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Resumo
O artigo retoma, numa perspectiva histórica, os aportes dos Lefort à psicanálise lacaniana com crianças: a equiparação de crianças e adultos, um mínimo de escuta aos pais e estruturas clínicas decididas precocemente. Considera-se, no entanto, que o trabalho com crianças com dificuldades no laço social requer a inclusão dos pais no tratamento, uma aposta na estruturação psíquica e uma posição mais ativa e falante do analista.


Palavras-chave
Rosine e Robert Lefort; psicanálise com crianças; história da psicanálise; autismo; pais; intervenção clínica.


Autor(es)
Adela Stoppel de Gueller Gueller
é psicanalista, mestre e doutora em psicologia clínica PUC-SP, pós-doutora em psicanálise pela Uerj, professora do curso de especialização em teoria psicanalítica da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP, coordenadora do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

[1] B. R. C. Neves; A. M. R. Vorcaro, "A intervenção do psicanalista na clínica com bebês: Rosine Lefort e o caso Nádia", p. 381.

 

[2] J-A. Miller, "Uma homenagem a Rosine e Robert Lefort".

 

[3] R. Lefort; R. Lefort, La distinction de l'autisme, p. 182.

 

[4] E. Laurent, "Uma psicanálise orientada para o real", p. 7, grifo nosso.

 

[5] E. Porge, Transmitir La clínica psicoanalítica, p. 44.

 

[6] M. C. Tenório, "Entrevista con Robert y Rosine Lefort, p. 186, tradução nossa.

 

[7] R. Lefort; R. Lefort, Diálogos sobre la clínica de la infancia, p. 80-81.

 

[8] M. C. Tenório, op. cit., tradução nossa, grifos do original.

 

[9] M. C. Tenório, op. cit., tradução nossa.

 

[10] M. C. Tenório, op. cit., p. 191, tradução nossa, grifos nossos.

 

[11] V. Coccoz, "Campo freudiano en España en los ochenta: en memoria de Rosine y Robert Lefort".

 

[12] M. C. Tenório, op. cit., p. 184, tradução nossa.

 

[13] D. Burlingham, "El análisis infantil y la madre".



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Abstract
This papers reviews, in a historical perspective, the contributions of Rosine and Robert Lefort to Lacanian Psychoanalysis. They consist in three points: equal treatment for children and adults, very little contact with parents, and clinical structures determined quite early in life. However, the author feels that the work with children suffering from difficulties in social relationships requires inclusion of the parents in the treatment, a bet in the possibility of a better psychical structuration, and a more active attitude on the side of the analyst


Keywords
Rosine and Robert Lefort; Psychoanalysis with children; history of Psychoanalysis; autism; parents; clinical intervention.

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 TEXTO

Do Nascimento aos obituários: o legado de Rosine e Robert Lefort

From Birth to obituaries: the legacy of Rosine and Robert Lefort
Adela Stoppel de Gueller Gueller

Qual é o legado do casal Lefort para a psicanálise com crianças? Foi essa a pergunta que norteou esta pesquisa, que se iniciou pela leitura dos obituários que fui encontrando na internet. Interessava-me ver nesses textos o que se destacava como recorte de seu legado simbólico, provavelmente para tentar reconhecer os traços que marcaram minha formação como analista. Eles me foram apresentados há 30 anos por outro casal, Marisa e Ricardo Rodulfo, quando eu, ainda estudante de psicologia na faculdade de Buenos Aires, cursava Psicanálise com crianças.

Rosine e Robert trabalharam juntos e morreram em 2007, com apenas 12 dias de diferença. Acompanharam Lacan desde o Seminário I até o fim de sua vida, tendo sido seus analisantes e alunos. Durante todo esse tempo, também lecionaram na seção clínica do Departamento de Psicanálise na Universidade de Paris viii, criada por Serge Laclaire em 1969 e dirigida por Lacan em 1974. Tiveram uma importante participação institucional e política desde a fundação do Cereda (Centro de Estudos e Pesquisas sobre a Criança no Discurso Analítico, ou Centre d'Étude et de Recherche sur l'Enfant dans le Discours Analytique), formado em 1983 a partir de um cartel integrado também por Jacques-Alain Miller, Judith Miller e Éric Laurent.

O objetivo do Cereda era convocar permanentemente seminários, congressos e encontros promovendo publicações de psicanálise com crianças. Em 1992, eles fundaram o nrc (Nouveau Réseau Cereda), com os vetores francófono, hispanófono e americano, ampliando o campo de abrangência da instituição e de transmissão das ideias de Lacan. Essa longa trajetória de ensino e liderança institucional coloca o casal Lefort entre os fundadores da psicanálise de orientação lacaniana com crianças, tendo marcado significativamente as gerações que o sucederam até os dias atuais. Deram depoimentos em muitos lugares e insistiram em alguns pontos que destaco aqui:

 

  • Sempre partindo dos casos Nádia e Marie-Françoise, que compõem o livro O nascimento do Outro, assim como também do caso Robert, o Menino do Lobo, sustentaram que o modo como transmitiam a psicanálise partia da experiência clínica.
  • Esses casos são trabalhados sempre em oposição, para sustentar a diferença entre as estruturas clínicas.
  • No início, eles surgiram com um discurso inovador que se opunha ao discurso médico pedagógico imperante. Depois da morte de Lacan, e ainda mais depois da formação da Escola Mundial de Psicanálise (amp), foram representantes do já instituído e porta-vozes importantes do dogma lacaniano.
  • Sustentaram desde o início que "a criança é um sujeito de pleno direito", o que significava postular que não havia diferenças substantivas na análise entre o adulto e a criança.

 

Desse primeiro momento, vale destacar a participação de Robert Lefort, que, junto com Maud Mannoni, fundou Bonneuil, inspirados no movimento antipsiquiátrico iniciado por Laing e Cooper. A Escola Experimental de Bonneuil sur Marne albergava crianças autistas, psicóticas e neuróticas graves. Instituiu-se como um lugar alternativo aos centros terapêuticos tradicionais franceses, excessiva e inutilmente segregatórios e estigmatizantes. O artigo de Robert Lefort intitulado "Questões políticas" (1976) fala do engajamento de Bonneuil nesse movimento. De Rosine, destacamos o trabalho em Parent de Rosan, um abrigo da assistência pública a crianças entre 1 e 4 anos de idade em situação de grave desamparo, dirigido por Jenny Aubri, onde ela começou a atender Nádia, Robert e Marie-Françoise, como parte de uma pesquisa internacional sobre as condições de hospitalização de crianças pequenas que ocorreu de 1948 a 1953 (hospitalismo). A investigação teve subsídio do Instituto Nacional de Higiene, do Centro Internacional da Infância Prof. Robert Debré, e foi feita em conjunto com a equipe inglesa da Tavistock Clinic, então dirigida pelo Prof. John Bowlby. O quadro de hospitalismo tinha sido descrito por René Spitz, em 1945, para situar as crianças que eram cuidadas no registro da necessidade e sofriam por causa do anonimato desse tipo de tratamento. Contextualizar esses atendimentos permite compreender por que, para Rosine, foi fundamental dar um acolhimento diferente do anonimato e da hostilidade às crianças, ou seja, que o psicanalista ocupasse um lugar diferente do da intervenção anônima, intrusiva e imperativa das enfermeiras. Daí que ela sustentasse a importância de que o analista não tocasse o corpo da criança nem a alimentasse.

Quando começou a atender Nádia, Robert e Marie-Francoise, Rosine tinha ainda poucos recursos teóricos, o que nos leva a perguntar: em virtude de que os casos caminharam para finais satisfatórios? Como as crianças conseguiram sair da posição patológica em que estavam? É possível pensar no que se passou como uma psicanálise?[1]

Miller[2] lembra que, certa vez, quando viu Rosine se reencontrando com Lacan, ele lhe disse que naquela época [dos atendimentos], "ela não podia se enganar", validando assim o trabalho realizado quando ainda estava no início de sua formação. A fala do mestre - que provavelmente lhe apontou que ela se autorizasse como analista - parece tê-la impedido de ver em que ela pode ter-se enganado.

