EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Leonardo Luiz, Música no divã – sonoridades psicanalíticas, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2014, 190 p.


Autor(es)
Maria de Fátima Vicente
é psicanalista, mestre em Psicologia pela unimarcos-sp, doutora em Ciências Sociais pela puc-sp, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise desse mesmo departamento desde 1993. Participante do coletivo Escuta Sedes. Autora de Psicanálise e Música: aproximações (Coleção Clínica Psicanalítica, Casa do Psicólogo), e de artigos em publicações diversas.


Notas

1.      H. Kohut, Observations of the Psychological Functions of Music, Journal of the American Psychoanalytic Association, 1957, n. 5, p. 389-407; e H. Kohut; S. Levarie, On the enjoyement of listening to music, Psychoanalystic Quartely, 1950, n. 19, p. 64-87.


voltar à primeira página
 

Ecos e ressonâncias do divã – uma aposta [Música no divã – sonoridades psicanalíticas]

Echoes and resonances of the couch - a bet
Maria de Fátima Vicente

Uma colega de origem argentina comentou comigo, já há algum tempo, que lhe chamava a atenção que psicanalistas brasileiros frequentemente fizessem referências à música em seus escritos. Ela se admirava que a música ali estivesse como epígrafe ou a colaborar na elaboração do problema em discussão. O comentário evidenciou a naturalidade com que eu encontrava aquelas referências e me levou a reconhecer que eu considerava aquela presença periférica, ainda que constante, e que esperava que os psicanalistas brasileiros se dedicassem mais à relação psicanálise e música. Foram estas lembranças e pensamentos que o pedido da revista Percurso para que eu resenhasse o livro de L. Luiz, Música no divã - sonoridades psicanalíticas, me suscitou e me levou a considerar que o que eu esperava já vem acontecendo há algum tempo, pois, em sua quarta edição, o livro assinala um interesse consistente pela temática.

O autor, que é psicólogo, psicanalista e músico, aposta na relação música e psicanálise tendo por referência a clínica que pratica cotidianamente, com pacientes adultos em análise, e problematizando o que acontece nesses tratamentos. Como afirma na Introdução do livro: 

 

A psicanálise que pratico, ainda que não seja ortodoxa, é freudiana. Portanto, a livre associação continua sendo a regra fundamental e é a partir dela que meus pacientes (pelo menos os que lançam, obviamente, mão de alguma referência musical) constroem e apresentam seus conteúdos (p. 13). 

 

As ocorrências sonoras que encontra em sua prática como analista e que serão objeto de seu interesse de pesquisador - o livro é uma ampliação de sua tese de doutoramento - são também dependentes de sua equação pessoal como analista, ou seja, como ele próprio afirma, "[...] aquilo que minha escuta pôde captar está intimamente ligado aos aspectos musicais" (p. 14). 

O campo da experiência é a clínica no divã, ou seja, são análises que transcorrem quando a psicanálise opera em sua maior potência, vale dizer, aquelas em que os pacientes têm condições de associar livremente quando (e, também, porque) escutados em transferência, além de ter o eventual respaldo de sessões individuais e frequentes. 

A delimitação desse recorte específico permite evidenciar uma participação de maior amplitude da música na subjetividade de pessoas em análise, o que possibilita ao autor levar em conta as mais diversas apresentações da música que marcam presença durante processos analíticos. Dessa forma, as referências a movimentos e a gêneros musicais, as analogias e as metáforas poéticas a partir da música, a prática de um instrumento e/ou o cultivo de um gênero musical são considerados na medida em que "a música tem a especificidade de se apresentar como elemento mediador de transformações psíquicas" (p. 15). 

Tais modos de presença da música são tratados pelo autor como elementos indicativos de uma modalidade particular de relação do analisando com a música: a afetabilidade musical, que pode ser mais facilmente reconhecida em alguns pacientes e que deve ser considerada como elemento que lhes é próprio, dando ensejo a uma compreensão mais abrangente ao mesmo tempo que mais detalhada do caso clínico. Como Leonardo Luiz afirma, 

 

A musicalidade parece ser uma ferramenta familiar a esses pacientes e, mesmo quando não são tão explícitos sobre a aparição de uma sonoridade específica, algo de suas falas encontra eco na comunicação paciente-analista [...]. Estes identificam a razão singular da história de vida atravessada por aspectos musicais, permitindo uma detida reflexão sobre a ideia que denominei "afetações musicais na vida psíquica" (p. 16).

