EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Sergio Zlotnic, Psicanálise freudiana. A metapsicologia da atenção flutuante, São Paulo, Giostri, 278 p.


Autor(es)
Luís Cláudio Figueiredo Figueiredo
é psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

voltar à primeira página
 LEITURA

A Escola Húngara de Higienópolis [Psicanálise freudiana. A metapsicologia da atenção flutuante]

The Hungarian School of Higienopolis
Luís Cláudio Figueiredo Figueiredo

O admirável livro de Sergio Zlotnic tardou a vir a público, mas não envelheceu. Continua a ser oportuno, útil e muito original, anos depois de sua elaboração e apresentação como tese de doutorado na USP. Esta origem, um tanto suspeita e nada convidativa quando o assunto é psicanálise, tem exceções. É o caso do trabalho de Zlotnic, por sinal, muito bem escrito e de leitura fácil e agradável, apesar da complexidade de seu tema.

O título e o subtítulo têm algo de desconcertante. Psicanálise freudiana? Ao leitor que se embrenha nos caminhos percorridos e nas questões enfrentadas pelo autor este título pode parecer vago, inespecífico, muito amplo ou, ao contrário, muito restritivo.

Para começar, se Freud é uma referência básica, não ocupa sozinho o centro do palco. Ao menos Sándor Ferenczi nos parece tão importante e tão determinante dos rumos das elaborações que aqui nos são apresentadas quanto as raízes freudianas. E há ainda outros interlocutores importantes, ‘freudianos' no sentido amplo, mas, muitas vezes, como Balint, muito mais próximos a Ferenczi.

Ademais, o que vemos emergir da escrita de Sergio não se parece em nada a uma concepção convencional do que poderia ser nomeado de ‘psicanálise freudiana'. Esta, na verdade, nos é apresentada em suas entranhas, mas também ‘pelo avesso', em seus limites, ou em suas bordas, e em movimentos e posições que transpõem tais limites e se deborda para um ‘além de Freud'.

Finalmente, a que Freud aludimos ao falar em ‘psicanálise freudiana'? Zlotnic sabe perfeitamente que Freud é múltiplo e uma ‘psicanálise freudiana' não poderia ser dita no singular. Reconhece ainda que seus inúmeros seguidores e continuadores (por vezes contestadores, em alguns pontos) fizeram desta multiplicidade um horizonte fecundo e propício ao desenvolvimento de perspectivas distintas, divergentes quando não contrapostas.

No entanto, à medida que avançamos na leitura, vai se fazendo claro como todo este campo imenso e variado de dispersão ainda merece e precisa ser nomeado como ‘psicanálise freudiana', ainda que lida no sentido ‘anti-horário'.

Ou seja, o título nos confunde e induz ao erro de pensar que Zlotnic está a nos falar a partir de um ponto de vista ingênuo e simplificador, meio escolar. Em seguida, o título nos provoca: como dar este nome a um trabalho que não poderia existir sem as ideias de Ferenczi e muitos outros autores que deram contribuições importantes ao pensamento teórico e clínico da chamada ‘psicanálise contemporânea'? Finalmente, mas apenas finalmente, o título ganha força e verdade: sim, este campo plural de dispersão metapsicológica, psicopatológica e técnica é o da mais verdadeira psicanálise freudiana em sua máxima potência. Mas esta descoberta não é para iniciantes. A isso voltaremos depois.

Antes, contudo, precisamos também expressar nosso profundo desgosto com o subtítulo: "a metapsicologia da atenção flutuante". Não nos parece, e isso do começo ao fim da leitura, que a metapsicologia em si mesma esteja no centro do foco, embora dele não esteja excluída. Achamos que no centro do foco estão questões psicopatológicas?- formas de adoecimento?- e técnicas?- estratégias de atendimento. E, neste aspecto, a grande questão diz respeito justamente aos limites da escuta do inconsciente recalcado e seus retornos, quando cabe ao analista fazer contato com o que está inscrito no inconsciente do sujeito que foi vítima dos traumas precoces, contra os quais precisou acionar maciçamente mecanismos de defesa muito mais primitivos e radicais. Trata-se nestas circunstâncias de acessar e responder empaticamente ao sofrimento do paciente traumatizado, o que requer tato e elasticidade. É aí realmente que a noção de tato, a elasticidade da técnica e toda a problemática da empatia vêm a ganhar uma centralidade que não tinha ainda sido ocupada na escuta analítica tal como concebida por Freud, embora, evidentemente, ele não as descartasse. Nestes rincões, bem ao contrário, a própria ideia mais convencional da atenção flutuante esbarra em limites insuperáveis e exige ser repensada.

Na verdade, embora sobre a metapsicologia da associação livre e da atenção flutuante sejam ditas coisas bem interessantes em termos teóricos e históricos, principalmente no que concerne à relação entre o hipnotismo, o sonho e o estado de mente da dupla analítica, o grande tema deste livro são as posições do analista na clínica do desejo, na clínica do trauma e, finalmente, e superando uma mera cisão, nas diversas clínicas de toda e qualquer psicanálise, o que é tratado em seu magnífico capítulo 6. Não só estão no centro das preocupações de Sergio Zlotnic as posições do analista e suas funções mais diretamente associadas aos Freuds, pois são muitos, mas associadas a toda produção da linhagem ferencziana tão decisiva para as psicanálises atuais. A correlação entre formas de adoecimento e práticas de cura?- com metas e procedimentos diversos, dependentes de diferentes atitudes e posicionamentos do analista?- é a principal problemática tratada neste livro, e isso não se explicita nem no título nem, muito menos, no subtítulo.

