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ÍNDICE TEMÁTICO 
58
Interfaces da clínica
ano XXIX - Junho 2017
160 páginas
capa: Lília Malheiros
  
 

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Resumo
?Este artigo se propõe a refletir sobre alguns efeitos da sociedade do espetáculo e da cultura do narcisismo na subjetividade contemporânea. Evidenciando o estímulo ao esquecimento em detrimento da recordação e da elaboração das experiências potencialmente traumáticas para os sujeitos, relaciona essas práticas às produções sintomáticas frequentemente encontradas na clínica atual.


Palavras-chave
Memória; angústia; subjetividades contemporâneas.


Autor(es)
Cláudia de Almeida Gallo Gallo
psicanalista, psicóloga e analista institucional. Fez sua formação no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi professora, supervisora e coordenadora do Curso de Especialização em Psicoterapia Reichiana do Instituto Sedes Sapientiae. Membro da Rede de Atendimento Psicanalítico.


Notas

1.      S. Freud, "Carta 52" in A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess 1887/1904.

2.      E. J. Hobsbawn, Era dos Extremos: o breve século XX: 1914/1991

3.      S. Freud, "Inibição, sintoma e ansiedade" in Obras Completas.



Referências bibliográficas

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Abstract
This article proposes a reflection over some effects of the society of spectacle and narcissistic culture on contemporary subjectiveness. By pointing out forgetfulness stimuli over memory and the elaboration of pottentially traumatic experiences for the subject, it relates these practices to sintomatic productions frequently found in current clinic.


Keywords
memory; Anguish; Contemporary subjectiveness.

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 TEXTO

Recordar ou apagar? O lugar da memória, a função da angústia e novas subjetividades

To remember or to delete? The place of memory, the function of anguish and the new subjectivities
Cláudia de Almeida Gallo Gallo

Desejo de Regresso

Porque há doçura e beleza na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

[Cecília Meireles in Mar Absoluto.]

 

A revista IstoÉ, em sua edição de número 2021, de 30 de julho de 2008, publicou reportagem sobre pesquisas realizadas nos eua pela Rutgers University, nas quais foram identificadas células neuronais de uma região específica do cérebro, as amígdalas, relacionadas à memória. Os pesquisadores constataram que, ao diminuir sua atividade, todas as lembranças de eventos traumáticos são atenuadas, bem como os afetos e reações a ela relacionados. O próximo passo, segundo o artigo, deverá ser o desenvolvimento de medicamentos que reduzam a atividade desses neurônios, para serem ministrados a pacientes em estado de ansiedade, síndrome do pânico e fobias.

Matérias como essa são extremamente frequentes hoje em dia em diversos veículos de comunicação, não apenas na mídia escrita. Costumam produzir efeitos diversos, sendo o mais comum a esperança, sempre renovada, nas descobertas científicas de, enfim, livrar-nos dos sofrimentos causados pelas doenças, pelos males que afetam a todos nós humanos. Outro efeito gerado é uma espécie de atordoamento frente ao que parece estar sendo prometido aos homens: bem-estar eterno, ausência de desconforto, de sensações desprazerosas. Admirável Mundo Novo em sua face mais atual: "Lobotomia química".

A oferta do esquecimento ou do abrandamento das lembranças desagradáveis para o sujeito seguir em paz com sua vida me fez questionar o lugar reservado à memória na atualidade. A experiência de recordar parece estar se tornando desnecessária, obsoleta e incômoda. Será ainda possível uma afirmação positiva, construtiva da função da memória? Até que ponto podemos insistir na importância do trabalho analítico, do qual um dos motores é a angústia, para fazer frente às ofertas de alívio rápido à miríade de sintomas que presenciamos atualmente? A experiência analítica, sustentada por uma forma especial e específica de recordar, a repetição das marcas do passado na transferência, ainda tem lugar no mundo de hoje? Creio que sim. É o que pretendo discutir neste artigo.

Um pouco de história

O homem deste início de século encontra-se bem mais suscetível às promessas de alegrias intermináveis e bem-estar infinitos do que jamais esteve. Certamente, o homem de quem falamos não é mais o mesmo do século xix, forjado à luz do racionalismo cartesiano, do romantismo, do iluminismo. Em um contexto extremamente repressor, tradicionalista e conservador, o homem tinha clareza de seu lugar e papel sociais. A distinção entre público e privado era precisa, suas fronteiras bem delineadas, o que era permitido vivenciar em cada uma dessas esferas encontrava-se muito bem determinado.

No alvorecer do século xx, conhecemos um homem lutando intimamente com seus conflitos, resultado da excessiva repressão de seus impulsos, efeito da realidade acima descrita. A histérica, o neurótico obsessivo, vinham contar na clínica, através de seus sintomas e sofrimentos, histórias do mundo e de seus modos peculiares de se inserir nesse mundo. A psicanálise inaugura desde então um belo jogo de memória.

