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Resumo
A partir de um diálogo entre Jean Laplanche e Pierre Bourdieu, analisamos uma letra de funk para evidenciar uma das vias tradutivas que a dominação masculina no contemporâneo propõe, para sujeitos adolescentes, esquemas narrativos para traduzir o Sexual inconsciente. Isso se dá de maneira binária e pela via da violência: a sexualidade masculina, no sentido da depreciação do objeto sexual; a sexualidade feminina, no sentido de reproduzir a lógica da sua própria dominação.


Palavras-chave
adolescência; funk; pulsão; sexualidade; violência.


Autor(es)
Vinícius Moreira Lima Lima
é graduando em Psicologia pela ufmg, bolsista de iniciação científica pibic/cnpq, pesquisador na área de Psicanálise.

Heloísa Moura Bedê Bedê
é graduanda em Psicologia pela ufmg, bolsista de iniciação científica pibic/cnpq, pesquisadora na área de Psicanálise.

Fábio Belo Belo
é doutor em Estudos Literários (ufmg), professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg).


Notas
1. D.-R. Dufour, A cidade perversa: liberalismo e pornografia, p. 213.
2. J. Laplanche, "O gênero, o sexo e o Sexual".
3. S. Freud, "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade".
4. S. Freud, "Psicologia de grupo e a análise do ego", p. 81.
5. J. Laplanche, "Castração e Édipo como códigos-esquemas narrativos".
6. P. Bourdieu, A dominação masculina.
7. S. Freud, "Três ensaios...".
8. S. Freud, op. cit., p. 196.
9. J. Laplanche, Vida e morte em psicanálise, p. 46-47.
10. J. Laplanche, "Pulsão e instinto", p. 41.
11. P. de C. Ribeiro; M. T. de M. Carvalho, "‘Tá tudo dominado!': Adolescência e violência originária", p. 57
12. P. de C. Ribeiro; M. T. de M. Carvalho, op. cit., p. 60.
13. P. de C. Ribeiro, "O sexual, o fálico e o orificial a partir da teoria da sedução generalizada", p. 111.
14. S. Freud, "Três ensaios...".
15. P. Bourdieu, A dominação masculina, p. 11-12.
16. P. Bourdieu, A dominação..., p. 25.
17. P. Bourdieu, op. cit., p. 40.
18. P. Bourdieu, op. cit., p. 38.
19. P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 8.
20. P. Bourdieu, op. cit., p. 14.
21. P. Bourdieu, Meditações pascalianas, p. 209.
22. P. Bourdieu, A dominação..., p. 63.
23. J. Laplanche, "Entrevista com Laplanche - concedida a Marta Rezende Cardoso", p. 58.
24. S. Freud, "Além do princípio de prazer".
25. J. Laplanche, Freud e a sexualidade: o desvio biologizante.
26. J. Laplanche, "Entrevista...", p. 59.
27. J. Laplanche, "Castração e Édipo...".
28. J. Laplanche, "Castração e Édipo...".
29. D.-R. Dufour, A cidade..., p. 32.
30. D.-R. Dufour, op. cit., p. 354.
31. S. Freud, "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor", p. 190.
32. P. Bourdieu, A dominação..., p. 49.
33. P. Bourdieu, A dominação..., p. 49.
34. P. Bourdieu, op. cit., p. 36.
35. P. Bourdieu, op. cit., p. 79.
36. S. Freud, "Sobre a tendência...", p. 189.
37. S. Freud, op. cit., p. 189.
38. J. Laplanche, "Castração e Édipo...".
39. S. Freud, op. cit., p. 194.
40. P. Bourdieu, A dominação..., p. 74.
41. P. Bourdieu, op. cit., p. 75 (comentário entre colchetes nosso).
42. P. Bourdieu, op. cit., p. 76.


Referências bibliográficas

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Ribeiro P. de C.; Carvalho M. T. de M. (2001). "‘Tá tudo dominado!'": Adolescência e violência originária. In M. R. Cardoso (org.). Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: nau Editora/faperj, p. 55-67

Ribeiro P. de C. (2016). O sexual, o fálico e o orificial a partir da teoria da sedução generalizada. Revista Percurso, 56/57, p. 105-112, jun./dez.