Se com o título acabamos nos reconciliando?- apesar de ele nos haver desorientado e mesmo aborrecido?- com o subtítulo decididamente não simpatizamos, porque ele desperdiça o aspecto central desta pesquisa complexa, tão oportuna e tão bem conduzida por Zlotnic. É como se o autor resolvesse apresentar uma bela joia em um péssimo estojo. Torcemos para que tamanha bizarrice não prejudique muito a circulação de um livro tão bom e que resultou de uma pesquisa tão laboriosa e bem-sucedida.
Diga-se de passagem, Sergio Zlotnic revela um grande domínio metodológico na sua investigação e tem disso plena consciência, comunicando muito bem a marcha de seu pensamento. Neste livro, os resultados instigantes da investigação são tão importantes quanto os percursos?- que são muitos?- da própria pesquisa, recheada também por pequenas vinhetas clínicas sempre saborosas e, de alguma forma, nem sempre óbvias, pertinentes e sugestivas.

Se título e subtítulo deixam a desejar, o mesmo não acontece nas ‘apresentações' do livro, antes mesmo de iniciarmos a leitura dos seus seis capítulos. Estas apresentações são uma proeza de concisão e comunicação. Ao lê-las fui sublinhando muitos e grandes trechos para uso nesta resenha. Desisti, pois acabaria transcrevendo as apresentações inteiras ao invés de escrever uma resenha do livro. Em suas três partes (intituladas ‘Preliminares e Interrogações', ‘Apresentação' e ‘Introdução'), esta ‘resenha avant la lettre' nos traz uma visão panorâmica do projeto como um todo e de cada uma de suas duas partes e seis capítulos, ainda nos antecipando às duas pequenas seções finais que fecham lindamente o árduo percurso. Percurso árduo, mas atravessado de prazeres: o das descobertas, o das engenhosas elaborações e o da comunicação feliz.

Nas poucas páginas das apresentações ficamos com uma nítida noção do alcance desta pesquisa que transita por Freud, pelos avessos freudianos de Freud, pelos precursores freudianos de Freud, pelos vários Freuds da psicanálise, e ainda pelo Freud que já se projeta para além de Freud, transbordando dos limites de Freud. Não só neste momento e neste aspecto, porém, a vizinhança de Ferenczi, seus pacientes e seus achados teóricos, invenções e propostas terapêuticas está sempre operando, como avesso, precursor, borda e transborda de Freud.

Foi a partir da releitura destas apresentações que me convenci, um pouco a contragosto , de que estava assistindo a um broto de excelente qualidade da Escola Húngara de Higienópolis, o que tornava o título Psicanálise freudiana ainda mais insensato: por que não, ao menos, Psicanálise freudo-Ferencziana?

A clínica do desejo e a clínica do trauma não só são apresentadas e discutidas em suas dimensões meta e psicopatológicas?- vide a consideração dos ‘pacientes da falha básica', nos termos de Michael Balint?- como nas suas implicações ‘técnicas' e éticas. E o mais importante, o fosso entre estas duas modalidades de trabalho psicanalítico tanto é meticulosa e profundamente elaborado, quanto é transposto no já mencionado capítulo 6, O caminho do Salmão, do qual emerge uma concepção unificada e complexa do grande trabalho a que toda a psicanálise (freudiana, diga-se de passagem) se dedica: o trabalho da simbolização.

Uma parte deste trabalho implica o que um autor francês atual?- René Roussillon?- chama de simbolização primária; a outra parte, com que estamos muito mais acostumados, seria a simbolização secundária. Não tenho dúvidas de que a diferença entre a clínica do trauma e a do desejo, nos termos de Zlotnic, aproxima-se justamente a esta distinção proposta pelo analista lionês, sem com ela coincidir.

A clínica do trauma diz respeito às cisões e recusas, a do desejo diz respeito às fantasias submetidas ao recalque. Para Zlotnic, há que dar palavras ao corpo (língua ao paladar, por exemplo) e às suas experiências cindidas e não subjetivadas, e dar palavras às representações recalcadas. Nos termos de Roussillon, a clínica do trauma e das cisões requer simbolização primária?- em que as brincadeiras e os jogos são essenciais; já a clínica do desejo requer a simbolização secundária; nela, o paradigma é o sonho e a interpretação dos sonhos o que predomina. Mas todas as clínicas da psicanálise enfatizam processos de simbolização, uma "busca por palavras gordas e úmidas" (Zlotnic), palavras que dão passagem do corpo à psique, da psique aos afetos.

Em acréscimo, para Zlotnic, todos os processos psicanalíticos em qualquer circunstância psicopatológica e clínica incluem fantasias e recalques, mas também traumas, cisões e mortes. Um analista que não tenha a sensibilidade e as habilidades para ambas as clínicas?- a do desejo e a do trauma?- estará funcionando como que mutilado.

Para quem pretende escapar a estas mutilações e desenvolver tais sensibilidades e habilidades, o livro de Sergio Zlotnic é de extrema valia. Recomendo!

topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados