o que lhe parecia uma conquista grande. Infelizmente, a geografia os separou. Mas foi um árduo trabalho interno durante as suas sessões, e sobretudo fora delas.

    Claro que também houve casos cuja experiência se resumia na reprodução de seus sintomas na transferência conosco. Lembro-me de um rapaz, com anos de análise nas costas, que já se lançou na primeira sessão ao sofá, ficando de lado para mim, numa espécie de "posição-divã". Mas eu não propunha o divã para ninguém. Ele soava como refém de uma forte neurose obsessiva. Três meses de sessões, muito provavelmente, não causaram efeito algum sobre ele. Talvez precisasse de mais tempo? Talvez de menos resistência do seu analista? Difícil saber... Também chamava a atenção o fato de que muito pouco se falava, nas sessões, sobre as angústias causadas pelo cotidiano da militância política, que sabemos não serem poucas. Talvez esteja aí um dos limites dessa experiência, ou seja, certo desconforto (paranoide?) em tratar de questões internas de suas organizações em um ambiente como o da Escola.

    Apesar das evidentes limitações deste trabalho, penso que a possibilidade de ter um espaço de escuta analítica, no meio de um processo de formação humanamente tão intenso e rico como o que a enff proporciona, é uma brecha em que vale a pena apostar. Diante do avanço das forças conservadoras do continente latino-americano nos últimos anos, ficou ainda mais difícil a luta por uma sociedade melhor, objetiva e subjetivamente. Como diria o poeta, "na luta de classes, todas las armas son buenas / Pedras, noites, poemas"... e um cadinho de atenção aos nossos inconscientes, né?


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