A escrita de O nascimento do Outro registra dois tempos e duas grafias: uma ao modo de um diário dos atendimentos, e a outra é a teorização que o casal fez 25 anos depois. A riqueza de detalhes e a sinceridade do primeiro tempo se contrapõem à demonstração teórica feita posteriormente. Esse intervalo de tempo coincide exatamente com todo o ensino de Lacan. Chama a atenção que esse livro veja a luz às vésperas da morte do mestre ocorrida em 1981. Por isso podemo-nos perguntar: tratava-se de pôr a prova a psicanálise ou de referendá-la?

Desde O nascimento do Outro (1980) até A distinção do autismo (2003), Rosine e Robert centraram sua obra no tratamento de sujeitos para os quais "não há Outro", sendo seus paradigmas Nádia, Marie-Françoise e Robert. Nádia foi quem fez de Rosine uma analista e serviu para pensar que são as crianças que ensinam tudo ao analista (pedagogia invertida). Robert - que, segundo Lacan, era um desses "casos graves de difícil diagnóstico e ambiguidade nosográfica" - foi para os Lefort o caso exemplar para conceituar a psicose. E Marie-Françoise serviu para pensar o autismo. Em 1980, em O nascimento do Outro, os Lefort o concebiam como uma a-estrutura. Em 1992, começaram a propor separá-lo das demais psicoses e, em 2003, em A distinção do autismo, postularam a existência de uma quarta estrutura, além da neurose, da psicose e da perversão - a estrutura autista, o que mostra a importância que tinha no pensamento deles o diagnóstico diferencial, mesmo em casos de crianças muito novas.

Vale a pena traçar também a mudança que se operou no pensamento dos Lefort nesse percurso, que parece acompanhar o pensamento de Lacan. A ideia fundamental de O nascimento do Outro é mostrar como a criança entra na linguagem, o que implica produzir para o pequeno o nascimento do Outro. Isso supõe um agente materno que produza significações e objetos capazes de acalmar o bebê ao mesmo tempo que constrói bordas para seu corpo fazendo nele inscrições. Desse modo, o adulto insere a criança na linguagem, possibilitando-lhe que se faça representar pelos significantes que lhe são oferecidos. Vinte anos mais tarde, o mesmo "não há Outro" é lido pelos Lefort como um excesso, e não como uma falta. Ou seja, em 1980, eles entendem que, no início, faltava um Outro para esses sujeitos, sendo fundamental pensar a entrada no simbólico. Em 2003, já centrados na chamada clínica do real do último Lacan, destacam a presença de um outro excessivo, sem furo e ameaçador que descrevem do seguinte modo:

As consequências são centrais no autismo: nem especularidade, nem divisão do sujeito, mas um duplo com que o autista depara em cada outro, seu semelhante, cujo perigo mais agudo é a iminência de seu gozo e a necessidade de matar nele essa parte que a linguagem não eliminou para que se funde uma relação com o Outro como aterro limpo de gozo [...]. Essa necessidade é a fonte pulsional do autista, ou seja, da destruição/autodestruição como satisfação/gozo da única pulsão, a pulsão de morte[3].

Ou seja, nesse último período, trata-se muito mais de uma clínica do esvaziamento, da limpeza, da extração de gozo, da purificação, do que da edificação de um sujeito com tudo o que de sujeira e sexualidade isso comporta. Trata-se mais de esvaziar e higienizar do que de construir pondo as mãos na massa.

Eric Laurent pôde afirmar, desse último período: "Era necessário se desfazer dos prestígios idólatras do corpo e suas imagens e fazer uma verdadeira ascese da orientação ao real"[4]. Por isso não surpreende a utilização do termo ascese como renúncia ao prazer para alcançar uma libertação interior com o cunho religioso que a ela está associado.

Insistimos nessa importante virada, porque não se trata aí de uma fina questão teórica: ela introduz uma mudança significativa no modo de intervir como analistas. Em O nascimento do Outro, eles pensam que o sujeito pouco a pouco vai ampliando sua relação com o mundo e os objetos, tendo a linguagem um papel fundamental na humanização, que passa necessariamente pelo polimorfismo perverso e, nos últimos anos de ensino, centram a cura na direção da perda de gozo, tendo a linguagem uma função de purificação.

É a criança um analisante no sentido pleno?

Os psicanalistas que trabalham com crianças carregam desde as origens questionamentos sobre a legitimidade da psicanálise nessa fase da vida. Freud, de início, duvidou. Achava que haveria que emprestar palavras demais e que dificilmente a criança se confiaria a alguém que não fossem seus pais - depositários do saber e da autoridade. A criança, perversa polimorfa, era para ele um ser em formação que precisava passar por um processo educativo que a ajudasse a domar as pulsões para poder viver em sociedade, tornando-se só então um sujeito em sentido pleno.

No texto inicial dos Três ensaios, Freud colocou lado a lado a infância e a perversão, e, daí em diante, o fantasma temido foi que, se passasse por uma análise, a criança se pudesse tornar um sujeito perverso. Em 1922, Hans tranquilizou Freud quando disse não se lembrar de quase nada do tratamento por que passara quando tinha 5 anos. Sua amnésia garantia que se preservara o recalque constitutivo. Entusiasmado, Freud estimulou sua filha - recentemente analisada por ele - a enveredar por esse terreno.

Muitos antes dela já se haviam aventurado a psicanalisar crianças: Carl Jung, Mosche Wulff, Karl Abraham, Sándor Ferenczi, Eugene Sokolnicka e Hermine von Hug-Hellmuth, entre outros. Esses ensaios visavam fundamentalmente dar força às teses de 1905 sobre a sexualidade perversa polimorfa, que tinham suscitado enorme escândalo no meio científico, mas não afastavam os temores de Freud sobre o efeito de longo prazo que teria a análise na constituição psíquica. Talvez por isso nenhum desses analistas tenha ousado questionar radicalmente a aliança, proposta desde o início, entre psicanálise e educação.

Em 1933, na Conferência xxxiv, seis anos depois do Colóquio de 1927, que marcou o nascimento oficial da psicanálise com crianças, Freud admitiu a possibilidade de analisá-las, mas disse que era preciso modificar a técnica, porque a criança ainda não tinha supereu e, por sua posição como falante, tolerava mal a associação livre. Disse ainda que a transferência teria outro papel, já que os pais continuavam presentes; logo, se as resistências estavam nos pais, era preciso trabalhar com eles. Freud também afirmou que via um futuro promissor para o trabalho com crianças, mas pensava que o melhor que a psicanálise tinha a oferecer naquele momento era analisar os professores. Reaparecia, assim, o lugar do educador. Vale lembrar que Freud não estabeleceu uma distinção entre a finalidade terapêutica e a finalidade didática e científica da psicanálise. Durante a análise, ele fazia seus pacientes participarem da edificação da nova ciência. Assim, para Freud, toda análise é por princípio uma análise didática, via régia para que alguém se torne analista[5].

A primeira analista a defender que a psicanálise de crianças podia ser pura, ou seja, não ter finalidade terapêutica nem sofrer contaminações pedagógicas, foi Melanie Klein, no Colóquio de 1927, e ela fez essa defesa se contrapondo a Anna Freud, mas, por tabela, ao próprio Freud, que tomava o lado da filha. Sua empreitada não era fácil, pois disputava terreno com a filha do fundador e só tinha o apoio de três importantes discípulos: Sándor Ferenczi, Karl Abraham - e Ernest Jones. Melanie Klein nunca teve o apoio de Freud e, na disputa com Anna, levou a International Psychoanalytical Association (ipa) ao ponto de se dividir.

Vale a pena lembrar também que o nascimento da psicanálise com crianças é contemporâneo à institucionalização da própria psicanálise, isto é, à formalização das regras de formação dos analistas e que, por decisão da comissão internacional de ensino em 1927, os analistas de crianças foram os únicos eximidos de ter uma formação médica, o que permitiu que muitos dos que enveredaram por essa prática tivessem como formação inicial a pedagogia.

Como situar os Lefort nessa série? De que modo eles se situam na história da psicanálise com crianças?

Muito já se disse sobre as diferenças e as rupturas institucionais e teóricas que o pensamento de Lacan introduziu na psicanálise, e por isso me pareceu interessante assinalar algumas semelhanças, particularmente entre o pensamento dos Lefort e o de Melanie Klein, posto que os três podem ser considerados fundadores de escolas de psicanálise com crianças - esta no seio da IPA e aqueles no campo lacaniano. Ambos sustentaram que a criança era um analisante de pleno direito. Para tanto, criticaram duramente Anna Freud, sobretudo por sua concepção desenvolvimentista da criança. Seguindo uma estratégia semelhante à de Melanie Klein no Colóquio de 1927, os Lefort afirmaram que Anna Freud "não trabalhava" com crianças porque só as admitia em análise a partir dos 7 anos, o que a rigor valia para Hermine Hug-Hellmuth, mas não para Anna Freud. Curiosamente, no texto do Colóquio, Melanie Klein procede do mesmo modo, atribuindo a Anna Freud afirmações que eram de Hermine, a primeira psicanalista de crianças, cujo nome e legado foram completamente apagados da história da psicanálise.

Assim, os Lefort disseram que Melanie Klein, ao contrário, teve intuições geniais em relação à criança pequena, de modo que, na disputa fundante da psicanálise com crianças, travada desde 1927 entre Anna Freud e Melanie Klein, os Lefort se alinharam claramente a esta última. Temos aí um esboço do que se vai configurar como uma oposição que se tornou clássica no debate sobre a infância, sendo o conceito de desenvolvimento um divisor de águas. Assim, o lema "a criança é um sujeito de pleno direito" sustenta um conceito de criança que prescinda da ideia de desenvolvimento. Por isso podemos afirmar que tanto os Lefort, no campo freudiano, quanto Melanie Klein, no seio da ipa, reivindicam para a criança um lugar purista, que se afasta do modelo biológico darwinista.

Tanto Klein quanto os Lefort defenderam que a psicanálise é uma, não havendo distinção entre crianças e adultos. Cabe no entanto se perguntar quem é o Outro a quem endereçam suas argumentações? Frente a quem é necessário defender esse purismo? Para sustentar esse postulado, era preciso um sujeito do inconsciente constituído desde muito cedo. Melanie Klein propôs um Édipo precocíssimo e Robert Lefort, em entrevista concedida a María Cristina Tenorio, da Universidad del Valle, diz: "Adulto e criança são a mesma coisa. O sujeito é o sujeito do inconsciente. O inconsciente é atemporal. O adulto precisa encontrar a criança em sua análise"[6].

O sujeito do inconsciente é atemporal, desde que esteja constituído, ou seja, a partir do momento em que aquele que fala pode também se escutar. É necessário, então, pensar na particularidade das crianças que não falam e/ou se excluem da relação com os outros. Por isso, a afirmação de Robert Lefort tem consequências teóricas e clínicas importantes. No primeiro caso, trata-se da superposição entre infância e infantil: "O que se encontra numa análise de adulto é o mesmo que encontramos na análise de uma criança, em estado mais puro"[7].

Quanto à prática clínica, esse postulado implicou falar em estruturas decididas na infância e excluir os pais do tratamento.

Assim, na mesma entrevista, na Universidad de Valle, Rosine Lefort afirmou:

Com 3 anos, a estrutura de base está acabada. O que se passa com o Outro através dos objetos primordiais já está em seu lugar. Mas a relação com o Outro e com os objetos está mal amarrada, sem simbolizar. Então, na análise, se faz isso e depois se devolvem as crianças ao mesmo lugar. É por isso que a psicose da criança e a psicose do adulto são a mesma coisa. E a relação de Robert com o Lobo e a de Schreber poder-se-ia crer que é a mesma história[8].

Ainda sobre o lugar dos pais, Robert Lefort diz: "se a criança tem algo a dizer, o dirá. Não precisa que seus pais estejam em análise: basta um analista que saiba escutar, um analista que não o remeta sempre a seus pais, a sua mãe, a seu pai... Isso é familiarismo"[9]. E Rosine complementa:

[...] ao entrevistar os pais uma única vez, ou duas, só interessa escutar o que propuseram ao filho com seu inconsciente. Depois, o que a criança faz com isso depende de sua própria organização [...]. Quando uma criança inicia uma análise, os pais terão que encontrar um novo lugar como sujeitos. [...] A análise do analista é importante para que não pensemos que a criança depende do adulto[10].

Não surpreende, pois, que, após reconstruir minuciosamente os dados relevantes da história de Robert - uma mãe paranoica que tentou enforcar o filho, que tinha que ser lembrada pelos médicos de alimentar e higienizar o menino, que foi internado aos 20 meses por desnutrição, e que o abandonou quando ele tinha 3 anos -, Rosine diga que, apesar disso, a relação com ela não foi completamente vazia, pois ele fez uma otite e uma mastoidite quando foi hospitalizado, o que as crianças confirmadamente autistas e psicóticas não fazem, e que o verdadeiro traumatismo de Robert foi a miringotomia [antrotomie] que sofreu e que ela propõe pensar como a origem de sua psicose. Ou seja, o que está na origem da psicose de Robert não é uma falha grave do laço entre a mãe e o filho, mas um acontecimento traumático.

Vale lembrar que, na época, as cirurgias eram feitas sem anestesia, com a criança imobilizada e com uma mamadeira com água e açúcar na boca para impedi-las de gritar. Segundo Rosine, essa história e a identificação dos traumatismos foram reconstituídos trabalhosamente, "graças ao material aportado nas sessões". Em outro dos escritos póstumos sobre os Lefort, há uma afirmação que vai na mesma direção: "Rosine não pressupõe nada sobre o alcance dos acontecimentos, não se deixa sugestionar pelo imaginário, mas extrai seu saber do trabalho nas sessões com a criança"[11]. Que lugar fica, então, para a história familiar? Segundo os Lefort, as abordagens familiar, anamnésica e social pertencem ao campo da psicologia. Os pais e seu sofrimento devem ser postos a distância, para que a criança possa encontrar seu próprio discurso.

O lugar dos pais sempre foi um complicador da clínica com crianças pouco trabalhado até hoje. Contudo, se pensarmos que a estrutura se organiza como um sistema, que os significantes circulam, que o sujeito é resposta ao Outro, por que não escutar os pais? Por que não lhes possibilitar formular o que os faz sofrer? Trata-se de uma questão de manejo e de tempo. Às vezes, a corda se parte do lado da criança, mas os pais precisam de um tempo para compreender. Às vezes, trata-se da urgência, porque com a criança não há tempo a perder. Contudo, se os pais não acompanham passo a passo os avanços do filho, nos defrontamos ou com resistências que produzem uma interrupção brusca, ou com um muro que a criança sozinha não consegue franquear, sendo reenviada ao mesmo lugar de origem. O delicado trabalho com os pais merece ser levado a sério para poder avançar no campo da psicanálise com crianças. Afastá-los é como jogar a criança junto com a água do banho de linguagem que a envolveu.

Rosine, no entanto, se referindo à clínica com crianças muito pequenas como Nádia, que tinha 13 meses e foi sua primeira paciente, disse: "Maternagem [...] isso nunca! Se nos deixamos levar pela maternagem [...] isso não seria análise em absoluto. Lacan o disse claramente: a primeira dimensão do significante é o corpo próprio. Não se pode tocar o corpo de nenhuma maneira"[12].

Sabemos hoje que a questão do lugar do analista e sua função volta a se colocar à medida que diminui a idade do paciente e que as respostas dos pequenos revelam falhas importantes no estabelecimento do laço com os outros. Nessa clínica, também denominada clínica do laço, a função do analista é armar, constituir ou restabelecer junto aos cuidadores e ao bebê circuitos em que a pulsão se veicule como demanda endereçada ao outro, abrindo as portas para a entrada no universo desejante. Para isso, é fundamental que o analista ofereça sua voz, seu olhar e suas palavras. E assim, os analistas que embarcam nessa aventura clínica se permitem caminhar numa direção diferente da proposta pelos Lefort.

O legado

Se a equiparação do adulto e da criança possibilitou o protagonismo da realidade psíquica sobre a "realidade material", ou seja, que a história singular construída nas sessões passasse a ocupar o centro da cena, numa operação semelhante à que fez Freud com a psicanálise a partir da "descoberta" do proton pseudos das histéricas, e ainda que se privilegiasse na escuta o que a criança tinha a dizer, elevando-a ao estatuto de um analisante de pleno direito, também teve como consequência que os pais ficassem fora do tratamento porque contaminavam o trabalho analítico com a criança induzindo os analistas a um psicologismo.

Foi uma ousadia da clínica dos Lefort trabalhar com crianças que não tinham pais ou que haviam sido rejeitadas por eles e dar-lhes estatuto e dignidade de sujeito, tirando-as do anonimato. Conhecemos as dificuldades dessa clínica, que se apresentam quando trabalhamos com crianças abrigadas. É uma clínica em que geralmente não há pais e que nos mostra e nos surpreende pelos recursos que as crianças encontram para sobreviver e se estruturar psiquicamente. Minha pergunta é: será que temos que fazer de todas as crianças órfãs? Será que temos que nos desvencilhar dos pais para que a criança possa ser um analisante de pleno direito?

Historicamente, os pais foram incluídos na análise das crianças para trabalhar as resistências que podiam surgir de sua parte[13]. Esse aspecto continua presente, mas não é o único motivo pelo qual incluímos atualmente os pais num trabalho. Também lhes oferecemos uma escuta para que se possam interrogar sobre sua posição e sobre as demandas que endereçam ao filho, permitindo-lhes recolher a mensagem enigmática que a criança lhes envia como resposta. Isso enriquece a análise da criança aportando os significantes que circulam no discurso familiar, e também permite situar o Outro social e o modo como incidem suas demandas nessa família. Outras intervenções, como possibilitar uma separação que não ocorre entre a criança e seus pais, ou propiciar, via identificação imaginária, o enlaçamento dos pais aos filhos que se excluíram do laço com os outros são possíveis se pudermos trabalhar junto com os pais.

Assim como Melanie Klein, os Lefort não parecem se ter ocupado da demanda de análise. Para o casal, quando a criança se encontra com um analista, ela está começando uma análise. Rosine diz que a criança sabe que está diante de um Outro barrado, para quem as coisas caíram de alguma maneira. Assim, o analista fica configurado como alguém que escuta e não demanda nada para o gozo nem para o saber do sujeito. Temos, até aí, a disposição do analista de escutar, mas não falta ainda considerar a decisão do analisante para se dispor a trabalhar sobre seu sofrimento?

Considero que para que a criança possa ser um analisante de pleno direito devemos oferecer um tempo de trabalho para que ela e seus pais possam formular uma demanda de tratamento. Isso tem uma particularidade na clínica das crianças muito pequenas e daquelas ditas autistas que se caracteriza pela falta do estabelecimento da demanda. Como é o adulto quem insere a criança na linguagem, nesses casos, em particular, é necessário que o analista nomeie os atos da criança. É por esse ato do analista que se deixa afetar por esse pequeno ser que um sujeito pode se constituir como efeito de significações por isso, nessa clínica a posição do analista é bem mais ativa e falante que a proposta pelos Lefort do começo ao fim de seu trabalho.

Os casos bem-sucedidos de autismo, assim como os casos de crianças em estado de abandono, como Nádia, mostram a importância de o analista ter um lugar bem mais participativo e convocatório do que aquele que propunham os Lefort. É porque nessa clínica, assim como no trabalho com os pequenos, a estrutura ainda não está decidida, e se requer do analista uma aposta no vir a ser da criança. Isso não necessariamente significa interpretar ao modo kleiniano, mas sim ir em busca de inscrições significantes, procurar janelas pulsionais, introduzir jogos de modulação com a voz, propor pequenas cenas lúdicas, em outros termos, lançar cordas para enlaçar a pulsão à representação, cuidando para não ser invasivo, mas tampouco ausente.


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