Abstract
From a dialogue between Jean Laplanche and Pierre Bourdieu, we analyzed a funk lyric to show how male domination in the contemporary proposes, for adolescent subjects, narrative schemes to translate unconscious sexuality. This occurs in a binary way and through violence: masculine sexuality, in the sense of the depreciation of the sexual object; the feminine sexuality, in the sense of reproducing the logic of its own domination.


Keywords
adolescence; funk; drive; sexuality; violence.

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 TEXTO

Sexualidade e violência no funk: dominação masculina, psicanálise e adolescência

Sexuality and violence in funk: male domination, psychoanalysis and adolescence
Vinícius Moreira Lima Lima
Heloísa Moura Bedê Bedê
Fábio Belo Belo

"Chupa logo essa porra / Vai, sua filha da puta / Baba na minha piroca". Essa é a estrofe principal da música "Cheio de ódio", de MC Pikachu e MC CL, cantores de funk com, respectivamente, 17 e 18 anos de idade. Essa letra nos chama a atenção pela crueza com que a sexualidade se apresenta associada à violência, fenômeno que é recorrente nesse estilo musical e que está atrelado às marcas do contemporâneo. Sabemos que o crescimento dessas formas de enunciação faz parte da lógica pornográfica atual, em que a sexualidade genital aparece explicitamente numa "monstruosa mostração"[1]. A nosso ver, essa pretensa "liberação sexual" não é fora da norma, tampouco sem dominação. Mais ainda, tais elementos são mesmo propostos pela cultura, funcionando como uma engrenagem tradutiva possível para o Sexual inconsciente.

 

Em Laplanche[2], o Sexual ganha estatuto de conceito, a partir de sua releitura da obra de Freud, a fim de enfatizar que se trata de uma sexualidade para além do genital e da reprodução sexuada: antes, é uma sexualidade ligada à fantasia, no nível do inconsciente infantil, atrelada à perversidade polimorfa que persiste em toda sexualidade humana, tal como Freud[3] descobriu nos Três ensaios. Acompanhando os tradutores da obra de Laplanche, empregamos, neste artigo, o termo "Sexual", no intuito de delimitar sua especificidade conceitual, em contraponto à noção comum do "sexual", geralmente associado à genitalidade ou ao coito.

 

Partindo disso, pretendemos discutir como a dominação masculina propõe, aos sujeitos adolescentes, por meio de uma heterossexualidade compulsória, esquemas narrativos que apresentam a violência como uma via facilitada para tradução dos aspectos mais mortíferos da sexualidade. Para tanto, partiremos de uma leitura psicanalítica da canção supracitada, somando a isso um aporte sociológico que visa suplementar a visão da psicanálise sobre as configurações sociais. Tal canção será tomada como um representante metonímico do universo cultural do funk. Buscaremos compreender um aspecto de sua produção a partir de um diálogo entre Jean Laplanche e Pierre Bourdieu.

 

Com isso, sustentamos ser possível uma espécie de inversão na direção da formulação freudiana, segundo a qual a psicologia individual "é, ao mesmo tempo, também psicologia social"[4]. Acreditamos, a partir de Laplanche[5], que, até certo ponto, o social oferece um tipo de "ajuda à tradução" em nível individual, por meio de esquemas narrativos que atuam na direção de ligar, organizar o Sexual. Com Bourdieu[6], questionaremos o caráter naturalizante que encontramos nesses arranjos, em especial aqueles de gênero, que acabam por tentar eternizar uma estrutura de dominação arbitrária e contingente. Assim, tentamos fazer trabalhar alguns aspectos da função psíquica da violência para os sujeitos adolescentes que participam do universo cultural do funk em sua maneira de abordar a sexualidade.

 

Adolescência, funk e violência

Freud[7] considera a puberdade como um momento, para o sujeito, de desligamento da autoridade dos pais e, consequentemente, de uma busca por novas referências a partir da cultura. Nesse período, o corpo púbere é invadido pela segunda onda das pulsões sexuais, que ocorre após a fase de latência. Então, o jovem depara com uma reatualização da proibição do incesto, somada a um imperativo de construir um objeto de amor exterior ao casal parental. Em decorrência disso, o sujeito terá de construir um parceiro sexual fora do corpo próprio, atrelado ao seu horizonte cultural. Portanto, com a chegada dessa fase, "introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a sua configuração definitiva"[8].

 

Laplanche, relendo a obra freudiana, lembra que há um elemento inteiramente novo que aparece na puberdade: a possibilidade de uma reação sexual, não apenas no nível fisiológico, mas também em termos da existência de representações sexuais[9]. Segundo a teoria da sedução generalizada (tsg) do autor, tal possibilidade de reação não é possível na infância, uma vez que, durante os primeiros contatos com o adulto, e, portanto, com o Sexual inconsciente, o infante ainda não possui um aparelho psíquico formado. É a partir dessa assimetria fundamental, com um lado ativo e outro profundamente passivo, que se funda o caráter invariavelmente traumático da sedução do adulto em relação ao bebê. Isso uma vez que mensagens parasitadas pelo Sexual no adulto são transmitidas junto às ações de cuidado para o pequeno sujeito humano e este só pode receber tais mensagens enquanto enigmáticas, já que ainda não é capaz de integrá-las.

 

É a partir das tentativas - sempre falhas - por parte da criança de traduzir mensagens enigmáticas que seu aparelho psíquico será formado. Trata-se de um movimento de autoapropriação daquilo que foi uma vez externo, proveniente de um outro adulto. Se, em um primeiro momento, temos uma criança que teve de se haver com o Sexual antes de ser capaz de tanto, em um segundo momento, na puberdade, temos um ser capaz de ressimbolizar tais mensagens que lhe vieram, cedo demais, do mundo adulto. Eis o grande problema: o Sexual vem antes do inato, a fantasia vem antes da função biológica. O suposto instinto sexual adulto não chega a tempo de oferecer à criança elementos para lidar com a cena sexual. Muito pelo contrário, no momento em que o instinto pubertário chega, ele encontra seu lugar ocupado, colonizado pela pulsão infantil[10].

 

É importante ressaltar que, a partir dessa tese laplancheana, torna-se impossível pensarmos em algo como uma heterossexualidade natural, de finalidade reprodutiva. Se a pulsão - irrefreável, abiológica, anárquica, singular - vicaria a ordem instintiva, não pode haver nada de prescritivo, definido a priori na sexualidade. Dessa forma, a heterossexualidade só parece natural por haver uma série de vias facilitadas pela cultura para que essa seja a tradução hegemônica. Essa tentativa de escamotear as contingências originárias se deve ao caráter profundamente angustiante da pulsão, uma vez que não possuímos um código pronto para lidar com os ataques pulsionais, deixando o sujeito desamparado frente a suas exigências infernais de satisfação. Daí, talvez, a necessidade de repetição que vemos tão marcadamente nos funks, no sentido de reiterar esquemas culturais de virilidade ou de feminilidade.

 

O que esses sujeitos deixam passar é o fato de que os sinais de virilidade, por exemplo, não são mais que representações culturais, portanto, historicamente variáveis, não tendo em si nada de natural, tampouco de garantido. A repetição, então, configura-se como um esforço assintótico para sedimentar uma identidade egoica, essencialmente falha e instável. O problema começa quando esse tipo de tradução faz uma associação normativa entre sexualidade e violência, atrelando esses dois elementos à busca adolescente pela "consolidação da identidade sexual"[11]. Esse atrelamento, por mais que seja uma forma possível de organização do Sexual e da identidade, acaba por se tornar excessivamente rígido, binário. Isso de maneira que os meninos adolescentes são levados a repudiar violentamente - e mesmo temer - qualquer traço de feminilidade, em favor de demonstrações viris de força e honra.

