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Resumo
O texto apresenta brevemente alguns princípios da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde (PNH) ou, como é mais conhecida, HumanizaSUS, colocando em debate o termo humanização, sua herança moderna ligada ao humanismo, problematizando o que se instituiu como imperativos morais sob a égide do “bom humano” nas práticas de saúde nos anos 2000. É nesse contexto que formas de escuta e de intervenção no SUS poderão ser pensadas teórica e tecnologicamente, tendo como fim práticas clínico-institucionais pautadas por uma ética da desestabilização das formas instituídas e da aposta na invenção de novos modos de andar a vida individual e coletiva em contextos de saúde.


Palavras-chave
humanização; humanismo; ciência; indeterminação.


Autor(es)
Alessandra Affortunati Martins  Parente
é psicanalista, psicóloga (PUCSP), bacharel em Filosofia (FFLCHUSP), mestre em Psicologia Clínica e doutoranda em Psicologia Social.

Cleusa Pavan
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Representa o grupo de trabalho de Clínica na comissão Coordenadora Geral do Departamento.


Notas
1. G. W. S. Campos, "Um método para análise e co-gestão de coletivos".
2. R. Benevides; E. Passos, "Humanização na saúde: um novo modismo?".
3. Cf. http://pensesus.fiocruz.br/humanizacao.
4. Contrariamente às redes frias do capitalismo consumista, as redes quentes, no campo da saúde, estão baseadas em articulações efetivas de serviços e de trabalhadores operando a integralidade do cuidado no SUS.
5. R. Benevides; E. Passos, op. cit.
6. R. Pacheco Filho, "Humanização no Sistema Único de Saúde: o que a psicanálise tem a dizer sobre isso".
7. R. Pacheco Filho, op. cit., p. 82.
8. R. Pacheco Filho, op. cit.
9. R. Pacheco Filho, op. cit., p. 84.
10. R. Pacheco Filho, op. cit., p. 84.
11. V. Safatle, Grande Hotel Abismo.
12. T. Adorno, Dialética Negativa.
13. S. Freud, O homem Moisés e a religião monoteísta.
14. V. Safatle, op. cit.
15. Wittgenstein apud V. Safatle, op. cit., p. 1.
16. V. Safatle, op. cit.
17. V. Safatle, op. cit., p. 1
18. J. Lacan, "A ciência e a verdade".
19. V. Safatle, Grande Hotel Abismo.
20. V. Safatle, O circuito dos afetos.
21. V. Safatle, "Por um conceito antipredicativo de reconhecimento".
22. L. Elia, "O inconsciente público e coletivo e a estrutura da experiência psicanalítica".
23. L. Elia, op. cit., p. 2.
24. L. Elia, op. cit.
25. L. Elia, op. cit., p. 1.
26. R. Benevides; E. Passos, op. cit.
27. R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390.
28. R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390.
29. R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390-391.


Referências bibliográficas

Adorno T. (2009). Dialética Negativa. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar.

Benevides R.; Passos E. (2005). Humanização na saúde: um novo modismo? Revista Interface, v. 9, n. 17, mar./ago.

Campos G. W. S. (2000). Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec.

Elia L. (2010). O inconsciente público e coletivo e a estrutura da experiência psicanalítica. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2017.

Freud S. (1939/2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. Porto Alegre: L&PM.

Lacan J. (1966/1988). A ciência e a verdade. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

Pacheco Filho R. (2015). Humanização no Sistema Único de Saúde: o que a psicanálise tem a dizer sobre isso. Revista A Peste, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 81-94.

Safatle V. (2012). Grande Hotel Abismo. São Paulo: Martins Fontes

____. (2015). Por um conceito antipredicativo de reconhecimento. Revista Lua Nova, Sa?o Paulo, n. 94, p. 79-116.

____. (2015). O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify.





Abstract
The text introduces some of the principles of the National Humanization Policy on Attention and Gestion (PNH) in the Universal Health System (SUS), or as it is most commonly referred to, “HumanizaSUS”, with the aim of debating the concept of “humanization”. It also retraces its modern tradition linked to humanism, problematizing what has become the moral commandment of the "good human" in the health practices of the early 21st Century. In this context, the text tries, both in theoretical and technological terms, to reflect on the listening and intervention practices undergone within the SUS with the goal of building clinical and institutional practices based on the ethics of provoking instituted forms, and to bet on the invention of new ways of living individually and collectively in health contexts.


Keywords
“humanization”; humanism; science; indeterminacy.

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 TEXTO

HumanizaSUS e a escuta do indeterminado

HumanizaSUS and listening to the indeterminate
Alessandra Affortunati Martins  Parente
Cleusa Pavan

Abordar as diferentes interfaces entre Saúde Coletiva e psicanálise é trabalho extenso. A amplitude do tema exige, por isso, o desenho de um recorte. Dentro da Saúde Coletiva, trataremos aqui especificamente da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde (pnh), mais conhecida como HumanizaSUS. Trata-se de uma estratégia de interferência no sus rumo a mudanças nos modos de atenção e gestão da saúde, pautada pela inclusão de trabalhadores, usuários e gestores dos diversos serviços e âmbitos do sus em processos de análise e transformação de relações, saberes, poderes e práticas no campo da saúde. Inclusão de sujeitos e das perturbações daí decorrentes - analisadores -, mas também inclusão de movimentos sociais, intercessor fundamental na sustentação de uma dimensão pública das políticas públicas de saúde. HumanizaSUS, então, como uma aposta radical na problematização de práticas produtoras de cuidados, práticas (re)produtoras de instituições e forjadoras de modos de estar na vida - três finalidades do trabalho em saúde[1]. Uma aposta, enfim, alicerçada na ideia de que "sujeitos sociais, atores concretos e engajados em práticas locais, quando mobilizados, são capazes de, coletivamente, transformar realidades transformando-se a si próprios neste processo"[2]. Veremos aqui como questionamentos filosóficos e psicanalíticos do termo que designa tal política são interessantes para pensar como se dá a escuta e algumas intervenções dentro do sus a partir dos dispositivos propostos pela pnh.

 

Comecemos por um apanhado dos princípios orientadores da pnh. O documento[3] que a define declara: "A saúde é direito de todos e dever do Estado", lembrando que essa é uma conquista que está na Constituição de 1988, ano em que também foi votada a criação do Sistema Único de Saúde (sus), cujos princípios são a universalidade, a integralidade e a equidade da atenção em saúde. Está prevista nos planos de atendimento pelo sus uma saúde vista não apenas como ausência de doença, o que demandaria uma intervenção localizada e um restabelecimento das condições anteriores ao adoecimento, mas saúde concebida como dinâmica complexa, multideterminada, exigindo ampliação do espectro de abordagens, estratégias de prevenção, promoção, cuidado em rede articulada, rede de acompanhamento de percursos de uma vida que se quer digna de ser vivida. A pnh, em 2003, apontou, em consonância com muitos sanitaristas do país, que essa conquista, ou seja, um sistema único de saúde impresso no registro da Lei, pautando o que deve ser feito em termos de saúde, não se constituiu como garantia imediata de concretizações. Pelo contrário, vem exigindo luta, trabalho, reflexão, mudanças de perspectivas. Estão em disputa modelos de atenção, organização e gestão dos processos de cuidado e do sistema; estão em disputa interesses econômicos, políticos, enfim, os sentidos que se quer conferir a uma política de saúde num país marcado por uma das mais aberrantes concentrações de riquezas do mundo. E não é pouco recurso financeiro que o campo da saúde movimenta. Todo este cenário se compõe como desafio a ser enfrentado por todo cidadão que sonha com o direito universal à saúde de qualidade para todos. A pnh soma-se a tal anseio ofertando um arcabouço teórico tecnológico consistente de intervenção, um conjunto de diretrizes e dispositivos para interferir nos modos de fazer saúde e gestão do sus. Se o que deve ser feito estava e está escrito na Constituição de 1988, os modos de fazer precisavam e precisam de investimentos e mudanças. Esta foi a tarefa a que se propôs, e esteve realizando, a pnh nos anos de 2003 a 2015, depois do que perdeu sua institucionalidade para dentro do Ministério da Saúde.

 

A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde - HumanizaSUS constituiu-se, então, como uma das políticas do sus para intensificar a luta, priorizando o plano da micropolítica: atiçar forças locais e locorregionais para enfrentar a degradação da clínica, a gestão autoritária dos serviços, o modo burocrático de receber usuários, a fragmentação do cuidado, a desarticulação dos pontos da rede de serviços, a inexistência de compromisso com o percurso do usuário na rede, os processos burocráticos e hierarquizados de trabalho, a saúde dos trabalhadores, etc. Nesse contexto, humanização é compreendida não como programa pontual, mas como política pública transversal, que deve se fazer de maneira a mexer com toda uma rede de sustentação dos serviços de saúde, que valoriza principalmente a escuta dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores, principais responsáveis pela análise e invenção de meios para a transformação dos modos de cuidar e gerir saúde. Os valores norteadores de tal política são: a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes quentes[4] de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão. Tarefa ousada que convoca a todos que sonham e já vivem a realidade do SUS. Essa política, considerada como pactuação democrática e coletiva, é orientada fundamentalmente por seis diretrizes: Acolhimento, Clínica Ampliada, Cogestão, Redes, Saúde do Trabalhador e Direito dos Usuários. Diretrizes que só se efetivam quando a elas se associam dispositivos de intervenção - arranjos ou ferramentas concretas - sem os quais mudanças nas práticas de atenção e gestão do sus seriam impossíveis. O arcabouço teórico-tecnológico da PNH garante à política de humanização da saúde romper com preceitos morais impostos aos trabalhadores a partir de concepções idealizadoras do humano, o humano pensado pela vertente da bondade, da boa educação, da interação irmanada de boa-fé com as pessoas, da delicadeza no trato, enfim, pensado pela vertente do "bom homem". Desidealizando "o Homem", diz o documento da pnh, tratou-se sobretudo de "pensar o humano no plano comum da experiência de um homem qualquer" e de sustentar que mudanças nos modos de agir e cuidar em saúde não dependem de voluntarismos e não se sustentam a partir de preleções morais. Mudanças nos modos de agir e de cuidar só advêm da experimentação de dispositivos que fomentem a construção de outros modos de estar com os outros e consigo mesmo, outros modos de organizar processos e fazer gestão do trabalho[5].

Humanismo e psicanálise

É no mínimo curioso, e amplamente discutido em outros espaços, que uma das políticas públicas mais robustas no Brasil receba um nome tão controverso quanto Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde (pnh) ou HumanizaSUS, claramente remetendo à tradição humanista que está em amplo debate filosófico e psicanalítico nos dias atuais. No artigo "Humanização no Sistema Único de Saúde: o que a psicanálise tem a dizer sobre isso", Raul Pacheco Filho[6] coloca claramente algumas tensões presentes entre humanismo e psicanálise, das quais citaremos apenas uma. Diz o autor:

 

Pensar sobre o tema humanização no Sistema Único de Saúde (sus) remete-nos imediatamente a um passado histórico repleto de conflitos entre a psicanálise e as concepções humanistas. E basta iniciar este artigo para que inúmeras enunciações e acontecimentos, em contextos diversos, perfilem-se em minha memória, ilustrando essas divergências. Lembrei-me, por exemplo, de um artigo que analisa as relações entre a psicanálise e as instituições do sistema de saúde mental argentino, no qual o autor afirma enfaticamente: "ao lançar luz sobre a hipocrisia irredutível que subjaz aos alicerces da sociedade", Freud teria sabido fazer de toda sua obra um "protesto irremediável" contra os valores humanistas. Em consequência, "a psicanálise marca[ria], assim, o fim de toda filosofia humanista" (ibid). Daí sua indignação na pergunta: "como invocar a dignidade do sujeito, quando sabemos, por Freud, que "tanto os homens como os povos obedecem muito mais a suas paixões do que a seus interesses?"[7].

 

Apesar da tensão expressa nos termos acima, Pacheco Filho[8], porém, defende a ideia, com a qual estamos de acordo, de que a consolidação, no sus, da questão da humanização em saúde é tarefa a ser "desdobrada, aprofundada e matizada" pelos psicanalistas mais do que meramente exposta a "uma simples, imediata e radical oposição"[9]. Entretanto, não consideramos, como o autor, que uma coisa é falar em "humanização no sentido mais geral do termo ou, ainda, no de um humanismo filosófico, psicológico, ou (o que seria isso?) psicanalítico", sendo "outra, bem distinta" a de "abordar o assunto no sentido específico da práxis psicanalítica no território delimitado pelo campo da saúde pública no Brasil atual e no contexto do sus"[10]. Procuraremos mostrar que o debate filosófico e psicanalítico acerca do termo é fértil para definir certas diretrizes da escuta e de intervenções no SUS, sem que isso signifique um preciosismo terminológico vácuo e infrutífero.

 

Veremos, aliás, que, embora o nome pareça indicar uma continuidade de valores e preceitos humanistas da tradição, tal política é amplamente revolucionária e mais coerente com aquilo que tem sido discutido no interior da categoria de inumano - ligada sobretudo ao isso que nos determina. Nesse sentido, o processo de humanização seria antes um processo de escuta de uma linguagem e de formas inumanas para que dali advenha um novo homem. Com novo homem, vale lembrar, não se espera nenhuma figura extraordinária ou super-homem, mas justamente aquilo que o documento destaca: um homem qualquer capaz de retirar da figura do Homem qualquer espécie de idealização.

 

Cabe aqui uma digressão por questões aparentemente distantes dos meandros inerentes à prática psicanalítica e mesmo à metapsicologia, porém, necessárias ao nosso percurso. Embora esse debate possa dar a impressão de um circunlóquio extremamente abstrato e distante da realidade dura e, por vezes, deteriorada da saúde pública brasileira, veremos que o trabalho psicanalítico de escuta no interior da Política Nacional de Humanização opera como uma espécie de despertar dos cidadãos de seu "sono antropológico"[11]. Para isso, porém, será preciso adentrar em questões de cunho filosófico e psicanalítico. Antes de mais nada, seria interessante recuperar uma frase enigmática de Theodor Adorno[12], escrita no interior do tópico "Liberdade" em Dialética Negativa. Diz Adorno: "Em um Estado justo, tal como no teologumenon judaico, não haveria senão uma diferença muito pequena em relação ao que há hoje, mas não há como representar a mais mínima realidade tal como ela seria então". Um Estado justo é a imagem de uma organização humana em que os homens aparecem emancipados. Difícil acreditar que Adorno estivesse se referindo às orientações sionistas que fundaram o Estado de Israel. Por teologumenon judaico teríamos aqui, então, uma clara referência à imagem da libertação dos escravos judeus por meio das leis mosaicas (Estado justo) - um novo homem - o povo judeu - orientado por novas leis, os mandamentos. Em O homem Moisés e a religião monoteísta, a figura de Moisés, tal como desenhada por Freud[13], é personagem bíblica difusa, que, sendo estrangeira escreve as leis fundamentais de um outro povo. Dono da fala dirigida a Deus: "Perdão, meu senhor, eu não sou homem eloquente, nem de ontem nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado de boca e pesado de língua", a versão freudiana de Moisés prova que é justamente sua estranheza, sua condição de estrangeiro, que o torna apto a articular as palavras de um outro modo, até instituir uma nova ordem. Protagonista do Êxodo, ou seja, de um enredo sem território fixo, Moisés é sustentáculo do indeterminado.

 

Sigamos por essas referências de caráter abstrato, permitindo-nos ainda desvios por linhas aparentemente desconexas - tomaremos depois o desafio de costurá-las. A epígrafe da Introdução de Grande Hotel Abismo de Vladimir Safatle[14] é uma citação de Wittgenstein:

 

Poder-se-ia dizer que o conceito de "jogo" é um conceito de contornos pouco nítidos (verschwommenen Rändern). Mas um conceito pouco nítido é ainda um conceito? Um retrato difuso (unscharfe) é ainda a imagem de um homem? Pode-se sempre substituir com vantagem uma imagem difusa por uma imagem nítida? Não é muitas vezes a difusa aquela de que nós precisamos?[15]

 

Com ela, Safatle[16] pretende mostrar "como, quando é questão do homem, melhor uma imagem claramente difusa do que outra falsamente nítida"[17]. Retratos difusos, diz o autor, em que se torna possível reconhecer traços familiares, mas sempre insuficientes para compor a totalidade de uma imagem completamente determinada. Perseguir imagens difusas ou escutar linguagens precárias, como aquela de Moisés, é maneira de navegar na contracorrente de ideologias e linhas filosóficas hegemônicas, que ainda concebem a categoria de sujeito alinhada ao pensamento moderno e humanista. Com tal categoria, o sujeito é figura cujo fundamento é autoidêntico e substancialmente determinado.

 

Se, como diz Lacan[18], o sujeito moderno da ciência é o mesmo sujeito sobre o qual operamos em psicanálise, a ciência não opera sobre o sujeito que é o seu. Em outras palavras: enquanto a psicanálise incide sobre o sujeito, que é o mesmo da ciência, a ciência não opera sobre ele - a diferença reside no fato de que a ciência, inaugurada no século xvii, é a tentativa de enunciação de uma angústia profunda decorrente dos abalos da tradição, mas seu projeto é a construção de novos edifícios capazes de aplacar tal angústia. A dúvida cartesiana indica justamente o abalo de todas as certezas, mas o método cartesiano iniciado pela dúvida denota a tentativa de construir escadas capazes de desafogar o sujeito de sua falta, geradora de angústia. Estremecidas as bases do saber - por razões históricas e descobertas científicas -, a filosofia cartesiana redesenha a episteme considerando a dúvida diante do saber como seu ponto de partida, mas tal ponto é obturado por seus passos subsequentes, excluindo o próprio sujeito de seu campo operatório. Ou seja, no momento mesmo em que o sujeito angustiado diante da dúvida é suposto pela ciência esta trata de reenviá-lo às sombras - e é exatamente nesse território que a psicanálise incidirá.

Por isso, é possível afirmar que há uma antropologia inerente às ciências nunca claramente tematizada[19] - em muitas ciências o que se vê é um modelo normativo e identitário da figura do homem subjacente aos conceitos que nelas operam. Muitas vezes, tal modelo está presente de forma submersa em teses psicológicas profundamente implicadas em teorias do progresso, capazes de garantir a realização das condições que asseguram ao homem sua humanidade. Entretanto, nem sempre a figura do sujeito pode ser reduzida a esse tipo de antropologia cujo resultado maior é a entificação de toda atividade subjetiva à figura do Eu individual.

 

Filosofias modernas e ciências humanistas talvez sejam a melhor expressão de uma versão ainda egológica do sujeito[20], mesmo que isso não seja explicitamente abordado. No empenho de romper com essa vertente, muitos filósofos contemporâneos e psicanalistas têm criticado a própria ideia de humanismo, visando ampliar o uso político do conceito de reconhecimento da subjetividade. Política aqui deixa de ser mera ampliação de direitos universais a grupos desfavorecidos. Nesse caso, teríamos interesses particulares - predicativos dos sujeitos favorecidos - configurados em preceitos jurídicos que deveriam passar a ser agregados a todos os sujeitos[21]. Embora direitos humanos universais sejam evidentemente almejados para que se alcance uma sociedade justa, seus fundamentos, erguidos nas sociedades burguesas, evidenciam de saída uma aporia: como a justiça e a igualdade de direitos pode prevalecer quando a exploração do trabalho é a base de sustentação social? Sabemos, por experiência, que as ideologias dos Estados burgueses são construídas para justificar diferenças identitárias e normatividades que legitimem as múltiplas formas de exploração do trabalho. Por isso, uma política na qual o reconhecimento dos sujeitos ocorre por vias não identitárias, e por conseguinte diante daquilo que não é propriedade garantidora de distinção entre eles, implica escutar e admitir como válidas potências indeterminadas e forças indiferenciadas de uma subjetividade universal. Ou seja, aprofundar o processo de reconhecimento deixa de ser associado ao aumento do número de predicados e propriedades que deve se estender a todos os sujeitos, ficando o reconhecimento agora atrelado à escuta do que é impróprio como parte essencial do jogo político, articulado fundamentalmente pelo que resiste ao processo de predicação. Nesse panorama, exigências de igualdade e liberdade só se cumprirão à medida que houver uma recusa daquele modelo burguês jurídico-institucional no qual o homem é figura ligada à universalização dos ideais liberais - estratégia que, como assinalamos, expõe sua incoerência em seus próprios fundamentos. Essa tarefa de desenhar uma forma de reconhecimento longe das balizas identitárias e predicativas do sujeito parece justificável uma vez que é nela que se concentra uma possibilidade de justiça e universalidade, uma universalidade que se pauta paradoxalmente na singularidade - na diferença inerente a cada sujeito mas que é condição de todos. Retirando, portanto, o véu do humanismo, ainda preso em predicativos ideais a serem acrescidos aos homens, teremos um horizonte indefinido em todos e em cada um.

 

O sujeito em sua radicalidade, lembra-se Luciano Elia[22] em uma belíssima conferência do iv Congresso de Psicopatologia Fundamental, está distante da instância do eu, "instantâneo fotográfico do sujeito em sua imagem totalizante suportada pelo corpo" e próximo da "ordem do coletivo que vige no inconsciente, mas que também impera no Isso". No capítulo iii de O eu e o isso, Freud pergunta: "qual foi o eu do homem primitivo ou o seu isso que adquiriu a religião e a moralidade, naqueles dias primevos, a partir do complexo paterno?" E sua resposta:

 

[...] nenhuma vicissitude externa pode ser experimentada ou sofrida pelo isso, exceto pela via do eu, que é o representante do mundo externo para o isso. Entretanto, não é possível falar de herança direta no eu. [...] É aqui que o abismo entre um indivíduo concreto e o conceito de uma espécie torna-se evidente. As experiências do eu parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas quando se repetem com bastante frequência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do isso, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no isso, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos de experiências de incontáveis eus; e quando o eu forma o seu supereu a partir do isso, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos eus e ressuscitando-as[23].

 

O texto freudiano, diz Elia (2010), desenha o eu como a instância na qual se concentra a biografia individual, perdida com a morte do sujeito. Só o isso, usina de significantes que opera pelo processo primário, reúne a herança geracional. Embora seja herdeiro, o isso só entra em contato com tais significantes a partir do eu. Para Freud, porém, nem eu, nem isso são capazes de herdar algo geracional ou coletivo - apenas na repetição sucessiva da experiência de incontáveis eus e em diversas gerações uma herança poderia ser traçada. Daí a multidão inerente ao sujeito - seu caráter coletivo que se transfigura nas experiências do isso. Restritas ao eu - à identidade -, as experiências são individuais; tão logo, porém, essas experiências reiteram-se nos muitos eus das diferentes gerações, passam a compor o isso, tornando-se coletivas, simbólicas e transgeracionais (históricas).

 

Escutar o isso significa escutar o coletivo - aquilo que é comum, mas que ainda não ganhou nome. Quando o isso ganha voz e forma pela escuta, ele pode ser reconhecido, esculpido numa linguagem que não está completamente abduzida pelo que já se tornou convenção ou modelos que causam sofrimento. O sofrimento psíquico como déficits de reconhecimento social é um dos eixos centrais que orientam a psicanálise de Jacques Lacan. É comum, porém, que o não reconhecimento social seja compreendido como maneiras de fracasso nos processos de individualização ou de socialização dos desejos e pulsões. Nesse cenário, o sofrimento aparece como incapacidade de se orientar socialmente na conduta e no julgamento. Se parte dos problemas efetivamente deriva de expressões psíquicas coerentes com essa leitura, deve-se admitir que certos fenômenos não se ajustam a ela e exigem uma reconfiguração do quadro de problemas e intervenções clínicas. O principal problema a ser considerado aqui é o de que justamente alguns tipos de sofrimento emergem de uma identidade e de uma normatividade aprisionadoras e impeditivas da enunciação daquilo que ainda é indeterminado.

 

Com isso, a reconstrução de uma teoria do reconhecimento precisa evitar reduzir o sujeito à condição de indivíduo cujas cargas são as modernas visões humanistas. Antes de mais nada, é importante reconhecer que a própria ideia de indivíduo, dotado de uma identidade sólida, é parte fundamental da ideologia neoliberal. Na conferência já citada, Luciano Elia[24] tratou da questão do sujeito do seguinte modo:

 

A psicanálise é a experiência do sujeito - e o sujeito não é o indivíduo, ele é dividido, enquanto que indivíduo é o que não se divide, e o primeiro ato da psicanálise foi efetuar a divisão do sujeito, tomando-o como sujeito do inconsciente. E o inconsciente não é uma dimensão ou propriedade "profunda" do indivíduo. O que talvez não seja tão evidente e aceito é a tese complementar a esta, mas que desta não decorre de forma imediata, isto, requer mediação e construção conceitual, clínica, ética e metodológica para ser formulada: a psicanálise tem, na estrutura do sujeito do inconsciente, como sua tessitura mesma, a lógica do coletivo[25].

 

Incorporar ao discurso legítimo do sujeito aquilo que aparece como um retrato ainda difuso ou por meio de uma linguagem precária, o isso a que se pode atribuir o nome de inumano no sujeito e que ultrapassa a individualidade, significa não apagar traços potentes de indeterminação e não invalidar aquilo que ainda não tem nome ou forma definida. Pelo contrário, trata-se de escutar justamente a potência inerente a esses aspectos, sendo que as intervenções são direcionadas para que eles ganhem corporeidade e forma. Pois constranger tudo ao funil daquilo que pode ser reconhecido por processos já válidos de racionalização implica enxergar como fracasso nos processos de desenvolvimento qualquer outra forma discursiva ou gestual. As implicações dessa leitura são imensas - ao invés do reconhecimento da força política inerente à negatividade, ao inarticulado, tenta-se suprir de maneira assistencialista uma suposta falha no processo de subjetivação que, dentro de uma visão desenvolvimentista, jamais deveria ter acontecido. É certo que a realidade brasileira é árdua, dura, hostil, obscena, violenta. Entretanto, pensar em intervenções psicanalíticas apenas de forma a que elas deem conta de suprir aquilo que não pode ser vivido da maneira minimamente esperada significa não validar a verdade da voz que viveu certos tipos de experiência. Mais precisamente: a voz do inarticulado que reverbera de um retrato difuso talvez não espere ser acalentada a posteriori, num colo que seja equivalente ao de uma mãe suficientemente boa, por exemplo. Talvez, o que essa voz espere seja a sua reverberação e sua potência de perfurar a realidade tal como ela está hoje configurada.

 

Retomando os fios que ficaram soltos, seria interessante que, como psicanalistas, apostássemos em vozes e gramáticas pouco convencionais - como foi aquela proferida por Moisés - e retratos difusos de um homem capaz de escrever novas leis. O trabalho do psicanalista nas várias frentes do sus parece ser coerente com esse lugar de escuta - se o considerarmos como uma potência política e coletiva que resiste à lógica do sistema neoliberal, o sus pode ser justamente o espaço para que os sujeitos comuns transfigurem suas falas perdidas ao léu em força capaz de colocar em xeque a roda-viva que nos carrega sem piedade.

 

Em "Humanização na saúde: um novo modismo?", Benevides e Passos[26] contam a história do processo de humanização dentro da Política Nacional de Humanização da atenção e da gestão na saúde (pnh), mostrando que há limites quando o conceito de humanização é mal formulado. Dizem eles:

 

[...] humanização, expressa em ações fragmentadas e numa imprecisão e fragilidade do conceito, vê seus sentidos ligados ao voluntarismo, ao assistencialismo, ao paternalismo ou mesmo ao tecnicismo de um gerenciamento sustentado na racionalidade administrativa e na qualidade total. Para ganhar a força necessária que dê direção a um processo de mudança que possa responder a justos anseios dos usuários e trabalhadores da saúde, a humanização impõe o enfrentamento de dois desafios: conceitual e metodológico[27].

 

A humanização apontada como "conceito-sintoma" tenta obliterar "o movimento instituinte pela mudança das práticas de saúde". O movimento "chega aos anos 2000 encontrando ou se chocando com o que, paradoxalmente, dele resulta: formas instituídas, marcas ou imagens vazias, slogans já sem a força do movimento instituinte". Como conceito-sintoma, a humanização está sobretudo subdividida em setores oriundos de categorias questionáveis (saúde da mulher, saúde da criança, saúde do idoso) e orientadas por exigências de mercado que devem "focar o cliente" e "garantir qualidade total nos serviços"[28]. Por isso,

 

[...] colocar em análise o conceito-sintoma é permitir a retomada de um processo pelo qual se faz a crítica ao que se instituiu nas práticas de saúde como o "bom humano", figura ideal que regularia as experiências concretas. A necessidade de recolocação do problema da humanização obriga-nos, então, a forçar os limites do conceito resistindo a seu sentido instituído. Contra uma idealização do humano, o desafio posto é o de redefinir o conceito de humanização a partir de um "reencantamento do concreto" (Varela, 2003) ou do "sus que dá certo". Esta crítica ao Homem como figura-ideal desencarnada e ao seu sobrevoo regulatório, longe de abandonar todo e qualquer princípio de orientação, coloca em questão as práticas normalizadoras apostando, em contraste, na "normatividade" do vivo como capacidade menos de seguir do que de criar normas[29].

 

Tal "normatividade" do vivo significa não recuar diante do espanto provocado pela falta - significa não recair em fórmulas capazes de tamponar a angústia, empreendimento que orientou o pensamento das ciências e das filosofias modernas. Tal "normatividade" do vivo, tal como a defendem Benevides e Passos, significa criar uma cultura em que o indeterminado ganhe espaço, criar dispositivos de escuta nos quais o sujeito possa emergir carregando toda a sua força de indeterminação, fazendo brotar da concretude daquilo que se apresenta a criação de novas formas de existência que não podem ser pautadas ali onde se define um ideal de Homem ou o que é esperado daquilo que é considerado normal. É do sintoma, aliás, que poderá brotar uma nova forma de cuidado com a saúde, como foi a psicanálise ao precisamente escutar a verdade dos sintomas. Foi por ser dotado de uma linguagem ainda inarticulada que Moisés foi capaz de fundar novas leis. Um retrato difuso pode ser a melhor fotografia daquilo que está em nossas mãos e que cabe a cada sujeito transformar e cuidar de acordo com seus desejos coletivamente compartilhados.



[1]     G. W. S. Campos, "Um método para análise e co-gestão de coletivos".

[2]     R. Benevides; E. Passos, "Humanização na saúde: um novo modismo?".

[3]     Cf. http://pensesus.fiocruz.br/humanizacao.

[4]     Contrariamente às redes frias do capitalismo consumista, as redes quentes, no campo da saúde, estão baseadas em articulações efetivas de serviços e de trabalhadores operando a integralidade do cuidado no sus.[5]     R. Benevides; E. Passos, op. cit.[6]     R. Pacheco Filho, "Humanização no Sistema Único de Saúde: o que a psicanálise tem a dizer sobre isso".[7]     R. Pacheco Filho, op. cit., p. 82.

[8]     R. Pacheco Filho, op. cit.

[9]     R. Pacheco Filho, op. cit., p. 84.

[10]   R. Pacheco Filho, op. cit., p. 84.

[11]   V. Safatle, Grande Hotel Abismo.

[12]   T. Adorno, Dialética Negativa.

[13]   S. Freud, O homem Moisés e a religião monoteísta.

[14]   V. Safatle, op. cit.

[15]   Wittgenstein apud V. Safatle, op. cit., p. 1.

[16]   V. Safatle, op. cit.

[17]   V. Safatle, op. cit., p. 1

[18]   J. Lacan, "A ciência e a verdade".

[19]   V. Safatle, "Por um conceito antipredicativo de reconhecimento".

[20]   V. Safatle, "Por um conceito...".

[21]   V. Safatle, "Por um conceito...".

[22]   L. Elia, "O inconsciente público e coletivo e a estrutura da experiência psicanalítica".

[23]   L. Elia, op. cit., p. 2.

[24]   L. Elia, op. cit.

[25]   L. Elia, op. cit., p. 1.

[26]   R. Benevides; E. Passos, op. cit.

[27]   R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390.

[28]   R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390.

[29]   R. Benevides; E. Passos, op. cit., p. 390-391.


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