 

Além desse valor de compreensão do caso, a afetabilidade musical é também uma companheira do psicanalista em sua tarefa, pois colabora para a formulação das interpretações e das construções pertinentes ao processo analítico. Para o autor, há um comportamento psíquico próprio das pessoas afetadas pela musicalidade, que se faz reconhecer por modos específicos de estar no mundo e de estar em análise, modos que são coerentes entre si, que guardam relação de continuidade entre o cotidiano e o processo analítico e que, mais que isso, são condizentes com a escolha e gosto musical desses indivíduos. O que se deve, de acordo com ele, à existência de relações de analogia entre os estilos musicais e a constituição do sujeito, o que, por acréscimo, também possibilita ao analista identificar mais precisamente as especificidades do caso clínico e da estrutura clínica a partir dessa peculiaridade subjetiva. Isso o leva a propor uma modalidade específica de identificação, a que se dá por meio da esfera musical. Se a música promove as condições de expressão de gosto pessoal, na medida em que permite expressar emoções, outros aspectos da própria música servem como elementos identificatórios do sujeito, argumentação que será sustentada, primeiramente, nos capítulos teóricos e, com maior riqueza de detalhes, nos capítulos de apresentação e discussão de casos. 

As condições que irão configurar padrões de singularização organizados pela afetabilidade musical se farão reconhecer por meio das especificidades dos estilos musicais escolhidos pelos indivíduos, e por meio dos destinos que tais escolhas assumirão no comportamento psíquico deles; nesse sentido, as questões do gosto e da escolha musical terão merecido destaque e serão abordadas no Capítulo I, cujo título é "Identificação, gosto e cultura de massa". O capítulo tem por objetivo contribuir para fundamentar a hipótese da identificação que se passa na esfera musical, identificação que se relaciona ao pertencimento do indivíduo a grupos assim como aos processos de formação do gosto. 

O ponto de partida do capítulo é a discussão sobre gosto e escolha, em que ambos os elementos são considerados na tênue relação de diferença que mantém entre si, mas principalmente referidos à possibilidade do exercício do discernimento. Nesse sentido, a questão da escolha e da formação do gosto é abordada, principalmente, na dependência das possibilidades de acesso à informação e ao conhecimento. A questão da formação das massas e a do pertencimento do indivíduo aos grupos serão introduzidas para dar a devida perspectiva psicanalítica àquelas problemáticas. Dessa forma, as noções de gosto e de escolha, anteriormente abordadas no âmbito dos processos de consciência, ganharão esta outra dimensão, a partir da perspectiva psicanalítica, a (sobre) determinação inconsciente. Os elementos oriundos da psicologia das massas e das questões narcisistas que acompanham a constituição do eu, conceitos propostos por Freud e que serão visitados pelo autor, aportarão os elementos necessários à leitura psicanalítica do problema do gosto e da escolha. Outras contribuições oriundas da semiótica, sobre o signo e as relações deste com a identificação - naquele campo - possibilitam ao autor ampliar o leque de suas referências, para situar a identificação própria à esfera musical. A diversidade de questões será devidamente remetida ao foco do autor, em que o inconsciente e suas consequências permeiam a leitura dos fenômenos sociais e individuais, patológicos e normais e, nesse sentido, o Capítulo II - Música e Psicanálise - se encarregará de dar mais estofo à proposta. 

Nesse capítulo, Leonardo Luiz abordará mais detida e especificamente os conceitos propriamente psicanalíticos de identificação e os de constituição do eu - especialmente a constituição do eu narcísico corporal - que serão melhor explorados relativamente à proposta do autor de dar sustentação e redefinição psicanalítica ao problema de gosto e escolha. Ele procurará ressaltar o olhar que a psicanálise lança à música, apresentar em mais detalhes o conceito de identificação e buscará dar conta de configurar a noção de sonoridade psicanalítica. Esta última terá se tornado noção necessária a seu prosseguimento, já que ele irá considerar que a escuta psicanalítica tem, em sua própria natureza, a condição de ouvir o sujeito afetado pelas sonoridades musicais. A discussão buscará dar elementos para responder às questões de como a escuta psicanalítica se presta a isso e também para explicitar como a música afeta o psiquismo.

A proposição inicial para essa discussão é a hipótese do autor segundo a qual a experiência musical, por ser não verbal e tampouco discursiva, torna possível, a posteriori, um tipo de discurso - ainda por especificar - na medida em que há na música algo que corresponde à forma como o mundo psíquico aborda o mundo da experiência. 

Ele ressaltará que a abrangência das questões e abordagens que relacionam a música ao campo da constituição do indivíduo e sua relação com o mundo da experiência é vasta, de tal sorte que para fundear tal abrangência para além do senso comum "foi importante ‘passear' por diferentes autores, filosofias, perspectivas psicanalíticas, na contribuição que trazem à ideia de afetação musical" (p. 46). 

A amplitude das abordagens se distribuirá, entretanto, em três eixos organizadores, o eixo das relações primárias de constituição do sujeito psíquico, o eixo das relações entre música e mito, nas sociedades primitivas e as condições de escuta psicanalítica relacionadas à música ou à musicalidade. Desses três eixos, aquele que é próprio às relações primárias de constituição subjetiva será o eixo melhor detalhado. 

Das relações primárias de constituição do sujeito psíquico, o autor relacionará pelo menos duas concepções diferentes sobre a natureza da música e sobre a incidência dela na constituição do psiquismo. A primeira delas, a que toma a música como experiência sensível, afetiva, fora do campo das representações, e a segunda, aquela que considera a música em suas relações com a metapsicologia psicanalítica e dela extrai algumas das condições de possibilidade da transmissão do inconsciente. Em ambas as concepções, a relação entre a mãe e o bebê terá um lugar de destaque, mas, em cada uma delas, o modo de configurar essa relação também irá diferir, com consequências diversas, na dependência dos diferentes arcabouços conceituais que as norteiam e das experiências subjetivas que enfocam. 

Para os autores que abordam a música da perspectiva do puro afeto, fora do campo da representação, a música será tratada como aquilo que pode, ao ultrapassar a dimensão representativa e ter uma função basicamente afetiva, promover condições de apaziguamento da angústia, contribuindo para tornar suportável a solidão inexorável do humano, como, por exemplo, argumenta Naffah Neto, referido por L. Luiz. Outra possibilidade de função da música, ainda nessa concepção, será aquela que é trazida pela música na produção de prazer. Condição que é demonstrável empiricamente e argumentada por Stahlschimidt, na caracterização do laço mãe-bebê, tratado como relação corpo a corpo, uma vez que, para o autor, a audição musical teria tal função desde o ambiente intrauterino, e deveria ser propiciada pelos pais, pois fornecerá uma pauta musical de gosto e de identificações mediante o prazer auferido. Depreendemos dessa orientação geral que a música é tomada como um objeto de satisfação das pulsões pelo registro do alívio das tensões. 

Vejamos agora como comparece a segunda concepção discutida por Leonardo Luiz, que é representada pelas conceituações de A. Didier-Weill.

Didier-Weill é um dos psicanalistas do campo lacaniano pioneiro na abordagem das questões da incidência da música na constituição subjetiva e, dessa perspectiva, a configuração conceitual dessa relação está muito menos referida aos efetivos cuidados corporais e fontes de prazer que a mãe possa aportar a seu bebê e mais referida a uma concepção estrutural da constituição subjetiva, em que a função materna opera, mediante a sonata materna, a identificação simbólica primordial, da qual Freud tratou em termos de identificação primária ao pai. Assim escreve Leonardo Luiz, citando Didier-Weill:

 

Somos levados a compreender que a transmissão mais primária do simbólico à criança se faria por intermédio da voz materna. Vamos situar o som dessa voz como a mediação entre o que a precede e o que a sucede: o que a precede remete ao significante do Nome do Pai [...] que sustenta o simbólico, o que a sucede é o inconsciente por via da criança receptora do som (p. 47).

 

Para logo depois ressaltar e ressalvar, com outra citação daquele autor, a decifração operada pela criança, no que diz respeito à escuta da voz da mãe: 

 

O não compositor dispõe de uma profusão de sons inutilizados em outros lugares, mas prontos a se lançarem, atraídos, como por um ímã, para vir aderir ao som. Como não reconhecer nessa concepção de som que, como um "ímã", atrai o sentido, uma metáfora da pulsão invocante, cuja emergência observamos nesse tempo originário em que advém o inconsciente, a nosso ver, quando o puro som musical da voz materna é interpretado e recebido como sentido pelo ouvinte que é o infans. (Didier-Weill, 199, p. 150 apud Leonardo Luiz, p. 47). 

 

Como se pode reconhecer, a rota do Capítulo II é de enorme amplitude e, em alguns aspectos, oferece o risco de dispersão, mas o autor orienta o rumo que nos oferece, por meio da decifração do sentido que se dá a ouvir em sua clínica. Será com a colaboração de dois textos de Kohut que Luiz articulará os elementos necessários para o prosseguimento consequente da pesquisa. Esses textos permitiram a ele situar com propriedade aqueles mais pertinentes aos casos por ele tratados. 

Os Capítulos III, IV e V fazem jus à ampla preparação precedente, e neles, por meio da discussão de aspectos de tratamento de três pacientes, as proposições centrais da pesquisa serão articuladas ao que a experiência clínica permite evidenciar. Eles dão ao leitor a oportunidade de acompanhar, por meio de recortes detalhados, as análises de Priscila, de Jorge e de Helena.

Priscila é uma jovem que encontra nas afinidades com um estilo de música escolhido muito particularmente, na especificidade da letra de uma canção e nas iniciais de sua banda preferida, com as quais se faz tatuar, a possibilidade de dar encaminhamento às consequências da ausência do pai que, no início da análise, não pareciam afligi-la. O trabalho analítico permitiu desvelar o que da ausência paterna se exprimia por meio da afetabilidade musical, por exemplo, o uso dos piercings, condizentes com o estilo musical escolhido. Essa mesma condição promoveu também um modo de tornar possível o equacionamento das questões identificatórias pendentes de tal ausência, o que se fez por meio daquelas alterações e inscrições dos limites corporais.

Jorge é um adulto jovem, cujo prazer em tocar o instrumento herdado do avô paterno se faz elemento de uma espécie de objeção de consciência em relação aos valores do próprio pai, e passa a lhe fornecer a moldura de suas inibições - a dificuldade, enquanto músico de jazz, para improvisar - mas também lhe dá a possibilidade de superação delas, mediante o trabalho analítico. A meu ver, este é o caso que melhor permite apreender uma especificidade da proposta do autor - a sonoridade musical no divã - uma vez que, enquanto apresentação clínica, as questões e as inibições e sintomas de Jorge estão bastante referidas ao campo das neuroses - o próprio psicanalista o nomeia como um obsessivo típico, permitindo que não se confunda a questão da afetabilidade musical com transtornos primários da constituição subjetiva. 

Helena é uma jovem cujo encontro amoroso se faz ocasião para o desenvolvimento de uma especial veia literária lírica epistolar, sob os auspícios das referências musicais como modo de expressar e de experienciar um erotismo ao qual as tradições religiosas familiares tinham mantido inacessíveis até então. Nesse caso, um aspecto bastante relevante do caso clínico me parece ter sido que a escrita das cartas de amor via eletrônica pode abrir um caminho de articulação entre a música, a poesia e a interpretação psicanalítica - neste caso, expressa principalmente por meio da escuta que validou a produção lírica-subjetiva.

Os pressupostos metodológicos, técnicos e metapsicológicas que norteiam a pesquisa do autor ficam mais reconhecíveis com a discussão dos casos e permitem também apreciar melhor um relevante aspecto da hipótese que norteia o trabalho do psicanalista Leonardo Luiz em sua clínica, vale dizer, o papel da afetabilidade musical no trabalho do analista. Para ele, à afetabilidade musical que se expressa em sonoridade musical corresponde certa modalidade de sonoridade, a sonoridade psicanalítica, que sustenta a escuta do analista e lhe permite intervir o suficiente junto a esses pacientes. É o caso de Helena que, a meu ver, evidencia melhor esse ângulo, uma vez que, mais que qualquer uma das intervenções acertadas do analista, a ação necessária ao caso parece ter sido a escuta do analista, que -, desde a sonoridade psicanalítica, validou aquela produção lírico-subjetivante.

As sonoridades psicanalíticas, portanto, operam nas situações em que a música pode se tornar eficaz mediante sua potência em promover a elaboração psíquica do sintoma, e não apenas por seus conhecidos efeitos catárticos derivados do alívio das tensões. O que, segundo Leonardo Luiz, prosseguirá, mesmo depois do término do tratamento, uma vez que, de acordo com a concepção de cura que assume, o processo não tem um fim definitivo, pois a psicanálise instalaria, ou recuperaria, um processo de desenvolvimento humano cuja continuidade o sujeito e sua a música estariam em condições de prosseguir realizando juntos. Também os leitores estarão em condições de prosseguir, a partir do diálogo que estabelecerem com as proposições e demonstrações do autor, e das ressonâncias musicais pelas quais se deixarem afetar. Essa é a aposta. 


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados