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Resumo
O artigo discute as novas formas de fazer política, a partir das ocupações das Escolas brasileiras pelos jovens secundaristas. Segue articulando essas questões à psicanálise, mais especificamente suas noções de limite do domínio egoico, de alteridade e de economia libidinal nos laços fraternos. Finaliza problematizando a prática analítica em espaços mais amplos do que a clínica tradicional.


Palavras-chave
política; fraternidade; psicanálise; escola.


Autor(es)
Maria Regina Maciel
é psicanalista/Membro Efetivo do cprj e Professora/Associada da uerj.


Notas

1.A. M. Campos et alli, Escolas de luta.

2. G. Frigotto, "Juventude, trabalho e educação no Brasil: perplexidade, desafios e perspectivas", in Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, p. 205.

3. B. Sousa Santos, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural.

4. B. Sousa Santos, Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, p. 98.

5. L. E. Soares, "Juventude e violência no Brasil contemporâneo", in Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, p. 138.

6. F. Ortega, Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault.

7. Uma leitura psicanalítica?- na qual o Outro é tido como fonte, matriz possibilitadora da constituição do eu e do inconsciente?- será desenvolvida mais adiante. Outra leitura psicanalítica?- mais próxima à ideia de intersubjetividade?- também será mencionada, neste caso, no final do artigo.

8. A. Honneth, A luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.

9. A. Honneth, op. cit.

10. V. Safatle, "Abaixo de zero: psicanálise, política e o ‘déficit de negatividade' em Axel Honneth".

11. J. Butler, Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, p. 73.

12. J. Butler, op. cit., p. 42.

13. J. Butler, op. cit., p. 171.

14. S. Freud (1930), O mal-estar da civilização, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, v. xxi, p. 81-171.

15. S. Freud (1921), Psicologia de grupo e análise do ego, v. xviii, p. 91-179, p. 129.

16. S. Freud (1921), op. cit.

17. M. R. Kehl, "Existe a função fraterna", in M. R. Kehl (Org.), Função fraterna.

18. J. Birman, Arquivos do mal-estar e da resistência.

19. S. Freud (1913/1914), Totem e tabu, v. xiii, p. 20-191.

20. S. Ferenczi, Psicanálise iv.

21. D. Winnicott, O brincar e a realidade.

22. M. R. Maciel, Psicanálise e educação.

23. C. Bollas, A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado, p. 77.

24. Diante da possibilidade de uma nova modalidade de laço social, construída sobre o reconhecimento da vulnerabilidade de todos nós, e pensando em contribuições teóricas e clínicas, que pressuponham a quebra da verticalidade e da hierarquia na relação analítica, faz-se necessário um debate em torno do declínio do pai ou do declínio da referência fálica enquanto princípio organizador do sujeito. Todavia, este trabalho ficará para um próximo artigo.



Referências bibliográficas

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Winnicott D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
The article discusses the new ways of doing politics, based on the occupation of Brazilian schools by secondary level students. It then articulates this to psychoanalysis, more specificallly the notions of a limit to the egoic domain, of alterity and fraternal ties. It ends by bringing into sharp relief the analytical practice in spaces broader than traditional clinic.


Keywords
politics; fraternity; psychoanalysis; school.

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 TEXTO

Jovens ocupam as escolas: novas ações políticas e psicanálise

Young people occupy schools: new political actions and Psychoanalysis
Maria Regina Maciel

Rio de Janeiro, março de 2016, secundaristas de mais de 70 Escolas Públicas Estaduais ocuparam esses estabelecimentos, em solidariedade à greve dos professores. Estas ocupações se vincularam a outras ocupações escolares por parte dos estudantes, seja em estados brasileiros, seja em outros países latino-americanos. Em comum, percebemos uma forma de fazer política, uma dinâmica de organização coletiva, na qual se criou uma sociabilidade no processo de luta.

Em São Paulo, no final de 2015, estudantes secundaristas se mobilizaram contra o fechamento de quase 100 escolas públicas estaduais[1]. A proposta do governo do Estado paulista era a de reorganização das Escolas?- que seriam organizadas por ciclos, o que obrigaria o estudante a sair de sua escola indo para outra quando terminasse o Fundamental I ou o Fundamental II?-, o que foi rejeitado pela maioria.