Freud e a memória

Segundo Freud, a importância da memória reside certamente no trabalho de elaboração dos traumas, mas principalmente na constituição do sujeito. Em sua "Carta 52", escrita a Fliess em 6 de dezembro de 1896, Freud declara que o aparelho psíquico é fundamentalmente um aparelho de memória. Situada entre o Projeto de 1895 e a Interpretação dos Sonhos de 1900, podemos considerar a referida "Carta 52" como uma espécie de passagem que liga as duas concepções e apresenta como novidade "... a tese de que a memória não preexiste de maneira simples, mas múltipla, está registrada em diversas variedades de signos". Está sujeita a novos e sucessivos reordenamentos segundo novas articulações. Trata-se da ideia embrionária que se fará completamente presente no capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos.

Ainda que algumas vezes Freud utilize o conceito de traços mnêmicos para referir-se à reprodução dos fenômenos do real, esta não é em absoluto sua concepção constitutiva da memória e não se define como marca que corresponde fielmente à realidade. Um dado acontecimento inscreve-se em diferentes sistemas mnêmicos, de qualidade inconsciente. As marcas do sistema inconsciente não conseguem chegar à consciência como tais, ao passo que as lembranças pré-conscientes podem ser atualizadas, dependendo de circunstâncias que as tragam à tona.

O aparelho psíquico se forma por este processo de estratificação sucessiva, experimentando de tempos em tempos uma retranscrição. Se considerarmos que a função principal do aparelho psíquico, aquilo no qual e através do qual se funda, é acolher as excitações do organismo, dominá-las, ligá-las, desligá-las, elaborá-las, só podemos pensar o sujeito neste permanente trabalho de dar destino às suas pulsões, com o objetivo de manter seu instável equilíbrio.

O trauma como experiência

A essas concepções, que combatem a ideia de uma memória estática e afirmam um psiquismo plástico, podemos unir uma noção de trauma: a de que toda vivência do sujeito é de certo modo traumática, uma vez que desestabiliza o sistema e o retira do estado de conforto produzido pelas experiências já conhecidas e repetidas. Toda nova possibilidade que se apresenta diante do sujeito pode despertar sentimentos e sensações contraditórios. Pode evidenciar conflitos internos, como o enfrentamento de impulsos antagônicos, hostis e amorosos, por exemplo.

Nenhum ser humano está imune a deparar, eventualmente, com situações que abalem sua estrutura psíquica e exijam dele novos arranjos internos. A memória de tempos vividos nos ajuda a enfrentar os novos tempos, os desafios do desconhecido, pois podemos utilizar saídas já tentadas e exitosas, podemos nos sentir suficientemente confiantes porque tivemos sucesso em empreitadas anteriores. Mas, igualmente, a recuperação de lembranças antigas pode nos confrontar com acontecimentos que não correspondem a certas noções que construímos de nós mesmos, a nossa autoimagem. Algumas vezes tendemos a nos perceber exclusivamente como bons, justos, honestos ou bem-sucedidos, nos reconhecemos nessas qualidades embora elas não nos caracterizem por completo. Diante desses contrastes, podemos nos sentir ameaçados e inseguros e procuraremos nos proteger. Isso vale tanto para o plano individual quanto coletivo.

Segundo o historiador Eric Hobsbawn, o século passado foi o mais assassino que a história registra, repleto de guerras (duas mundiais), rebeliões e lutas regionais sangrentas. Ele constata uma falta de memória histórica entre os jovens de hoje, e uma causa possível pode situar-se nessa situação trágica. Diz ele:

 

A destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas, é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isto os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca.

 

Sem dúvida a destruição dos elos da memória que nos conecta ao passado tem sido cada vez maior, mas considerar os excessos de crueldade cometidos no século passado como seu único motivo não me parece suficiente. Penso que, apesar dos fatos chocantes, a tragédia e os horrores não são prerrogativas exclusivas do século xx.

Presentes desde a origem do mundo, como o conhecemos, isso faz parte de nossa história humana, do mesmo modo que a crueldade e a hostilidade fazem parte de nossa condição humana. Porém, há diferenças importantes. Vivemos em uma época em que o sentimento de vulnerabilidade é imenso. Desde a invenção da bomba atômica e sua utilização na Segunda Guerra Mundial, o perigo de um ataque em grande escala tornou-se real. Em seguida, a criação de mísseis de longo alcance fez de todos possíveis alvos. Nenhum lugar é completamente seguro, inclusive nosso próprio mundo interno.

Ao mesmo tempo acompanhamos dos sofás de nossas casas esses ataques e bombardeios a outras cidades e seus habitantes. As transmissões são via satélite em tempo real. Somos invadidos por um sentimento de incredulidade, mais uma tragédia sob a forma de espetáculo, que tende a produzir um esvaziamento de nossa possibilidade de pensar e nos aliena do sofrimento, pois o que resta são imagens, seguidas de outras. Nunca antes estivemos tão dentro e ao mesmo tempo tão fora. O mundo tão perto e simultaneamente tão distante.

A nova face da recusa

Uma das tarefas do psicanalista, dentre outras, é auxiliar o sujeito a recordar. Destacando a especificidade dessa recordação, que não se confunde e não corresponde exatamente à reprodução da realidade objetiva e que se dará através do estabelecimento da relação transferencial. Entretanto, esse trabalho depara com algumas dificuldades, pois entre essas lembranças estão aquelas que remetem à desagradável consciência da incompletude, da falibilidade, da imperfeição e da finitude. Muitas vezes o sujeito não consegue defrontar-se com esses conteúdos e elaborá-los. Recusar as marcas da experiência implica um eu incapaz de simbolizar suas vivências mantendo-se em uma posição imaginária de completude, narcisismo infantil, permanentemente atualizado.

Freud, em "O Fetichismo", analisando o modo de funcionamento perverso, esclarece um mecanismo que funciona como uma espécie de mão dupla, através do qual o sujeito sabe e não sabe sobre a diferença sexual. Diante da realidade ameaçadora da castração, elege um objeto que lhe permite livrar-se dela sem, no entanto, recorrer à deformação da realidade externa como ocorre na psicose. Esse processo não pode ocorrer sem uma divisão do eu, alienando a parte que lembra a falta e enaltecendo aquela que se apresenta como completa, sua metade perfeita.

Não pretendo afirmar que existe atualmente a predominância de estruturas perversas, nem tampouco considero esquecimento sinônimo de recusa, em seu sentido de processo psíquico inconsciente. No entanto, observamos a insistente presença de uma maneira de lidar com as experiências que desafiam a supervalorização do eu; lança-se mão cada vez mais do artifício de aceitar e recusar a um só tempo.

Já houve um tempo em que o sujeito narcisista foi um sujeito da vaidade. Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray (1890), chocou a sociedade de seu tempo ao contar a história do homem que comete as maiores barbaridades em nome do prazer e nunca envelhece, enquanto seu retrato pintado vai ficando, pouco a pouco, aterrador. Exemplo magistral do homem que estoca suas feiuras em outro lugar, distante de si mesmo, numa ilusão de beleza e juventude eternas, sem integrá-las ao seu eu.

Hoje em dia, além dessas ilusões, outras se impõem e se colocam como obrigação: ser feliz, buscar incessante e insanamente a perpetuação de estados alegres, preocupar-se exageradamente com a boa forma física, etc. Há uma ideia pressentida, a de que poderemos finalmente ser imortais. Esses ideais de ego, propostos pelo mundo contemporâneo, são impossíveis de alcançar e lançam o sujeito numa permanente sensação de insuficiência interna. Ao mesmo tempo, são de tal natureza, que se assemelham ao ego ideal, fundado no narcisismo primário. Isso posto, podemos considerar então que o sujeito, ao vivenciar situações que produzem medo, insegurança, dor, tristeza, impotência, é de certo modo assaltado pela consciência de que é vulnerável, mortal e sobre isso nada quer saber, portanto um caminho possível a ser tomado é apagar, deletar, expressão largamente utilizada hoje em dia.

Segundo Foucault, na sociedade contemporânea, o que está na ordem do dia é o controle dos corpos e suas ações, o biopoder. Esse conceito se refere às práticas exercidas pelos estados modernos com o objetivo de regular os sujeitos que a eles estão submetidos através de numerosas e variadas práticas. É nesse ponto que a medicalização excessiva e indiscriminada incide. Essas práticas são efeito de um tipo de saber sobre o homem: que o pensa em fragmentos, que refuta a noção de sua complexidade sistêmica, que enxerga seus sofrimentos como sintomas a serem extirpados e não como caminhos a serem percorridos na busca de alguma aproximação e mescla de suas partes um dia separadas. Essas formas de compreender o homem produzem práticas específicas, e estas, por sua vez, validam as concepções teóricas, num círculo vicioso.

O enorme investimento em pesquisas nas áreas da neurologia, neurofisiologia e neuroquímica enfatiza a dimensão biológica das causas do sofrimento humano e opera contribuindo para sustentar ilusões de permanência e estabilidade. Portanto, essas veredas experimentais reforçam a biologização da vida, aumentando os riscos de retirar da própria vida sua qualidade de criar-se permanentemente, produzindo novos sentidos.

A função da angústia

Algo que necessita ser lembrado com urgência diz respeito à função da angústia para o sujeito. Inicialmente postulada por Freud como resultante do excesso de energia libidinal represada, esse importante conceito foi posteriormente compreendido como o sinal remetido ao sistema psíquico pelo ego ao perceber a presença das pulsões inconscientes insistindo em se manifestar. Ela tem a função de proteger o psiquismo da reativação dos medos mais arcaicos do sujeito, cujo protótipo é o trauma do nascimento e desse modo evitar que este seja submerso pelo afluxo de excitações. 

O que foi sendo apontado, ao longo de mais de um século de desenvolvimento da psicanálise, é a construção de um complexo procedimento de defesa nos seres humanos para proteger-se dos perigos aos quais se encontram expostos. Nascemos absolutamente despreparados para o mundo, imaturos e desamparados; necessitamos do outro para viver e começar a desenvolver nossa própria capacidade de sobreviver sozinhos, portanto dependemos do outro inicialmente e apenas progressivamente nos tornamos autônomos e independentes. Antes, contudo, passamos pela tomada de consciência da fundamental importância desse outro e pelo medo de perdê-lo.

A seguir, atravessamos o temor de perder aquilo que nos é mais caro, nas mulheres, o amor do outro, nos homens, uma parte de seu próprio corpo. Mais tarde ainda, enfrentamos os rigores da censura de nosso superego, representante interno das leis e normas sociais oriundas das figuras parentais e das forças pulsionais do Id.

Embora sejam fases que progressivamente superamos, esta travessia deixa marcas indeléveis nos sujeitos, e o modo como vivenciamos cada momento, com suas respectivas intensidades, determinará as respostas que futuramente teremos frente a situações que porventura despertem essas ameaças internas. A medida da adequação das reações frente às experiências vindouras e o tipo de situação que será sentido como ameaça traçam a linha que distingue as diferentes psicopatologias, a forma de defesa que o psiquismo lançará mão para proteger-se.

Há uma evidente e estreita relação da angústia com a memória, falando unicamente aqui daquela que corresponde ao retorno do recalcado. Aquela, ao emergir, desperta o ego para a tarefa de manter o psiquismo a salvo de invasões indesejadas a fim de sustentar o equilíbrio interno, portanto depende do registro das experiências anteriores, uma vez que estas deverão ser reativadas, ainda que a posteriori. Ao rever e alterar sua teoria da angústia, Freud retira a ênfase colocada até então no aspecto econômico do funcionamento psíquico e afirma que "[...] o sinal de angústia pode efetivamente funcionar como ‘símbolo mnêmico' ou ‘símbolo afetivo' de uma situação que ainda não está presente e que interessa evitar". Portanto, o registro das experiências transformadas em representações, ainda que inconscientes, é que será atualizado pelo ego ao colocar em funcionamento seus processos defensivos. 

Como citamos acima, a memória se constrói em um processo de transcrições sucessivas, experimentando, de tempos em tempos, novas retranscrições. Essas inscrições sofrem eventualmente falhas no trabalho de tradução de um registro para o outro, isso porque a série prazer-desprazer interfere tentando evitar as sensações desprazeirosas, processo que Freud chama recalque. Os sinais emitidos pela angústia anunciam o retorno do recalcado e acionam todo o processo defensivo inconsciente. Ela pode proteger o sujeito daquilo que este ainda sente como ameaça, e quanto mais apropriado de suas experiências ao longo da vida e de suas marcas, o sujeito poderá mesclar seus saberes e buscar novas saídas para si mesmo. Apagar as memórias, considerando que esse apagamento ocorreria da perspectiva do ego, pode fazer com que o sujeito permaneça em um estado permanente de angústia, sem poder fazer referência alguma a seu passado. Sem poder ligar a intensidade de seus estados afetivos às representações produz-se um enfraquecimento egoico que afeta o funcionamento psíquico, podendo resultar em diferentes manifestações sintomáticas, como a passagem ao ato e o salto para o corpo, que reconhecemos nas crises de pânico e nas doenças psicossomáticas. Torna-se então imperativo ligar, inclusive para poder esquecer.

Um outro horizonte

É aí que mais uma vez se coloca a importância do trabalho da análise, e o que o distingue: trabalhar produzindo história, para além e mais do que desvendar a novela familiar, devolver o sujeito à história, ressignificando seu próprio percurso, através de suas memórias.

Recuperar o lugar de narrador de si mesmo só é possível numa relação com um outro. É através do reconhecimento de que não se é autossuficiente que se torna possível dirigir-se a alguém e através da fala devolver à linguagem a riqueza de sua dimensão simbólica, fortalecendo dessa forma o próprio campo do simbólico.

Não ter histórias para contar significa perder a condição de possibilidade de criar sentidos e integrar na vivência dos acontecimentos do presente as experiências do passado. Para contá-las é preciso lembrar, mesmo que a recordação seja uma bela invenção do jogo de memória. Construindo a partir de restos, no enlace transferencial, uma nova história.


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