EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Esse trabalho propõe-se a denunciar a decisão de dar medicamentos psiquiátricos a crianças, o que pode deixar marcas profundas em seu psiquismo. Por esse motivo, embasados em uma ética psicanalítica, este artigo argumenta que devemos lutar a favor da desmedicalização das doenças infantis, denunciando os perigos decorrentes do uso de medicamentos. Damos também elementos metapsicológicos que nos permitem entender os conflitos de atenção e a hiperatividade.


Palavras-chave
medicalização; desatenção; hiperatividade; recalcamento primário e secundário.


Autor(es)
Ana Maria Sigal Sigal
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso de Psicanálise e coordinadora do Curso Conflito e Sintoma, ambos do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora, autora de vários livros, entre os quais O lugar dos pais na psicanálise de crianças (Escuta), Escritos metapsicológicos e clínicos (Casa do Psicólogo).


Notas

1.As siglas add e adhd correspondem na língua inglesa, respectivamente, a Attention Deficit Disorder e Attention Deficit Hiperactive Disorder. O termo usado em português no dsm iv é Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade?- tdah.

2.Tratei este tema com profundidade no texto "O sintoma e a medicalização", in O sintoma e suas faces, orgs. L. Fuks e F. Ferraz, reproduzido em A. M. Sigal, "Medicalização na infância, um estudo sobre o sintoma de desatenção", in Escritos metapsicológicos e clínicos.

3.Nota adicionada em 2018: A última versão do Manual de Diagnóstico Diferencial, dsm-v é de 2013 (American Psychiatric Association, 2013). Christian Dunker publicou recentemente (2018) um artigo chamado "Crítica da razão diagnóstica: por uma psicopatologia não?- toda", no qual faz uma excelente análise das modificações que ocorreram no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (dsm). Suas considerações enriquecem em muito as discussões politicas relacionadas ao dsm.

4.S. Freud, Inhibicion, Sintoma y Angustia (1926).

5.S. Freud, La Moral Sexual Cultural y la Nerviosidad Moderna (1908), p. 168.

6.Nota adicionada em 2018: As novas mídias, Facebook, WhatsApp e outras, nos confrontam com uma informação quase instantânea das viagens, comidas, desejos e aquisições que são postados com fotos e muitas vezes sem palavras, o que transforma a vida privada das pessoas em anúncios públicos de seus movimentos, nos invadindo de forma incontrolada.

7.S. Freud, Psicologia de las Masas y Analisis del Yo (1921).

8.S. Freud, Formulaciones sobre los dos Principios del Acaecer Psíquico (1911).

9.Vou me referir a dois conceitos trabalhados por Silvia Bleichmar. Transtorno (pré-sintomais), quando referido ao recalcamento primário, e sintoma, quando referido ao recalcamento secundário. Estes conceitos podem ser revistos no livro En los origenes del sujeto psíquico, p. 73.

10.      S. Freud, Carta 52 (1896).

11.      S. Freud, Proyecto de una Psicologia para Neurologos (1896).

12.      O nome comercial desta substância é Ritalina ou Strattera.

13.      Encontro Sul-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, apostila, 1999.



Referências bibliográficas

Bleichmar S. (1984). Em los origenes del sujeto psiquico. Buenos Aires: Amorrortu.

Costa Pereira M. E. (2000). A paixão nos tempos do dsm: sobre o recorte operacional do campo da psicopatologia. In Pacheco R. (Org.). Ciência, Pesquisa, Representação e Realidade em Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 119-152.

Dunker C. (2018). Crítica da razão diagnóstica. In: Safatle V.; Silva Jr., N.; Dunker, C. (Orgs). Patologias do Social. São Paulo: Autêntica.

Estados Gerais (1999) apostila.

First M. (2000). Manual de diagnóstico diferencial do dsmiv. São Paulo: Artmed.

Freud S. (1896/1988). Proyecto de una psicologia para neurólogos. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu.

____. (1896/1988). Carta 52. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu.

____. (1908/1988). La moral sexual y la nerviosidad moderna. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrotu

____. (1911/1988). Formulaciones sobre los dos princípios del suceder psíquico. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,

____. (1921/1988). Psicologia de las masas y analisis del Yo. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu.

____. (1926/1988). Inibicion, sintoma y angustia. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu.

Sigal A. M. (1997). O lugar dos pais na psicanálise com crianças. São Paulo: Escuta.