O processo de ocupação de mais de 200 escolas paulistas começou com a expressão da indignação em alguns sites e aplicativos, bem como no cotidiano da própria escola. A partir da indignação compartilhada, nasceu este movimento que serviu de inspiração para as 27 escolas ocupadas em janeiro de 2016 pelos estudantes goianos, quando o governo estadual planejava entregar parte da gestão das unidades escolares a Organizações Sociais. Serviu de inspiração, também, para outras tantas ocupações que aconteceram em estados brasileiros como os de Minas Gerais, Ceará e Rio Grande do Sul.

De certa forma, esses movimentos de jovens secundaristas são herdeiros das manifestações políticas de 2013, que aconteceram reunindo vários setores da população, não apenas estudantes, num movimento múltiplo em seu foco, contra o aumento das passagens, pela melhoria dos serviços públicos, entre outras reivindicações. Estas últimas nos alertaram para o surgimento de uma aguda crítica da representação e da legitimidade do sistema político brasileiro. Vale acrescentar que dessas manifestações de 2013, em termos de política nacional, assistimos desde o fortalecimento do mtst (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), por um lado, até o surgimento do mbl (Movimento Brasil Livre), por outro.

Voltando ao tema dos jovens secundaristas, e recorrendo ao que se passou em outro país latino-americano, lembramos que, em 2006 e em 2011, o Chile viveu a Revolta dos Pinguins. Durante meses, as escolas do país inteiro foram ocupadas pelos alunos. Os estudantes exigiam uma educação pública gratuita e de qualidade. Um novo partido, criado por eles, surgiu e teve expressiva votação na eleição realizada em fins de 2017.

Por que falar de jovens e das suas novas formas de fazer política (mais especificamente as ocupações das Escolas), num artigo que pretende discutir psicanálise? Situar essas organizações estudantis dos secundaristas, apontando as especificidades deste momento social e político, é tarefa concernente à psicanálise em extensão. Neste sentido, cabe-nos indagar sobre como essas novas formas de sociabilidade incidem nas atividades desenvolvidas por psicanalistas, por exemplo, nos espaços escolares.

Enquanto teoria do sujeito na cultura e prática psicoterápica, a psicanálise tem cada vez mais migrado, ou se expandido, do setting analítico clássico para espaços sociais mais amplos. E trabalhar em espaços diferentes do tradicional exige um exercício constante de problematização de sua prática. Afinal, provavelmente significará trabalhar com população socialmente vulnerável ou dentro de uma Instituição. Neste sentido, cabe pensar sobre o modo de atuar do psicanalista, nesses enquadres não convencionais, a fim de podermos legitimar um trabalho de análise.

 

Pensando sobre as ações políticas contemporâneas

Percebemos que hoje o impulso novo para a política tem vindo dos movimentos sociais, muitas vezes surgidos a partir de indignações éticas originárias de acontecimentos cotidianos na vida das pessoas. A acentuação aí recai mais sobre questões locais específicas, do que propriamente sobre a organização social mais ampla como os estados-nacionais modernos, ponto essencial do pensamento político de até então.

O foco das reivindicações referindo-se só a determinados grupos específicos e a questões locais, contudo, pode tornar pobre o horizonte da vida política. A crença de que o problema é sempre conjuntural pode nos conduzir a ações filantrópicas que, ao querer apenas controlar e administrar a pobreza, fazem-nos esquecer de atacar as estruturas produtoras de desigualdade, como nos alerta Frigotto. Trata-se de também encarar a possibilidade de mudanças políticas estruturais. Como propõe este último autor, devemos nos orientar pelo campo da contradição em que haja "políticas públicas que enfrentem o plano conjuntural, emergenciais, atentando para a particularidade e a diversidade dos grupos... e, ao mesmo tempo, discernimento para mudanças ou reformas estruturais que produzem desigualdade social"[2].

É nesta tensão entre local e estrutural que podemos refletir sobre o que há no horizonte da ação política contemporânea. As vicissitudes da política na atualidade podem nos fazer crer que atravessamos um momento de despolitização crescente ou esvaziamento do espaço público. Todavia, também podem nos levar a ressaltar os aspectos promissores dos novos espaços emancipatórios. Neste último caso, estaria em jogo uma abertura de novos espaços de negociação entre a vida individual e a coletiva.

Entre os partidários deste último encaminhamento, podemos citar Sousa Santos que, por seu turno, se autodenomina um "utopista". Ele afirma que a subjetividade no domínio da política poderia ser vista como uma resposta emancipatória às limitações do presente. Há aí uma promessa de transformação não apenas política, mas da política[3]. Por política aqui entendemos precisamente a nossa capacidade de nos organizarmos coletivamente e intervir no mundo, para além, embora sem recusar, o domínio da política formal. Ampliando-o, porém, com certeza, incluindo a dimensão pessoal como, por exemplo, o feminismo?- com seu "o pessoal é político"?- nos ensinou.

No seu livro Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, o autor propõe uma reinvenção da teoria crítica a partir "do sul", de "subjetividades rebeldes" e de "conhecimentos alternativos" e "plurais". Ele coloca em foco os movimentos sociais que, de baixo para cima, pressionam por mudanças. Ao que acrescenta: "Essa foi a criatividade das lutas pela sobrevivência de gente que estava excluída totalmente do contrato social, e por isso essa mescla de legalidade e ilegalidade é para mim muito necessária e muito forte"[4].

Ao afirmarmos a necessidade de se levar em conta a questão da subjetividade no domínio da política, vários temas aparecem. Entre eles, o tema da identidade. Esta só existe no espelho, no olhar do outro e em seu reconhecimento. Ninguém cria sozinho para si uma identidade. Da mesma maneira, como nos acrescenta Soares, "não há como focalizar a problemática da identidade e driblar a questão do pertencimento"[5]. Nós nada somos e valemos sem o olhar alheio que nos acolhe. A problemática da identidade nos remete, portanto, à questão do pertencimento. Pertencimento, por exemplo, a um grupo. Dificilmente não nos sentimos reconfortados quando participamos de uma coletividade.

Se tomarmos o sentido mais amplo de política, é possível dizer que sua ação pode ser pensada e exercida de várias maneiras que não somente a partidária. Política aqui é, como observado acima, nossa capacidade de intervenção no mundo, em todas as dimensões. Isso inclui a sua reinvenção e a criação de relações mais igualitárias e de respeito, em que o sistema político formal tem de ser afetado, mas cujo âmbito inclui além disso a dimensão pessoal mais imediata de nossas vidas.

Nesta perspectiva, e também pensando em termos de ação política contemporânea, Ortega[6] nos auxilia ao relacioná-la à questão da amizade. Na amizade podemos experimentar novas formas de sociabilidade alternativas às formas tradicionais de se relacionar (como no amor romântico, por exemplo). O autor afirma que o estabelecimento desses novos laços, e suas novas maneiras de se relacionar, constitui um exercício do político.

A ideia de pluralidade humana é, hoje, condição de possibilidade da ação política, na qual as diferenças entre os agentes não são anuladas, mas respeitadas por dizer respeito à identidade de cada um. Entendemos, a partir da psicanálise[7], que a identidade humana aparece como realização no espaço público e não é algo dado desde sempre.

Ao mencionarmos a problemática da identidade lembremos de Honneth[8], filósofo e sociólogo alemão contemporâneo, que em diálogo com a psicanálise sugere que as experiências de desrespeito podem tornar-se uma fonte de motivação para as ações de resistência política. É o que vimos nas ocupações das escolas por parte dos jovens. Essas ocupações podem nos servir como exemplo de movimento social que surge como forma de luta social a partir de experiências de desrespeito.

Segundo o autor, as mudanças sociais devem levar em consideração as ações que buscam restaurar relações de reconhecimento mútuo. Aqueles jovens pareciam lutar não só por melhor distribuição de bens materiais, mas igualmente porque queriam ser reconhecidos em suas particularidades e em seus modos de vida. Neste sentido, o que nos diz Honneth[9] sobre a "luta por reconhecimento" se torna bastante palpável.

 

Reconhecimento e Psicanálise

As teorias do reconhecimento, contudo, são normalmente fundadas em teorias da socialização e da individuação, que pedem uma ontogênese de constituição do eu autônoma, como afirma Safatle[10]. É o que apreendemos da indicação, que faz Honneth, do reconhecimento enquanto aquilo que impulsiona a realidade vital social humana em direção ao desenvolvimento e ao progresso. Já a psicanálise, todavia, ao postular a alteridade e a pulsão, nos mostra que não nos submetemos totalmente às normas e identidades. Assim sendo, se é perfeitamente possível referir-se à posse de uma identidade egoica enquanto conceito psicológico; a psicanálise, por seu turno, refere-se a um modo de ser despossuído de identidade egoica.

Com esta última perspectiva, além de questões concernentes à identidade, as mobilizações dos jovens, ao ocuparem suas escolas, fazem pensar que estão em jogo aspectos para além do reconhecimento da identidade egoica. A saber, a sustentação de uma realidade ontológica da negação, na qual o Outro me descentra, despossui-me de identidade. E, mais do que isto até, faz-nos precários e sujeitos à perda e ao luto.

Com isto em mente, podemos recorrer ao pensamento de Butler. Esta filósofa americana, respaldada também na psicanálise, parte da noção de um "não saber" que é prévio ao sujeito. Isto na medida em que, qualquer que seja o relato que se dê sobre os momentos inaugurais de um sujeito, ele sempre será "tardio e fantasmático, afetado irreversivelmente por um Nachträglichkeit. [...] A origem só se torna disponível retroativamente e através da tela da fantasia"[11].

Butler considera a política respaldada na noção de luta identitária?- como as que marcaram as lutas de negros, mulheres, lgbts, que afloraram a partir das décadas de 1970/1980. Porém, ela também nos auxilia a reconhecer um outro aspecto dessas lutas políticas ao criticar as narrativas evolutivas que erram ao supor que o narrador possa estar presente nas origens da história. Afinal, a origem só se torna disponível retroativamente. Esta autora chama a atenção, portanto, para o limite do domínio egoico, de um eu que se pretenda autossuficiente. Isto, ao colocar em pauta a precariedade de todos nós diante da inevitável despossessão de si que o Outro nos coloca.

Especificamente com relação à noção de reconhecimento, Butler dirá que a luta pelo reconhecimento, em Hegel, revela a impropriedade da díade como quadro de referência para entender a vida social. Isto porque, para entender a vida social, precisamos entender as normas "pelas quais o reconhecimento recíproco pode ser sustentado de maneiras mais estáveis do que suporia a luta de vida ou de morte ou o sistema de servidão"[12].

A autora segue seus argumentos apontando para um excesso e uma opacidade que estão fora das categorias de identidade. Sendo assim, o esforço de fazer um relato de si mesmo terá de fracassar para que chegue perto de ser verdade. Deste modo, o que podemos afirmar é que, a partir de uma experiência é importante construir uma narrativa. A narrativa, porém, nunca é suficiente, sobretudo frente a situações traumáticas.

Por que, então, estamos nos referindo ao pensamento de Butler? Porque a autora, como Honneth, também recorre à psicanálise para a compreensão a respeito da política, mas, no seu caso, para afirmar que a angústia de sermos desfeitos pelo Outro é também a oportunidade de sermos "impelidos a agir, interpelados a nós mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o ‘eu' autossuficiente como um tipo de posse"[13]. Só assim, diz ela, seremos efetivamente responsáveis pela vida social. Sua aposta é a de que, se nos olharmos todos como despossuídos de si, poderemos nos responsabilizar pela vida social. Assim, de certa maneira, resta-nos nos indagar sobre uma distribuição mais justa, tanto das vulnerabilidades, quanto da proteção a elas.

 

E a psicanálise com isto?

Vejamos o que diz Freud, no texto O mal-estar da civilização, quando faz uma referência indireta à democracia[14]. Ele nos permite perceber que a democracia deve existir como projeto. Mas também para o autor, e por outro lado, os conflitos são inevitáveis. Isto se verifica porque, com a pulsão de morte, não há possibilidade de se chegar a um consenso definitivo sobre coisa alguma.

Freud, nesse mesmo texto, nos mostra como nos defendemos da diferença. Apesar de o sujeito se constituir com o outro, é necessário encontrar certa distância entre uns e outros, a fim de controlar nossas hostilidades. Afinal, como ele já afirmara em Psicologia de grupo e análise do ego, por trás das intolerâncias está o narcisismo das pequenas diferenças[15]. Nesse sentido, é fundamental a função paterna para mediar hostilidades imaginárias.

No texto acima referido[16], Freud encontrava-se preocupado com o crescimento do nazismo. Alertava-nos para o perigo dos fenômenos de massa, uma vez que os relacionava com a anulação das diferenças entre os membros de um grupo e a identificação com o líder. A fim de se contrapor a tais perigos, nos propõe a função paterna como reguladora das relações e protetora das alienações narcísicas.

Podemos hoje, todavia, nos questionar, como fez Kehl: será que toda coletividade está pedindo um Füher?[17] Sem abandonar a noção de função paterna, mas questionando seu privilégio em psicanálise, Kehl propõe rever a noção de fratria, pretendendo examinar outros modos de operação do sujeito com os semelhantes, que não só a alienação.

Nem sempre o irmão precisa ser o intruso ou rival ao disputar o amor dos genitores. Não se poderiam estabelecer laços entre irmãos de ternura, amizade, solidariedade? Ainda segundo a autora, podemos conceber constituições grupais em que as fratrias forneçam amparo. Mas para tal, a autora nos alerta, não deve haver cristalização das fratrias, pois aí haveria o perigo de se transformarem em círculos fechados de proteção imaginária nos quais a alteridade poderia ser rechaçada.

Birman, mais do que "função fraterna", prefere usar o termo fraternidade. Faz isso ao afirmar que esta problemática exige teoricamente que se considere a presença da economia libidinal nos laços sociais[18]. Ele acrescenta que é preciso apreender a fraternidade de fora do registro da rivalidade, para depreender dela uma positividade. Assim, trata-se menos de disputa dos irmãos pelo amor do pai e mais?- ao se evidenciar a falta de proteção paterna devido ao inevitável excesso pulsional?- de assumir o desamparo que se localiza na base do psiquismo de todos nós.

Sem nostalgia do pai, afirma o autor, trata-se de erotizar e sublimar as diversas formas de subjetivação. Assim, o psiquismo, na medida do possível, se defrontaria criativamente com a sua condição de desamparo. Fraternidade se projetando agora não como defesa contra desamparo, numa espécie de servidão voluntária diante de um pai morto que precisamos restaurar, porém fraternidade a partir do reconhecimento desse desamparo que afirma as incertezas.

Vejamos o que foi dito acima, de forma mais detalhada. O laço fraterno está no centro da leitura freudiana do mito trabalhado em Totem e tabu[19]. Neste, vemos que o limite imposto à autossuficiência está na raiz do estabelecimento do laço social. Com o assassinato do pai todo-poderoso, os irmãos estabelecem sociedade e fraternidade. Contudo, se este assassinato gerou alívio frente ao fim da subjugação ao pai tirânico, gerou também culpa e estabelecimento de regras sociais.

Na modernidade, o homem se libertou da servidão frente à autoridade divina. Porém, deste ponto podemos falar dos riscos de uma cultura do narcisismo ou de um ego autossuficiente. O perigo de alguém se atrever a ocupar a posição onipotente do pai morto existe. Isto, particularmente, nas formações imaginárias de autossuficiência, típica da subjetividade moderna. Por isto, então, a psicanálise refere-se também à necessidade de castração simbólica. Neste sentido, a alteridade é um valor fundamental.

Acontece, contudo, que no mundo pós-moderno, com a perda das utopias, intensificou-se o desamparo, de modo que corremos o risco de depressões e outros tantos sofrimentos. A fraternidade pode fornecer uma saída que confira positividade ao desamparo e à precariedade de todos nós.

Os textos anteriormente citados trabalham essencialmente a partir de Freud e da releitura lacaniana. Mas outra vertente psicanalítica também pode enriquecer o tema das fratrias. É o caso dos trabalhos desenvolvidos por, e a partir de, Ferenczi[20] ou Winnicott[21]. Refiro-me mais especificamente à noção de criatividade deste último?- que não se refere a um sujeito descentrado pelo Outro, mas a um self que depende dos cuidados do outro para se expandir. A partir desta perspectiva, os grupos de jovens não poderiam funcionar como espaços potenciais nos quais a capacidade criativa pode se transformar em experiência criativa?

 

A título de conclusão

Retomamos aqui o tema das ocupações escolares por parte dos secundaristas, lembrando particularmente o fato de as ocupações ocorridas em São Paulo terem conseguido que o Governo do Estado voltasse atrás em seus projetos. No momento em que os movimentos sociais muitas vezes conseguem alterar decisões já tomadas por Partidos e Governos, a psicanálise?- se não quer ser conservadora e deseja ser usada como uma espécie de "objeto transicional", para usar um termo caro a Winnicott?- pode declinar do privilégio dado à função paterna e pensar mais positivamente os laços entre irmãos.

Na época das ocupações, fui conhecer algumas dessas Escolas. Para finalizar este artigo, deixo aqui um relato de uma cena entre as várias que presenciei nessas visitas.

Entrei na Escola e deparei com jovens arrumando o estabelecimento para um encontro que se daria em poucas horas. Tratava-se de um evento programado junto à Clínica do Testemunho (Projeto criado pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, visando reparação psíquica e construção de memória dos que sofreram violência do Estado, sobretudo presos políticos e seus familiares). Os secundaristas estavam, alegremente, varrendo o chão e limpavam os banheiros como quem oferece calorosa hospitalidade. Horas depois, a reunião transcorreu com vários testemunhos sendo dados. Inclusive, espontaneamente, com os deles próprios.

Claro que as escolas são lugares de reprodução do instituído, no qual questões como as desigualdades entre as classes sociais tendem a se reiterar. Afinal, as escolas, por si sós, não transformam a sociedade da qual são apenas um elemento. Elas dependem de políticas públicas efetivas e concretas do Estado. Todavia, acontecimentos, como os das escolas públicas ocupadas pelos jovens em 2016, puderam ter espaço. E eles conseguiram, ao menos nas ocupações paulistas, barrar a proposta do governo do Estado.

No que concerne mais especificamente ao trabalho do psicanalista em ambientes escolares, sabemos que não precisamos apostar apenas em momentos incomuns como esses apontados acima. Por que não conceber que podem existir, no cotidiano escolar, espaços facilitadores de ações democráticas, prazerosas e criativas?

Penso, por exemplo, nas rodas de conversas muitas vezes propostas aos grupos de estudantes. Esses dispositivos, ao darem voz aos jovens, trazem ao centro dos debates um dos grupos que estão à margem dos processos decisórios. Este dispositivo, além de poder auxiliar um cotidiano escolar mais prazeroso, pode se beneficiar de conhecimentos trazidos pela psicanálise. Conhecimentos estes que tanto podem ajudar seus participantes a se desfazerem de hábitos típicos do conhecimento que se pretende objetivo, quanto podem auxiliá-los no despertar e no refinamento de uma sensibilidade.

Tenho me interessado pelo que é produzido na intersecção entre o campo psicanalítico e o campo educacional, ao longo dos últimos 20 anos[22]. Percebo uma mudança se dando neste encontro. É possível afirmar que, inicialmente, os psicanalistas tendiam a oferecer serviços clínicos, tanto dentro quanto fora das Escolas, numa espécie de consultório estendido. Gradativamente eles começam a valorizar o próprio contexto escolar, o que acaba acarretando uma maior circulação dos psicanalistas no interior, no cotidiano, das escolas. Por fim, temos assistido inúmeras e crescentes propostas de se trabalhar com grupos (de professores, de pais, de crianças), a fim de escutar e implicar os vários sujeitos envolvidos nas atividades sugeridas.

Concluo pensando, justamente, que esta mudança reflete a valorização dos laços fraternos, por parte dos psicanalistas, diante da perda das utopias da dita pós-modernidade. Na medida em que o desamparo se intensificou, os laços entre irmãos aparecem como projeto ético e político.

Lembro as contribuições de Bollas ao se referir ao "conhecimento não pensado" e ao analista como "objeto transformacional". Com essas noções em mente, ele acredita que o analista deve estar preparado para "adoecer situacionalmente" com o paciente, quando chegar o momento. Neste caso, diante de uma difícil situação, o analista pode "ser empregado no idioma ambiental do analisando ao mesmo tempo em que desenvolve uma capacidade reflexiva e deliberada para a análise"[23].

Esse uso da contratransferência dentro da clínica psicanalítica, quando os analistas se apresentam, em certa medida, tão vulneráveis quanto os pacientes, é uma forma de abandonarmos o eu autossuficiente como um tipo de posse. Nesta perspectiva, penso que se assim atuarmos em nossas propostas de trabalho nos espaços escolares, estamos também quebrando a verticalidade e a hierarquia na relação analítica[24].

Por que não nos propormos a estabelecer, na medida do possível, relações subjetivas (analíticas ou não) sob a precariedade de todos nós? Por que não uma distribuição mais justa tanto da vulnerabilidade quanto da proteção a ela? Afinal, não estamos todos no mesmo barco da existência?


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