 

Ribeiro e Carvalho ainda lembram que essa violência que perpassa a afirmação do viril nos rapazes adolescentes não é sem relação com as origens do sujeito psíquico. Na situação originária de sedução, os bebês são confrontados com o Sexual inconsciente do adulto de forma profundamente passiva. Tal passividade traumática recebe uma facilitação cultural para ser traduzida em termos de feminilidade; mais tarde, "a vagina, como lugar de penetração, se presta a retomar e simbolizar a intromissão da sexualidade adulta no corpo e psiquismo da criança"[12]. De maneira oposta, a masculinidade torna-se uma tradução para a atividade, para a penetração, ao passo que o feminino encarna a posição de corpo a ser invadido. Dentro dessa lógica da penetração, a sexualidade feminina ganha aspectos egossintônicos, ao traduzir a vagina como local a ser penetrado.

 

Como resultado, temos a criação de duas linhas de ficção que seriam mutuamente excludentes: por um lado, masculinidade-atividade-penetrante-pênis e, por outro, feminilidade-passividade-penetrada-vagina. Seguindo nessa esteira, Ribeiro afirma:

 

Que a feminilidade seja, desde épocas imemoriais, associada à posição penetrada, pode significar apenas a existência de um vício de tradução que, em algum momento histórico, passou a ser usado como um instrumento de poder e dominação dos homens sobre as mulheres. O mesmo pode-se dizer da associação da posição penetrante com a masculinidade[13].

A adolescência, então, enquanto período privilegiado para a afirmação de si no mundo para além das referências parentais, encontra, na cultura ocidental, uma facilitação para a tentativa de enquadrar-se em uma dessas duas linhas ficcionais. Algo que é sempre falho, inassimilável e, por isso, angustiante, de maneira que a violência acaba se tornando um suporte tradutivo eleito por excelência para mediar as relações subjetivas, especialmente dos homens sobre as mulheres. Acreditamos que o funk denuncia tal arranjo de maneira exemplar e caricata, em trechos como "O que ela quer é piru e muita marola". Aqui, parece haver um acordo tácito de uma heterossexualidade genital natural, em que o rapaz adolescente pressupõe um saber sobre o desejo das mulheres. Isso deixa de lado o caráter de solda entre a pulsão e seu objeto, que não é fixo nem predeterminado[14]. No intuito de compreender melhor as engrenagens que põem essa estrutura em movimento, recorreremos, agora, a um diálogo entre Laplanche e Bourdieu.

 

Esquemas narrativos, violência, depreciação

Ao estudar a dominação masculina, Pierre Bourdieu lança mão da noção de violência simbólica. Isto é, trata-se de uma violência "suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última instância, do sentimento"[15]. Isso significa que os próprios esquemas de percepção do mundo já são produzidos e propostos de maneira a instituir e reforçar a dominação dos homens sobre as mulheres. Tal estratégia faz uso de mecanismos históricos que tentam des-historicizar a ordem social, buscando transmitir uma aparência de naturalidade aos arranjos binários atuais.

 

De fato, o que ocorre é uma tentativa de apagamento e invisibilização do arbitrário e do contingencial que subjazem às estruturas sociais existentes. Como consequência, há uma série de marcadores corporais culturais que trabalham no sentido de reproduzir a dominação incorporada, sob a forma dos homens viris e das mulheres feminis. A virilidade, por exemplo, atrelada violentamente à honra masculina, fica associada à virilidade física, em especial pelas "provas de potência social - defloração da noiva, progenitura masculina abundante etc. - que são esperadas de um homem que ‘seja realmente um homem'"[16]. Assim, a divisão sexual binária é uma relação social de dominação, uma vez que, estando organizada por meio de gêneros pretensamente relacionais, masculino e feminino, permite instituir o falo como símbolo viril e ponto de honra masculino[17].

 

A partir desse arranjo, o princípio de divisão fundamental entre masculino-ativo e feminino-passivo "cria, organiza, expressa e dirige o desejo - o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada"[18], ou ainda como "reconhecimento erotizado da dominação". Dessa maneira, ficam estabelecidos os dois polos da ordem simbólica concebida como estrutura estruturante e estruturada[19]. Isso implica que tal organização só é estruturante porque estruturada, fornecendo os esquemas de percepção e apreciação do mundo que realizarão a incorporação e invisibilização da dominação. Sustentamos que o funk, enquanto produção simbólica, realiza a transmissão e legitimação desses mesmos esquemas.

 

Isso na medida em que o horizonte identitário de suas músicas e de suas danças coloca em cena justamente sujeitos que buscam se enquadrar ao máximo nesse binarismo dos arranjos estabelecidos. A consequência dessa organização simbólica é precisamente a materialização de tal violência: o poder simbólico adquire efeitos reais equivalentes àquilo que poderia ser obtido pela força (física ou econômica), mas seguindo por outra via, a saber, aquela do reconhecimento[20]. Mesmo quando há recurso à força das armas ou do dinheiro, por exemplo, a dominação "sempre possui uma dimensão simbólica"[21].

 

Essa dimensão do poder não poderia se exercer sem a colaboração dos que lhe são subordinados - isto é, de um homem que se reconheça como homem e uma mulher que se reconheça como mulher -, sujeitos que se subordinam ao poder simbólico na medida mesma em que "o constroem como poder"[22]. Na música em questão, isso fica claro quando uma voz feminina ao fundo afirma: "Eu gosto é de piroca mesmo e não nego" e "Toda mulher que diz que não dá o cu, cuzinho, apertadinho, na verdade, só tá esperando a hora certa". Tal tipo de discurso reitera e naturaliza a ideia do corpo da mulher como um corpo a ser penetrado em todos os orifícios possíveis, o que nos permite pensar que também as mulheres podem ser agentes de sua própria dominação.

 

Todavia, essa construção não se dá como decisão de um indivíduo livre e consciencioso, mas como resultado de uma estrutura de poder duradouramente inscrita no corpo dos dominados. Assim, Bourdieu enfatiza, com sucesso, os aspectos estruturados e estruturantes de uma ordem social voltada para a dominação masculina. No entanto, ele deixa escapar (porque, de fato, é algo que foge ao seu escopo) a presença do pulsional no sujeito, especialmente em sua forma mais desestruturada e desestruturante: a pulsão sexual de morte, que ora exploraremos, seguindo Laplanche, a fim de aprofundar a discussão sobre o funk. Isso porque, quando a violência passa ao ato, tornando-se violência física, material, os sistemas simbólicos funcionam como ponte para algo que não é do simbólico propriamente dito, mas do pulsional inconsciente.

 

Indo mais além de Freud, Laplanche aponta que a violência é sempre sexual: "os aspectos da violência que aparentemente são dessexualizados têm sempre um fundamento sexual - tanto na violência individual quanto na coletiva"[23]. Isso ajuda a compreender a crueza com que são enunciados trechos como o seguinte, na voz de MC Pikachu: "Chupa logo essa porra / Vai, sua filha da puta / Baba na minha piroca". Aqui, a associação entre sexualidade e violência ocorre de forma radicalmente explícita, de uma maneira que os conceitos freudianos de pulsão de vida e pulsão de morte não conseguem abarcar. Em Freud[24], a sexualidade se limita a um Eros ligante, deixando para a pulsão de morte apenas uma agressividade pura, quase como um instinto de destruição e desligamento. Assim, a pulsão de morte estaria separada da sexualidade, algo de que discordamos, juntamente com Laplanche[25].

 

A descoberta freudiana original, nos Três ensaios de 1905, que era o Sexual anárquico e infantil, fica acobertada por uma sexualidade ligante e total com Eros, e a pulsão de morte vem retomar o desequilíbrio fundamental que há no sujeito humano, mas sem assumir seu aspecto propriamente Sexual. É justamente para frisar o equívoco desse desvio biologizante de Freud que Laplanche opta pelos termos pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte. A concepção de uma pulsão sexual de morte torna mais inteligível esse tipo de imbricação entre sexualidade e violência, tal como vemos na letra de funk em questão, como canta MC CL: "Vou fodendo essa danada cheio de ódio na piroca".

 

Esses aspectos mais mortíferos, disruptivos e desestruturantes do Sexual, reservados à pulsão de morte, que podem se converter em agressividade ante o outro, são antes uma reação à "agressividade contra si mesmo, isto é, justamente a agressividade da sexualidade que não se consegue dominar"[26]. Para tratar esses componentes infernais da sexualidade, a cultura lança mão de códigos ou esquemas narrativos que lhe forneçam uma tradução possível, roteiros populares com elementos relativamente fixos, que servirão para ajudar um sujeito a ordenar, historizar seu destino[27]. Tais esquemas são reiterados ao longo da vida dos sujeitos e marcam presença em toda uma série de produções culturais: religião, fábulas, contos, novelas, filmes - e, no presente caso, na música.

 

Esses códigos tradutivos não surgem do nada; pelo contrário, são devedores de toda uma tradição, de um processo de normalização e naturalização de regras arbitrárias e contingentes. O funk, por exemplo, oferece lugares pré-fabricados para sujeitos que habitam sua máquina simbólica: os homens são colocados (e ao mesmo tempo se colocam) em uma posição de quem tem a desejável potência fálica, ao passo que as mulheres são situadas (e ao mesmo tempo se situam) em um lugar de quem deseja, nos homens, a potência fálica que elas supostamente não têm. Compreendemos essas formas relacionais - das quais o funk se apropria e as quais ele exacerba - como maneiras de mimetizar uma natureza perdida, encenando, sob seu radical desconhecimento, o próprio fracasso da complementaridade, de um encontro instintivo. Essas ficções permitem uma aparência de garantia, de um saber sobre o sexual, escamoteando o desamparo humano, isto é, a falta de um código pronto para lidar com as exigências da pulsão.

 

Laplanche[28] nos permite compreender que a invenção de um código tradutivo binário se deve a uma forma de simbolização da atividade e da passividade em fálico e castrado, que gera a ilusão de que há, no homem, uma presença e, na mulher, uma ausência, uma falta. Isso porque o falo se torna insígnia central da diferença sexual, engessando a diversidade em um esquema dual recalcante: a lógica fálica. Esse arranjo ainda é muito presente no contemporâneo, tempo marcado pelo excesso, pelo sempre-mais, sem limites, o que confere às sociedades ocidentais "esse lado obsceno, e mesmo pornográfico, que cada vez mais as caracteriza"[29]. Esses elementos ficam bastante evidentes no funk, por meio da apresentação crua e direta "do órgão sexual, especialmente em ação"[30]. Em "Cheio de ódio", isso aparece com clareza em trechos como "Baba na minha piroca".

 

Esse modo de vida pornográfico está radicalmente ligado ao imperativo de gozo contemporâneo, derivado da sociedade de consumo, com sua ordem determinante: gozar a qualquer preço, gozar tudo, gozar o máximo possível. Na letra de funk em questão, esses elementos são enunciados com clareza por uma voz feminina ao fundo: "Em pleno século xxi e as pessoas acreditando em Romeu e Julieta... O povo quer é foder, foder!". Tal imperativo também fica marcado no trecho "Chupa logo essa porra". Há uma pressa singular na maneira como o sujeito quer gozar sexualmente. Ademais, parece que há aí algo de que o sujeito quer se livrar, como se fosse uma exigência infernal de satisfação que a pulsão insiste em lhe cobrar. No entanto, como coloca Freud, a natureza da própria pulsão sexual tem algo que "é desfavorável à realização da satisfação completa"[31]. Por isso o mal-estar ser essencialmente da ordem do Sexual. Daí as tentativas de repetir, assintoticamente, a procura pelo gozo e pela afirmação de uma identificação completa com uma identidade. Trata-se, portanto, de uma repetição fadada a ser sempre falhada.

 

Por conseguinte, essa mostração monstruosa da sexualidade genital não é um simples resultado de liberação sexual. Essa pretensa liberação não é feita sem normatividade, na medida em que, mesmo que as mulheres, por exemplo, tenham rompido com normas tradicionais de recato e contenção, ainda assim, e especialmente no funk, o uso do corpo feminino "continua, de forma bastante evidente, subordinado ao ponto de vista masculino"[32]. Esse corpo precisa manifestar, nas letras e nas danças, a "disponibilidade simbólica" que pretensamente "convém à mulher"[33]. E os rapazes, por sua vez, ainda concebem o ato sexual em si como "uma forma de dominação, de apropriação, de ‘posse'"[34].

 

A própria sexualidade é vista pelos homens, no geral, como repleta de agressividade, convocando-os à conquista e à defesa da honra. Por isso, a virilidade é "eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si mesmo"[35]. Tal formulação nos remete à ideia freudiana segundo a qual alguns homens depreciam seu objeto sexual como condição para que a "sensualidade" possa se "expressar livremente"[36], possibilitando o coito. Em Freud, essa estratégia seria empregada quando um objeto, escolhido a fim de evitar o incesto, relembra o objeto proibido por meio de alguma característica frequentemente "imperceptível"[37].

 

No entanto, essa leitura nos parece muito marcada por uma referência edipiana, que, com Laplanche[38], aprendemos a situar do lado do recalcante, e não do recalcado, perdendo de vista, portanto, o Sexual infantil. A nosso ver, o que incomoda o sujeito não é a proximidade do objeto a algo do seu Édipo, mas, antes, o reencontro traumático com o Sexual inconsciente. Nesse caso, propomos que a depreciação do objeto é a maneira eleita pelos homens para tratar o Sexual que os incomoda. Partindo dessa perspectiva, levantamos a seguinte questão: por que tratar o outro como dejeto?

 

Consideramos que, na cultura ocidental, a violência é a via privilegiada para os homens traduzirem sua sexualidade. Partindo desse ponto de vista, aventamos a hipótese de que a angústia do pulsional é exteriorizada em violência, utilizando o circuito tradutivo do excremento para funcionar, transformando o objeto em dejeto. Ao tornar o outro em nada mais que merda, dá-se um tratamento para o horror e para o repúdio ao feminino, à passividade, à sexualidade orificial. O que não é feito sem ambivalência, porque, ao mesmo tempo que o outro é uma bosta, é também aquilo que o sujeito pode desejar. Afinal, desde Freud, já entendemos que "o excrementício está intimamente ligado ao sexual"[39].

 

O resultado disso, no funk, é a depreciação do objeto (feminino) por parte dos homens, como consequência da eleição da violência como via facilitada para tratar o Sexual. Contudo, o que os homens não veem, talvez por ser algo invisibilizado pela própria estrutura, é que eles próprios também são prisioneiros, vítimas dessas formas hegemônicas de tradução e representação. Isso porque o exercício da dominação tampouco é algo inscrito numa suposta natureza; ele é também construído "ao longo de todo um trabalho de socialização"[40], em um processo de "diferenciação ativa ao sexo [produzido como] oposto"[41]. Assim, o privilégio masculino se revela como uma cilada, marcada pela tensão e pelo dever permanentes de "afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade"[42].

 

Conclusões

Como saldo de nossa discussão, acreditamos ter sido possível responder à seguinte pergunta: o que é isso do Sexual que o sujeito não dá conta de abordar e que faz parecer necessário, para ele, o uso da violência? A partir de nossa análise da letra de "Cheio de ódio", tentamos trazer à luz algumas das maneiras pelas quais a dominação masculina propõe esquemas narrativos para tratar o Sexual inconsciente, empregando códigos tradutivos específicos para os homens e para as mulheres. Esses códigos atuam no sentido de ratificar a dominação por meio da violência como via facilitada pela cultura. O resultado disso é a manutenção de estruturas estruturantes e estruturadas, como pensa Bourdieu, para tratar o sexual desestruturado e desestruturante, que encontramos em Laplanche.

 

Como consequência, essa norma binária oferece uma dupla ajuda tradutiva à sexualidade: a masculina, no sentido da depreciação do objeto sexual; a feminina, no sentido de reproduzir a lógica da sua própria dominação. O recurso a esses códigos torna-se mais sedutor no período pubertário, uma vez que esses sujeitos têm de se haver com a presença do Sexual de uma nova maneira, atrelada à sexualidade dita adulta. Além disso, na adolescência, esses jovens, em busca de se fazerem reconhecer no mundo, procuram enquadrar-se em roteiros binários de gênero, pela construção da virilidade e da feminilidade. Isso nos parece estar claro na letra de funk aqui analisada, cujos cantores, MC Pikachu e MC CL, de 17 e 18 anos respectivamente, são representantes metonímicos de toda uma geração de adolescentes que têm tomado para si esses esquemas narrativos. Esquemas esses que nos parecem comprometidos com uma forma de recalcamento ainda muito alinhada a essa estrutura de dominação masculina.


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