____. (2006). O sintoma e a medicalização. In Fuks, L.; Ferraz, F. (Orgs.), O sintoma e suas faces. São Paulo: Escuta.

____. (2009). Medicalização na infância, Um estudo sobre o sintoma de desatenção. In Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Winnicot D. (1978). Da pediatria a psicanálise. São Paulo: Francisco Alves Editora.





Abstract
This work aims at criticize the decision of administer psichiatric remedies to children, as they may leave deep scars in their psichism. For this reason, based on a psichanalitc ethic, this article argues that we should fight against the medication of children disesaes, exposing the risks involved in the use of drugs. We also provide metapsichological arguments that allows the parties to understand the attention deficit and hyperactive disorder.


Keywords
Keywords?medication; attention deficit; hyperactive disorder; primary and secundary repression.

voltar à primeira página
 TEXTO

O que a psicanálise tem a dizer sobre o chamado Transtorno de Déficit de Atenção Com ou Sem Hiperatividade, ADD ou ADHD

What Psychoanalysis has about the so-called Attention-Deficit Disorder with or without Hyperactivity, ADD or ADHD
Ana Maria Sigal Sigal

Gostaria de poder articular algumas ideias que nos permitam adentrar nos determinantes oferecidos pela psicanálise para entender este fenômeno chamado pela medicina e neurociências de Transtorno ou Síndrome de Déficit de Atenção e Hiperatividade (add ou adhd)[1]. Embora não se possa negar o valor diagnóstico para alguns casos restritos, esta síndrome, que tanto se popularizou, vem ocupando o lugar de receptáculo de um número excessivo de distúrbios que não correspondem às patologias clássicas.

 

Sem dúvida é alarmante, hoje em dia, a inconsequência presente na decisão de dar às crianças remédios que deixarão marcas profundas em seu psiquismo. Por este motivo, embasados por uma ética psicanalítica, devemos lutar a favor da desmedicalização das doenças infantis e denunciar os perigos dos excessos no uso de medicamentos[2]. Mas, além de contestar, se faz necessário trabalhar a partir da especificidade de nosso saber, que entende que as patologias infantis se organizam como resposta às determinantes inconscientes que circulam na difícil tarefa de se constituir como sujeito.

 

Em princípio, a psicanálise não caracteriza estas manifestações como síndrome, porque trabalhamos com o conceito de singularidade e vemos que quase todos os índices apontados pela neurobiologia como relacionados a esta patologia aparecem, de forma conjunta ou isolada, em numerosas estruturas ou organizações infantis, algumas patológicas e outra sem este caráter, já que poderiam ser compreendidas como formas normopáticas que representam a singularidade de um sujeito.

 

Esforçamo-nos para não reduzir tudo a uma unidade totalizante, preservando a multiplicidade e complexidade dos fenômenos psíquicos. Freud utiliza os quadros psicopatológicos não como nomenclatura, e sim como uma aproximação que permite decifrar os modos de produção de sintomas. Na clínica, devemos nos interessar mais pela metapsicologia do que pelos fenômenos descritivos. Pelo exposto, vemos que, para o psicanalista, o inventário de traços de caráter e sintomas só tem um valor relativo e pouco confiável, se não estão referidos ao conflito e alinhavados à perspectiva de uma vida e de uma história determinada pela trama do recalcado que os origina.

 

Só à guisa de exemplo, tomaremos alguns dos índices?- são aproximadamente vinte e dois, no total?- cuja presença em número de seis manifestações configuraria o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Estes índices são apontados pela tabela que caracteriza as doenças psíquicas no Manual de Diagnóstico Diferencial do DSM IV 1994[3], publicado em 2000 pela Editora Artmed:

 

  • Não presta atenção aos detalhes.
  • Comete erro nas tarefas escolares.
  • Tem dificuldade para concentrar-se em tarefas e jogos.
  • Parece não escutar quando lhe falam.
  • Deixa tarefas incompletas.
  • Não cumpre ordens ou instruções.
  • Rechaça ou evita atividades que requerem esforço mental.
  • Distrai-se com estímulos alheios à tarefa.
  • Pés ou mãos mostram-se irrequietos.

 

Mas será que o fenômeno é mais importante do que as causas que são o suporte destes sintomas? Para a medicina, a tosse é uma manifestação que pode corresponder desde a uma tuberculose a um engasgamento, a tosse em si mesma nos diz muito pouco a respeito da doença que está por trás.

 

Não permanecer sentado em classe, ter dificuldades de brincar calado, falar excessivamente... Perguntamos o que dizem estes índices por si, se não investigamos as causas que os produzem. O que quer dizer que uma criança fale demais e não permaneça sentada?

 

Podemos pensar que estas manifestações não têm sentido? Não. Para a psicanálise, estão nos falando de dificuldades no encontro com o outro, de conflitos expressos deste modo; há motivações subjetivas da ordem do desejo que subjazem a estas questões, ou impossibilidade de transformar em discurso a força de um mundo pulsional que invade o Eu e se transforma em ato.

 

Parece pouco provável que uma medicação possa atuar sobre elementos tão diversos, que falam mais da alma que do organismo.

 

Já vimos numerosos deste signos, em conjunto ou em separado, formando parte de estruturas neuróticas ou psicóticas; acreditamos que um remédio só reprimirá ou adormecerá, conterá ou disfarçará o que nos está expressando a criança, mas nunca resolverá a dinâmica inconsciente responsável pelo sintoma ou transtorno.

 

Penso uma psicanálise que se preocupa com o ponto de articulação do inconsciente com o cultural, social e histórico de sua época, resgato um Freud no qual o social se presentifica no individual a partir do modo em que as instâncias familiares, parentais e políticas representantes do social tomam forma nas instâncias singulares organizadoras da segunda tópica. As instâncias inconscientes se estruturam a-temporalmente, mas os conteúdos que estão em jogo são decorrentes das novas exigências, das novas modalidades de estruturação da família, da sexualidade que, por sua vez, infligem ao superego mandatos de acordo com a moral da época.

 

Na singularidade da vida do sujeito, os acontecimentos de sua história são determinantes em sua produção psíquica, mas ele está inserido numa história que o transcende?- a história da sua época, da qual não pode escapar. Freud não deixa de pensar nas consequências neurotizantes do mal-estar na civilização. Penso que as mudanças nas relações impostas pelas novas formas de produção, distribuição e consumo sejam em parte responsáveis pelas novas subjetividades.

 

Parto da hipótese de que o momento histórico produz indivíduos desatentos e hiperativos e que estas manifestações podem ser entendidas como transtornos precoces ou como verdadeiros sintomas. Penso também que a hiperatividade oferece as condições necessárias para a desatenção, e que a desatenção aparece como uma possibilidade defensiva do Eu para dar conta tanto da invasão pulsional, quanto da invasão da realidade. A desatenção pode, por sua vez, induzir à hiperatividade como uma manifestação da dificuldade de reorganizar o mundo pulsional e de encontrar formas de satisfazer o desejo. O nome ambíguo com que nos apresentam o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade traduz a dificuldade em separar totalmente os campos. Às vezes um é reverso do outro.

 

Sabemos, como nos diz Freud em "Inhibicion, Sintoma y Angustia"[4], texto do ano de 1926, que as circunstâncias de um caso real de enfermidade neurótica são muito mais complicadas do que supomos enquanto elaboramos abstrações teóricas mas, mesmo assim, nós, psicanalistas, nos empenhamos em pensar a teoria, que opera de forma muda, como substrato que nos orienta na clínica e, por isto, insistimos.

 

Estas manifestações ou sintomas respondem a vários fatores, alguns dos quais tentarei apresentar. Vou tomar dois eixos para percorrer a questão:

 

Um eixo busca caracterizar o momento histórico, para entender como a hiperatividade e a desatenção são duas possibilidades de resposta do sujeito em relação ao fluxo de demandas que o convocam. A sociedade atual favorece um desequilíbrio entre princípio de prazer e princípio de realidade, e este desequilíbrio cria patologias precoces na constituição do psiquismo.

 

O segundo eixo refere-se às considerações metapsicológicas relativas ao recalcamento, fazendo uma diferenciação entre recalcamento primário, fundante do inconsciente, e secundário, uma vez instaurado o super-eu.

 

No que se refere aos problemas na instauração do recalcamento primário, usaremos o termo "transtorno" e, no que diz respeito ao recalcamento secundário, optaremos pela palavra "sintoma", considerando assim a hiperatividade e a desatenção como sintomas, produtos de verdadeiras neuroses, nas quais consideramos a segunda tópica e o conflito como produtor. O modo de tratar ambos difere: enquanto no primeiro caso trabalhamos com a reconstrução e se faz necessário pôr palavras onde estas faltaram, no segundo trabalharemos mais com a interpretação e o desvendamento dos conteúdos inconscientes, que só podem aparecer através de uma solução de compromisso.

 

Momento histórico e sua repercussão
na formação subjetiva

Para que esta questão adquira sua verdadeira dimensão, é necessário fazer uma breve referência a um precioso texto de 1908, A Moral Sexual Cultural y la Nerviosidad Moderna"[5]. O que interessa é a influência nociva que certos traços culturais produzem sobre o desenvolvimento da vida sexual dos povos, nos diz Freud. Esta formulação deixa claro que não se trata de uma sociologia e sim da forma e das marcas que estes fenômenos deixam na constituição do sujeito e, fundamentalmente, como operam em relação à sexualidade infantil. O inconsciente não deve ser buscado na biologia, nos instintos, mas sim nas ordenações que possibilitam a cultura, a constituição do sujeito psíquico. Desde que destacamos o caráter diferencial entre instinto e pulsão, rompemos com o sentido naturalista do instinto e denotamos o caráter cultural de toda sexualidade, ainda mais primitiva. O discurso do outro-Outro que possibilita a constituição subjetiva não é a-histórico ou atemporal.

 

Nosso tempo globalizado e moderno quer ver homens de sucesso e capazes de tudo, para os quais a castração aparece como uma falha que deve ser remediada, mas nunca aceita. A limitação deve esconder-se, para que homens e mulheres atinjam o ideal de perfeição; devemos passar a impressão de que tudo se pode, de que não existe a falta, já que esta nos deixa fora da conquista do sucesso. Assim se fomenta com frequência a renegação da castração e se aposta numa completude que impulsiona narcisismos os mais sombrios. Quem não consegue se adaptar a um esquema de sucesso é vítima de depressão, outro mal da época. Hoje se confunde tristeza com melancolia e se medica?- como se fosse patologia?- algo que é constitutivo do ser humano e que possibilita lidar com a perda, com a dor que nos impõem os lutos e as limitações. Hoje parece que nos regem os ideais dos deuses.

 

Entendo que estas condições estão intimamente ligadas à aparição em massa do diagnóstico de add, que penetra rapidamente nos consultórios pediátricos e nas escolas.

 

Velocidade, excesso de estímulo, ligações pouco profundas e estáveis com a realidade.

 

O surgimento de uma nova indústria voraz, consumidora dos conhecimentos científicos, transformou estes, rapidamente, em técnicas de produção de objetos, criando novos entornos humanos, acelerando a vertigem do consumo de objetos e vidas, criando novas relações entre homens, classes sociais, acelerando o ritmo da vida urbana, consumindo nossas existências. Neste turbilhão, os processos sociais tomam formas caóticas; as ideias, os processos de pensamento se multiplicam e se fragmentam, criando um deslocamento permanente para o consumo de tudo o que for necessário, do conhecimento ao lazer. O zapping na tv[6] é a mostra mais escandalosa deste voo rasante imposto pelo desejo de se apropriar de tudo. As crianças, desde que nascem, estão submetidas a uma multiplicidade de estímulos que as retira dos momentos de calma e interiorização. São demandadas insistentemente pelo externo?- músicas, apitos, móbiles com cores e luzes, que as mantêm exteriores a si. A mãe chacoalha, fala, estimula, porque escutou que, quanto mais ligações neuronais a criança produz, maior será o estimulo à sua inteligência. Ela, a mãe, na sua ansiedade de dar conta de suas próprias demandas, corre e passa apressada pelo encontro com os filhos.

 

Desta forma, pensamos que a realização humana se dará através da aceleração dos tempos, apressando a ininterrupta corrida da história, possuindo a todos e a tudo, sem lugar para a falta. Temos que estar sempre à frente.

 

No outro extremo, recolhimento e investimento em si mesmo. Aumento do narcisismo.

 

Na vida social, a identificação com os líderes resultará mais difícil, pois os grandes homens da história pensados por Freud em seu trabalho sobre a Identificação e a Massa[7] são cada vez mais raros de se encontrar. Quando se recolhe, o sujeito se vê assim remetido cada vez mais a si mesmo, o que insufla o narcisismo e dificulta o diálogo com o outro da relação humana.

 

As crianças são consumidoras e, por sua vez, consumidas pela lógica do mercado, uma contradição que se faz flagrante. As crianças ocupam o centro da sociedade, pois as famílias se organizam para eliminar as frustrações e satisfazer todos os desejos infantis.

 

Estamos no tempo do princípio do prazer, a realidade deve saciar a falta que põe em movimento o desejo de recuperar o primeiro objeto de satisfação. Uma excitação se reativa de forma incontinente na tentativa de preencher o vazio que provoca a frustração do tempo de espera, como se existisse a necessidade de que a satisfação fosse anterior ao desejo. Assim, num movimento contínuo?- porque não se tem a experiência de satisfação?- o sujeito se desorganiza e produz um movimento hipercinético com perda do objetivo. As crianças não têm tempo de buscar seus obscuros objetos do desejo, pois estes são transparentes, estão lá e se possuem, mas nem se percebe que produzem satisfação e prazer, nem esticar a mão para alcançá-los se faz necessário. E assim começa uma nova busca, um novo movimento, uma nova excitação incontinente. A oferta de inúmeros brinquedos, viagens, filmes ou passeios impede a possibilidade de desejar; pelo contrário, quando se possui o objeto, este já deixou de ter sentido e tal processo é de uma velocidade estonteante.

 

A realidade, tal como se apresenta às crianças na atualidade, não colabora para manter um equilíbrio desejável, produzindo alterações no interjogo do desejo e de sua satisfação.

 

O Eu, em suas funções ligadas à realização do desejo inconsciente, opera o princípio de realidade para alcançar a satisfação, mas este é atropelado e não encontra as vias necessárias para processar, no aparelho psíquico, os caminhos diversificados que descomprimem a força da pulsão. Deste modo, o princípio de prazer busca desorganizadamente modos de escoamento, tentando hiperativamente caminhos de satisfação.

 

É importante relembrar que os sintomas que nos preocupam são atenção e hiperatividade, sintomas ligados, por um lado, à forma em que o Eu reage frente às ameaças internas do aumento de excitação e, por outro, às oportunidades que a realidade oferece para dar vazão às tensões psíquicas. Tomaremos os dois princípios de funcionamento do aparelho psíquico, que poderão auxiliar-nos a entender o que se altera: princípio de prazer e princípio de realidade.

 

Freud trabalha com eles desde as suas primeiras elaborações metapsicológicas e os enuncia no texto de 1911, Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico[8], e os mantém no decorrer de toda sua obra, ampliando-lhes o sentido e aportando novas considerações.

 

Frente à urgência de satisfação, para a qual toda demora aparece imediatamente como frustração, a pulsão tenta encurtar os caminhos de satisfação. Aqui entra o princípio de realidade, que se impõe como princípio regulador, sob o qual a satisfação já não é imediata, mas passa por desvios e adia seus resultados, em função das condições impostas pelo mundo exterior. O princípio de realidade aparece secundariamente como uma modificação do princípio do prazer que, no início, é único e soberano; sua instauração corresponde a uma série de adaptações que o aparelho psíquico tem de sofrer, a saber: desenvolvimento das funções conscientes, atenção, juízo, memória, substituição da descarga motriz por uma ação tendente a uma transformação adequada na realidade, e o nascimento do pensamento. Neste sentido, o princípio de realidade está intimamente ligado às funções do Eu, como intermediário entre o desejo e sua realização. O desejo está ligado a traços mnêmicos e vai à procura de objetos que, fantasmaticamente, provocaram o reencontro com o objeto primeiro da satisfação, objeto definitivamente perdido.

 

Quando a pulsão transborda e exige, aparecem movimentos maníacos, hipercinéticos, sem finalidade adequada, tentando achar na realidade uma oportunidade de diminuição da tensão. O movimento desejante se transforma em pura descarga e o ego encontra no próprio movimento a satisfação autoerótica de um ego-prazer-corporal que se distancia dos investimentos libidinais de objeto. O movimento adquire um valor de satisfação de órgão, reproduzindo uma descarga masturbatória na qual a finalidade está no próprio movimento. Não poderíamos aqui falar da hiperatividade como verdadeiro sintoma e sim como um transtorno decorrente da forma que a premência de satisfação do desejo impõe ao Eu.

 

Poderíamos dizer que a hiperatividade responde, de modo predominante, a uma movimentação autoerótica e que a desatenção tem raízes mais profundas no narcisismo. No autoerotismo, o objeto da pulsão se apaga em benefício do órgão que é a fonte, ou seja, a pulsão se satisfaz no próprio corpo.

 

Quando a satisfação não é autoerótica, pode responder a um investimento narcísico e, neste caso, o objeto é o Eu. Aqui aparece em forma também prematura o transtorno de desatenção, porque o próprio Eu se transforma no objeto pulsional e a atenção se desvia para o mundo interno ou para o representante da realidade no mundo interno, aumentando a desatenção voltada ao mundo externo por conta do desinvestimento libidinal e do sobreinvestimento da atenção no mundo interno e no Eu como objeto.

 

O princípio da realidade regula a obtenção real das satisfações e orienta a satisfação do desejo, e o princípio do prazer continua a reinar em todo o campo das atividades psíquicas, domínio reservado ao processo primário e ao inconsciente.

 

Freud insiste que, além da exigência da vida e da cultura, são os sentimentos familiares derivados do erotismo os que levam o sujeito a fazer suas renúncias. Na verdade, é disto que falamos, da forma em que o erotismo e as figuras sociais encarnadas nos pais fazem marca no psiquismo.

 

Hoje em dia, o ideal dos adultos está narcisicamente organizado dentro da própria família e é nela que tem que se satisfazer. Vive-se para a família, ela se transformou no objetivo das existências, ocupa o centro e se transforma no ideal máximo de aspiração dos sujeitos. Os ideais sociais que movimentavam o desejo para realizações coletivas se transformaram hoje nos ideais familiares.

 

Entendemos que não são os objetos de consumo em si os que patologizam, mas aquilo que eles representam no vínculo intersubjetivo e seu lugar de inscrição inconsciente: rejeição, dominação, perda, submetimento, triunfo sobre o outro da relação. "Consigo tudo o que quero", "submeto meus pais a meus desejos", "não sou amado, pois não sou satisfeito", "sou descartável, assim como o são meus objetos", "é só desejar, que aparece", "não posso ser frustrado": o pensamento mágico e a onipotência caracterizam as soluções do momento atual.

 

Considerações metapsicológicas relativas ao recalcamento primário e secundário

Vou dividir esta segunda abordagem, considerações metapsicológicas relativas ao recalcamento primário e secundário[9], em dois itens, pois segundo o modo em que o recalcamento tenha operado e deixado marca pode dar origem a transtornos da ordem da atenção e do movimento.

 

Causas precoces que produzem falhas na formação do sujeito decorrentes de falhas do recalque primário ou da relação com o outro.

 

Causas que se originam no recalcamento secundário, produzindo sintomas, formações do inconsciente que se expressam na desatenção e a hiperatividade.

 

Falhas do recalque primário

Primeiramente vou me ater aos transtornos na motricidade ou atenção, produto de interferências precoces que decorrem de uma falha do recalcamento primário ou como transtornos no marco da tópica intersubjetiva.

 

Cabe dizer que o fato de que estes transtornos apareçam em momentos tão precoces da formação do sujeito permite a confusão com causas orgânicas. Muitos médicos e mães dizem: estas crianças são agitadas desde o começo. Só que desde o começo e mesmo antes de nascer, já tinham um mundo pré-determinado ao qual viriam, já se fazia uma leitura de seus movimentos, já se esperava uma criança esperta, ligada ou desatenta, já um outro atribuía sentido ao corpo, já ocupava um lugar no mundo desejante que a receberia. Se a criança permanece tranquila no berçário, haverá alguém que diga "é quietinha e desligada como a avó", ou frente aos movimentos, "não para um minuto, o pai é assim". Isto, sem dúvida, vai marcando uma leitura que determina as formas de resposta da criança.

Para adentrar nas dificuldades que decorrem das primeiras marcas na formação do aparelho psíquico, tomarei a Carta 52 (1896)[10] e o Proyecto de una psicologia para neurologos[11], texto no qual encontramos a primeira teoria do aparelho psíquico. Freud nos diz que através do aparelho de percepção se inscrevem representações que vão deixando marcas. Estas representações vão formando o aparelho de memória, vão se ligando, formando conglomerados que se associam por continuidade ou contiguidade e constroem relações, ligações que constituem o mundo fantasmático. De tempos em tempos, o material preexistente sofre um reordenamento segundo novos nexos, isto é, uma retranscrição do material preexistente. Este processo nos ajuda a entender a origem do primeiro recalcamento, o recalcamento primário, que terá um lugar importante na teoria, já que será o ímã ou o polo de atração dos recalcamentos posteriores?- recalcamento secundário?- que dará origem às neuroses. Algumas destas marcas ficam fora de qualquer rede e a pulsão se fixa nelas, e assim permanecem, formando parte do recalcado primário, ou seja, aquilo que não encontrou forma de derivação ou tramitação dentro do aparelho psíquico. Estas fixações, que não chegam a ser representação-palavra, não encontram via de simbolização e às vezes emergem como ato, como descarga, produzindo presença sem discurso e se utilizando dos sistemas motores ou corporais para se fazerem presentes. Não se produz a ligação com a representação-palavra porque não funcionam os movimentos de condensação e deslocamento que, através da metáfora e da metonímia, se transformam em processos de linguagem. O movimento permanente funciona como uma descarga sem tramitação psíquica que permite o escoamento da angústia.

 

Neste sentido, a hiperatividade poderia ser entendida como uma neurose atual, sem ter o caráter de expressão do mundo desejante que constitui o campo das encenações do inconsciente, mas sim de emergência de pulsões parciais fixadas e não associadas através do discurso.

 

Todos os autores que se dedicam a acompanhar estes primeiros passos na formação da subjetividade nos falam de um momento de não integração, de um organismo que pulsa e que trata de encontrar sua integração a partir do encontro com o semelhante. Falam de um momento de desorganização motriz e de descarga, significado a partir da relação com a mãe. Pulsões parciais, corpo esfacelado, não integração, splitting são as diferentes terminologias que nos remetem a diferentes escolas, mas todos partem da mesma concepção, o dividido, e é assim que se apresenta o bebê, pois a forma da mãe de se relacionar com seu filho?- se intrometendo, invadindo, acolhendo ou sustentando este corpo pulsional?- marcará em parte seu destino. Os movimentos espontâneos desorganizados vão adquirindo sentido e produzindo ligações e coerência a partir do invólucro materno.

 

A mãe é quem sustenta, envolvendo com o corpo, com o olhar e com a voz, os movimentos espasmódicos da criança, possibilitando uma contenção que progride juntamente com a maturidade neurológica, dando um sentido e estruturando um psiquismo que vai produzindo marcas psíquicas.

 

 Quando invadido, o indivíduo reage e provoca uma resposta, que pode ir desde a agitação até o afastamento do estímulo. A criança se recolhe em si mesma para manter a continuidade de sua existência, como nos diz Winnicott, e aqui encontro a raiz de numerosos fenômenos de desatenção.

 

A relação do movimento, a contenção, a atenção e a desorganização têm a ver com a forma em que o invólucro materno, num primeiro momento, une, enlaça, alinhava os estímulos desligados, e vai permitindo que o elemento externo se transforme ou se introjete como elemento interno. O que no começo é pele, entorno e contorno, vai se transformando em rede, que opera oferecendo sustentação à distância, assim como ocorre com os trapezistas, que conseguem fazer movimentos harmônicos e precisos, sabendo que há uma rede que os protege do break down?- assim a criança vai integrando seus movimentos na rede virtual da mãe, agora internalizada.

 

Desde a mãe, o que seria puro soma na criança se transforma em psique-soma. À medida que a criança consegue momentos mais estáveis de integração, a mãe vai se distanciando e se colocando como aquela rede que protege à distância.

 

Quando falha este processo de rede, a criança pode alienar-se, comportar-se de forma desajeitada ou encontrar-se em estado de desorientação. É capaz de existir sem a capacidade de dirigir seu interesse e movimento. A desatenção se apresenta como um filtro para deter a voracidade, o perigo representado por uma mãe incontinente que demanda permanente resposta, para se sustentar no vazio que decorre da separação pós-parto.

 

As crianças que, quando bebês, viveram uma invasão constante, aprendem um modo de funcionamento protegido que as mantém a certa distância dos acontecimentos que as solicitam. Esta é a razão por que vão de um estímulo a outro?- hiperatividade?- ou por que se recolhem e aparecem como desatentas. Winnicott poderia nos dizer que são modos de proteção frente à invasão materna.

 

Produção de sintomas

Para terminar, podemos pensar na hiperatividade e desatenção como sintomas neuróticos, produto do recalcamento secundário, uma vez que o Édipo faz marca.

 

Nestes casos, os conflitos estarão demarcados pela exigência feroz de um ideal de Ego inatingível.

 

Um ideal inalcançável que se confronta com uma imagem produzida pelos imperativos de um supereu demolidor. As identificações pelas quais se encontraria a saída do complexo edípico impõem ideais distantes, que se tornam inalcançáveis e o novo jogo desatenção-hipercinesia pode aparecer aqui como sintoma. A desatenção é uma forma de recusa ao se defrontar com o que poderia ser vivido como fracasso. "Não me interesso, não quero participar, não estou nem aí, assim não preciso me defrontar com o fracasso": a dificuldade de alcançar o ideal se transforma em condição de negação. Do mesmo modo, a hiperatividade aparece como a possibilidade de abraçar tudo, pois nada se perde; representa a possibilidade de se identificar com o ideal de poder e onipotência e em tentativa de domínio.

 

Os êxitos, as conquistas esportivas, linguísticas e escolares são premiadas e falam do sucesso nas identificações, consolidando um narcisismo que, às vezes, está mais ligado ao ego ideal do narcisismo primário, que ao destino das identificações edípicas.

 

O sucesso dos pais e da criança aparecem fundidos e já não se sabe de quem é a vitória. Estas crianças são incapazes de sustentar uma frustração ou de renunciar à aprovação, que funcionam como elementos que estruturam, a partir do exterior, um Ideal do Eu inalcançável, transformando o supereu numa instância exigente e sádica que propicia o fracasso e a melancolia.

 

Considerações finais

As demandas da sociedade estão veiculadas de formas diversas, segundo as histórias subjetivas dos pais, avós, irmãos, que encarnam seus desejos e que determinam este espaço onde a criança deve advir. Tanto o excesso de investimentos como de demandas propõem respostas hipercinéticas, e dificultam a concentração e a atenção em virtude da necessidade de satisfazer ao outro.

 

A clínica tem me mostrado que as mães das crianças hiperativas são mães que temem a depressão e, às vezes, a morte da criança. Elas as estimulam, acordam, controlam e vigiam, porque não têm confiança na sobrevivência daquele que seria seu objeto de amor.

 

Os médicos, os pais informados pela mídia e o entorno veem surgir uma nova modalidade para qualificar as condutas das crianças que, por diversas razões, sentem dificuldade em fixar a atenção ou respondem às demandas do meio com uma agitação não muito diferente da que acontece nos adultos que não param um segundo, para poder incluir em seu horário as múltiplas demandas sociais.

 

Recentemente soubemos pela mídia que um professor de Harvard sugere a administração de metilfenidato[12] a todas as crianças, já que isto poderia melhorar o aprendizado, elevando a média de rendimento escolar.

 

Se nos Estados Unidos, em 1978, havia 500 mil crianças diagnosticadas e medicadas por tda/h, em 1987 havia 4.400.000. Não podemos ser ingênuos e negar que, por trás destes números, há uma ideologia que tenta apagar os conflitos, arrasando ao mesmo tempo com a liberdade, utilizando o remédio para negar a palavra.

 

Esta ideologia corresponde ao que foi precisamente enunciado no manifesto contra a medicalização produzido nos Estados Gerais da Psicanálise: "Patologizar é reduzir à categoria de doença inúmeras manifestações subjetivas e sociais que, dessa forma, são submetidas ao domínio de especialistas da área da saúde. Tal operação política?- legitimada socialmente, através do uso do argumento de autoridade de uma suposta ciência neutra?- destitui os sujeitos de seu saber e aliena-os em relação a seus próprios corpos, mentes e existências"[13].

 

Frente a isto, como psicanalistas, temos o compromisso ético de denunciar este movimento e, ao mesmo tempo, pensar sobre as causas destas dificuldades que crescem assustadoramente, mas que, como as depressões e os pânicos, não podem ser relegadas ao campo da pura substância orgânica.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados