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Resumo
Resenha de Leopoldo Fulgencio, Por que Winnicott?, São Paulo, Zagodoni, 2016, 208 p.



Notas
1. Fulgencio utiliza preponderantemente o termo "instinto de morte" em sua argumentação, ainda que o capítulo seja intitulado "Winnicott e a pulsão de morte: recusa e alternativas".

2. Há traduções que adotam a expressão "não compadecimento".


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 LEITURA

Muitos porquês a Winnicott [Por que Winnicott?]

Many whys for Winnicott

É bom não se enganar com a pergunta simples que dá título à coleção Grandes Psicanalistas, coordenada por Daniel Kupermann, a qual propõe a seus autores que respondam a um porquê. Já temos Lacan e Winnicott. A eles se juntarão futuramente as interrogações a respeito de Klein, Ferenczi e Bion.

 

A dificuldade envolvida na pergunta diz respeito à definição do que seria um grande psicanalista. A esse respeito Kupermann argumenta em sua introdução à coleção: um grande psicanalista seria aquele capaz de "deslocar o centro de gravidade da psicanálise" (p. 11), fornecendo-nos uma compreensão original da metapsicologia, com seus derivados simultâneos sobre a psicopatologia e o fazer clínico coerente com tal compreensão. Um impacto desta ordem teria efeitos até mesmo no estatuto institucional da psicanálise, levando-nos a pensar sobre o que faz um psicanalista (durante seu trabalho) e como este é formado. 

 

Desse modo, a pergunta-título convoca seus autores a justificar, a explicar o porquê de os psicanalistas estudados terem sido considerados responsáveis por tal ordem de transformação no campo psicanalítico. Isso, por si só, exige ter como pano de fundo um diálogo com a tradição precedente, demonstrando tanto as "filiações singulares ao pensamento freudiano" (p. 11) quanto as influências recebidas de outras fontes por cada psicanalista. Um dos propósitos da coleção é situar tais autores em suas redes de referências sem, contudo, tornar-se uma exegese destinada a especialistas. Ao contrário, a coleção pretende abranger outro público, fora do campo psicanalítico, mas interessado em compreender melhor as problemáticas de nossa vida psíquica. 

 

Como se vê, um porquê multifacetado, complexo, que nos convoca a entender as alterações feitas por autores originais que, ligados a Freud, promoveram deslocamentos teóricos, clínicos e institucionais no campo psicanalítico, movidos por influências próprias a cada tempo histórico. Além disso, num diálogo com a clínica contemporânea, a resposta a esse porquê nos levaria a compreender nossos desafios atuais. Uma tarefa nada simples, mas levada a cabo por Leopoldo Fulgencio.

 

Podemos dizer que o mérito em dar conta do grande desafio proposto traz a reboque uma dificuldade ao livro, uma vez que as formas díspares dos capítulos talvez derivem dos distintos públicos ao qual se destina a própria coleção. Esperamos que a heterogeneidade e riqueza do livro fiquem explícitas à medida que apresentamos Por que Winnicott?

 

Um psicanalista existencialista

No primeiro capítulo encontramos uma escrita clara e precisa a respeito das razões para Winnicott ser identificado como agente de uma transformação no campo psicanalítico. Na tese defendida por Fulgencio, Winnicott levou a psicanálise a outro "status epistemológico e prático" (p. 14), por articular com sucesso as descobertas freudianas e kleinianas (sobretudo) com as contribuições clínicas advindas do existencialismo moderno (Fenomenologia Psiquiátrica, Psicoterapia Existencial e Daseinanálise). Exposto aos conceitos de Ser, vida autêntica ou inautêntica, por exemplo, Winnicott teria transformado estas ideias existencialistas em conceitos psicanalíticos com utilidade e nascedouro clínicos. Pacientes que não se sentiam pessoas reais, que não julgavam a vida como sendo própria ou digna de ser vivida podiam ser entendidos utilizando-se as noções clínicas de ser, falso ou verdadeiro self - derivados psicanalíticos de uma influência existencialista. 

 

Apesar da maneira inusual de Winnicott conservar a tradição, assimilando referências sem grande esmero em citá-las - o que dificulta o trabalho de investigação das origens de seu pensamento, Fulgencio escrutina de que modo as ideias existencialistas fariam parte do referencial winnicottiano. Segundo ele, tais ideias demonstram o rompimento com o modelo ontológico elaborado por Freud, que consideraria o homem "como se fosse um aparelho, um aparelho psíquico, movido por forças (as pulsões) e uma energia (quantum de afeto ou libido)" (p. 19). Winnicott, de outro modo, trabalharia com uma concepção ontológica que coloca "a necessidade de ser e continuar sendo como um fundamento da própria natureza humana" (p. 24), refutando assim a economia pulsional. Além disso, Winnicott deslocaria a importância determinante dada à sexualidade infantil e ao Complexo de Édipo na estruturação psíquica, atribuindo à tendência inata à integração o papel de motor no desenvolvimento emocional. Deve-se ter em mente que essa tendência só ocorreria adequadamente em estreita dependência para com um ambiente favorável a isso. 

 

Para compreender o desenvolvimento emocional segundo uma teoria das relações de dependência, Winnicott teria utilizado um substrato teórico existencialista para postular a necessidade de uma "conquista da possibilidade e da experiência de SER" (p. 28) antes um FAZER algo com os objetos de amor ou ódio. Essa conquista seria fruto das relações de dependência que passariam por três fases: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. Qualquer prejuízo em determinada fase traria consequências psicopatológicas distintas para o sujeito. Por exemplo, a origem das psicoses resultaria de falhas no período da dependência absoluta, enquanto os quadros de depressão ou adições seriam derivados das falhas na completa integração do Eu em curso na fase da dependência relativa. Já aqueles que estão rumo à independência gozariam de um Eu mais integrado, reconhecendo-se como sujeitos separados das coisas e sendo capazes de se relacionar com pessoas inteiras. Estas sofreriam as dificuldades inerentes aos relacionamentos interpessoais, encerrando-se suas questões sob a rubrica da neurose. 

 

Na compreensão do ser que quer continuar sendo por si mesmo, movido pela tendência à integração, o papel do ambiente é determinante em vários sentidos. Comprometido com a demonstração de Winnicott como psicanalista existencialista, a conhecida dependência da mãe pode ser definida como uma propriedade do "ser-com-o-outro" fundante do humano. De modo bastante acurado e ao longo de todo o livro, Fulgencio demonstrará essa passagem interligando os processos psicológicos desenvolvidos a partir da dependência do ambiente, até culminar na progressiva expansão rumo à vida social e cultural. 

 

Assim, os conceitos winnicottianos de ilusão de onipotência, seio materno como objeto subjetivo, desilusão gradativa, fenômenos e objetos transicionais, área intermediária de experiência, o brincar, verdadeiro e falso self são organizados de modo a revelar como o psicanalista inglês conceberia o papel do homem na criação do seu próprio mundo sempre na interação com o outro. O seio materno como objeto subjetivo não pode ser criado sem um suporte apropriado. Nesse sentido, afirma Fulgencio, Winnicott não seria um teórico das relações com os objetos, no sentido psicanalítico claro, "mas, sim, um teórico das relações com o ambiente" (p. 35). 

 

Outra diferença de Winnicott em relação ao pensamento psicanalítico freudiano e pós-freudiano seria sua "noção descritiva da saúde" (p. 67), estritamente relacionada à necessidade de ser e continuar sendo. Diz-nos Fulgencio: 

 

Tudo aquilo que atrapalha e interrompe a continuidade de ser é causa de falta de saúde. Noutros termos, todo viver reativo corresponde a uma patologia do ser, que é, então aniquilado, perdendo seu impulso próprio e substituído pela reação [...] Ser, aqui, tem um sentido muito específico, significa ser por si mesmo e não como algo que é projetado ou introjetado, puxado ou empurrado pelo ambiente (p. 68, itálicos do autor). 

 

Esta descrição da saúde alheia à metapsicologia afirma-se a partir do processo de integração capaz de prover acesso à espontaneidade reveladora da riqueza da personalidade, sem com isso entender-se ausência de conflitos ou sofrimentos. Ao contrário, relembrando a famosa fase de Winnicott que define como pobre a personalidade apenas sã, saúde implica a capacidade de ter liberdade interior, com variedade de recursos para lidar com as dificuldades inerentes à vida, mantendo a capacidade de confiar em... Este estado de confiança e abertura permitiria um agir por si mesmo traduzido em "gestos espontâneos" nos quais nossa criatividade revela-se em conjunção ao ambiente. Ser criativo, adverte-nos Fulgencio, diz respeito a "ser espontâneo, a ser a partir de si mesmo, ainda que isto não tenha valor social" (p. 70). 

 

No longo desenvolvimento que vai da dependência absoluta ao ingresso possível na independência, passaríamos da incapacidade de reconhecimento da realidade à capacidade de brincar como protótipo da expressão criativa do ser na comunidade humana. Talvez inspirado na escrita fenomenológica, Fulgencio define este modo de relação: "ser-com-o-outro-sem-perda-de-si-mesmo" (p. 109). Esta perda de si decorreria de relações de submissão, "que aniquila o ser na sua possibilidade de agir por si mesmo, tornando a vida sem sentido, sem interesse ou mesmo fútil" (p. 70). 

 

Como se pode ver, Fulgencio nos conduz através dos conceitos, estabelecendo relações que demonstrariam as transformações teóricas e os ganhos clínicos surgidos da síntese entre psicanálise e existencialismo, efetuada por Winnicott. No primeiro capítulo ele ainda nos apresenta, na forma de verbetes, uma boa soma desta fatura teórica comentada, cumprindo com rigor uma passagem pelo amplo espectro teórico-clínico desenvolvido por Winnicott. São verbetes muito úteis para uma aproximação rápida dos conceitos, mas não devem ser utilizados como se fossem independentes da argumentação em torno da qual foram escritos, pois aqui e ali são refeitas as ligações com o existencialismo presente-ausente nesta psicanálise.

 

Winnicott, a psicanálise e as ciências

No segundo e mais extenso capítulo do livro, intitulado "O interesse da obra de Winnicott para as ciências", deparamos se não com um problema, com uma questão estilística exigente. Como advertido pelo próprio Fulgencio (p. 16), as repetições foram inevitáveis ao longo de sua obra e, talvez, sejam fruto do objetivo amplo a que se propõe a própria coleção. Aqui, encontraremos uma discussão a respeito da "singular filiação" de Winnicott a Freud, demonstrando as várias discordâncias teóricas (sobre o fundamento do psiquismo) e clínicas (método e objetivos do tratamento) entre eles. Além disso, talvez para estimular a ampliação do uso das ideias psicanalíticas por todos aqueles interessados no humano, como pretendem os editores, Fulgencio faz uma apresentação generosa de diversos campos de conhecimento e práticas que poderiam se beneficiar do trabalho de Winnicott. Encontramos sugestões da utilidade de sua teoria do amadurecimento emocional para psiquiatras, pediatras, biólogos, neurocientistas, educadores, linguistas, historiadores, assistentes sociais, filósofos e juristas. Requer fôlego. 

 

O problema é termos passado pelo primeiro capítulo, no qual, além dos verbetes, há uma apresentação ampla das ideias de Winnicott na argumentação de sua psicanálise existencialista. Ao retomar as diferenças em relação a Freud e definir aproximações possíveis com todos esses campos de saber humanos, deparamos novamente com as ideias básicas de Winnicott. Acredito que um leitor recém-chegado a esta seara e vindo da História, por exemplo, talvez encontre ali aportes a partir dos quais possa ingressar na esteira psicanalítica e se beneficie com esse processo de escrita. 

 

Boa parte deste capítulo é dedicado aos ganhos trazidos à teorização e prática psicanalíticas a partir das novas concepções winnicottianas. Com esmero diferenciado, é feito um resgate dos fundamentos conceituais, metodológicos e clínicos desenvolvidos por Freud para então vislumbramos os contrapontos e divergências trazidas por Winnicott. 

 

Uma primeira diferença seria a concepção da prática clínica trazida pelo psicanalista inglês. Para ele a análise é uma "longa anamnese" realizada pelo paciente, que possibilita uma reintegração de sua história de diversas maneiras (p. 65). Trata-se de um "encontro humano verdadeiro" que requer do analista a capacidade de efetuar seu trabalho para além dos ditames técnicos, mantendo-se vivo, presente e capaz de comunicar-se com o paciente de um modo que este se sinta compreendido (p. 65). A sustentação ambiental oferecida através da análise favoreceria o alcance dos seus objetivos: favorecer as diversas integrações necessárias ao indivíduo para que se torne um "sujeito psicológico que tem um dentro e um fora" (p. 74). Dentre essas integrações, podemos destacar: integração da vida instintual como vinda de seu próprio interior; integração dos impulsos amorosos e destrutivos; "integração da confiança na possibilidade de reparar" (p. 74). O resultado desse processo seria fornecer ou restituir ao paciente "a possibilidade de viver a partir de si mesmo" de forma autônoma, não reativa, "sentindo como natural existir a partir de si mesmo" (p. 74).

 

Na concepção de Winnicott sobre a psicopatologia, os processos de integração que ocorrem para cada um de nós são determinados segundo a dependência do ambiente, e, a partir disso, é possível fazer um diagnóstico: o paciente pode ser uma pessoa integrada, recém-integrada ou não integrada. O setting seria organizado segundo as possibilidades e necessidades apropriadas a cada tipo de paciente. Winnicott oferecia a chamada "análise-padrão" às pessoas integradas, aquelas marcadamente neuróticas, para as quais a técnica freudiana é apropriada. Aos outros pacientes era desenvolvida uma "análise modificada", cujos matizes dependeriam do estágio de integração vivido. Aos recém-integrados caberia a "sobrevivência do analista" em termos de uma "sustentação afetiva que sobrevive às oscilações e às experiências relacionais que o paciente precisará fazer, experiências nas quais ele experimentará impulsos amorosos e impulsos destrutivos, bem como a possibilidade de reparar" (p. 76).

 

Já os pacientes não integrados, incapazes de uma diferenciação clara entre um mundo interno e externo, demandariam o manejo no setting analítico de uma intensa e duradoura "retomada da provisão ambiental" (p. 76) como recurso necessário para lidar com as falhas ocorridas nos estágios iniciais de desenvolvimento. O tratamento visaria levar tais pacientes a integrar-se em um "eu sou" que os habilitaria a viver a partir deste alcance, ingressando no "campo dos problemas existenciais neuróticos" (p. 76), isto é, no campo dos problemas relacionais. A questão aqui, resume Fulgencio, é levar o paciente a "encontrar um lugar possível para ser!" (p. 77, itálicos retirados). 

 

Não é possível esmiuçar todo o trabalho efetuado para apresentar as propostas clínicas apropriadas a estes estágios de integração diagnosticados por Winnicott. Cabe apenas apontar ao leitor que Fulgencio especificará a abordagem terapêutica que seria mais adequada aos neuróticos, psicóticos, pacientes deprimidos, borderlines, com sintomas psicossomáticos e com atitudes antissociais segundo a proposta winnicottiana. É uma apresentação exclusivamente teórica do fazer analítico que faz da regressão à dependência um poderoso recurso clínico para retomar o desenvolvimento emocional interrompido. Assim, a psicoterapia seria um "conjunto de cuidados necessários para que esse desenvolvimento possa ser retomado ou corrigido" (p. 96).

 

Novos leitores para Winnicott

Além do esforço para demonstrar a utilidade de Winnicott para diversas áreas do saber humano, o interesse em tocar e aproximar novos leitores ao pensamento winnicottiano ainda se faz presente no quarto capítulo do livro. Neste, o autor seleciona trechos fundamentais da obra do psicanalista inglês, oferecendo-nos citações integrais de diversas passagens. Tais citações foram agrupadas nas seguintes categorias temáticas: continuidades e rupturas, fundamentos, psicopatologia e concepções clínico-teóricas. É uma boa oportunidade para os recém-chegados conhecerem a letra winnicottiana.

 

Assim, encontramos passagens em que Freud é visto como referência para logo ter um aspecto de seu pensamento questionado - como o conceito de pulsão de morte, por exemplo. Os fundamentos seriam os da psicanálise existencialista de Winnicott, cujas citações versam sobre a ontologia do ser e sua continuidade como sinônimo de saúde. A psicopatologia apresenta as consequências danosas à saúde provocadas pelas rupturas no processo de integração dependente do ambiente. Já as concepções clínico-teóricas descrevem uma prática que entende a análise como um contexto profissional para a confiança, favorável à espontaneidade e criatividade segundo um nível de interação definido como a "sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta" (p. 175). 

 

Na mesma trilha de apresentar o grande psicanalista a um vasto público, Fulgencio dedica o quinto capítulo do livro a uma ampla revisão da bibliografia disponível de Winnicott e seus comentadores. Já no apêndice temos uma breve biografia do psicanalista inglês.

 

A recusa ao conceito de Pulsão de Morte

Para finalizar, Por que Winnicott? nos oferece ainda uma instigante discussão a respeito da recusa ao conceito de pulsão de morte. Com uma escrita de teor mais acadêmico, Fulgencio coteja diferentes autores para, junto a um extenso referencial crítico, apontar os acordos e desacordos em torno do conceito freudiano.

 

Para Winnicott, o instinto de morte seria o único erro de Freud, antes confundindo do que favorecendo qualquer compreensão a respeito da vida psíquica. Para ele haveria um erro em recobrir fatos clínicos tais como agressividade, impulso destrutivo ou ódio com a ideia de um retorno ao estado inorgânico. Baseando-se em outra concepção, Winnicott afirma que a vida não vem do inorgânico, mas de outra vida, e o indivíduo não emerge da matéria inanimada, mas de um estado de não vida por ele denominado "solidão essencial" (p. 146). Simplesmente pensar uma teoria da agressividade baseada no Instinto de Morte seria um erro. 

 

Como alternativa a esta compreensão, Winnicott propõe pensar a origem da agressividade no impulso amoroso primitivo e na interrupção da continuidade de ser. Uma citação mais extensa será útil neste momento:

 

O impulso amoroso primitivo diz respeito à ação que deriva do próprio fato de estar vivo, corresponde à expressão do ser associada à própria motilidade, num momento em que o bebê depende totalmente do ambiente sem ter nenhuma noção de que dependa, sem ter até mesmo o reconhecimento de que existe um ambiente separado dele, dado que não há, nesse momento, um lugar para uma realidade não self. Nessa fase, as ações do bebê não são propriamente intencionais, nem se dirigem a um objeto reconhecido como sendo não ele; não há no bebê uma intenção de destruir, mas uma atividade sem raiva. Nesse sentido, de acordo com Winnicott, o conceito de Instinto de Morte é desnecessário, desde que a agressão possa ser considerada uma evidência da vida (p. 149).

 

Em função do não reconhecimento da dependência para com o ambiente, e tomando a vitalidade e motilidade como movimentos de ação sobre o ambiente e seus objetos, a relação estabelecida com o mundo poderia ser qualificada como de "incompadecimento com a mãe-ambiente". Esse incompadecimento duraria até que as integrações permitam a percepção do ambiente externo ao sujeito e o compadecimento possa surgir como uma responsabilização pelas ações que são agora próprias a um Eu (p. 150). A agressividade, nesta etapa anterior ao concernimento, serviria para proteger o núcleo do verdadeiro self contra invasões - consideradas como a pior das agressões possíveis. 

 

Assim, para Winnicott, a ideia de ser e continuidade de ser e a radical imaturidade cognitiva e emocional do bebê, que depende dos cuidados do ambiente, permitem que conceitos de "impulso amoroso primitivo", de "interrupção da continuidade de ser", de "invasão do núcleo sagrado do self", de "medo de ser dominado pela mulher" constituam uma alternativa ao conceito de Instinto de Morte, trazendo a agressividade para o âmbito das relações inter-humanas, sem recorrer a hipóteses especulativas (p. 151-152).

 

Ao considerarmos o uso dos objetos, a agressividade não pode ser equiparada à destrutividade de um Instinto de Morte, sendo antes uma expressão da criatividade originária, do viver espontâneo, tratando-se "de uma atividade sem raiva, sem intenção de destruir" (p. 159). 

 

Já a compulsão à repetição derivada do Instinto de Morte seria entendida por Winnicott como "um impulso do indivíduo para retornar a uma situação na qual o self pode agir em relação à situação traumática e não reagir (passivo) a ela, situação que o aniquilou no passado na sua continuidade de ser" (p. 159). Mesmo considerando situações traumáticas, a compulsão à repetição seria entendida como uma oportunidade de integração deste passado (não experienciado) na área de controle do paciente, que passa então a agir por si. Assim, na análise a cura ocorreria mediante dois aspectos da regressão clínica, tendo por um lado o "retorno a uma situação de dependência, atualizada com o analista; por outro, à necessidade de retomar o momento anterior ao trauma, ao qual as defesas foram erguidas" (p. 163). 

 

Dessa maneira, encontramos na resposta de Leopoldo Fulgencio um extenso e dedicado trabalho de situar Winnicott dentre os grandes psicanalistas. Suas inovações teóricas e clínicas estão bem representadas, bem como as discordâncias produtivas para com outros autores fundamentais na história da Psicanálise. Como decorrência deste alcance dado a Winnicott, só podemos aguardar por um efeito: novas perguntas, novas respostas debatidas a partir deste grande autor.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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